quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ENSAIO SOBRE “UMA HISTÓRIA DO CONTO” DE GUILLERMO CABRERA INFANTE

Difícil escrever um ensaio sobre um texto que já é um ensaio “di per se”, só que de autoria de um escritor com a E maiúscula, que o tratou como uma composição literária e não como um exame técnico-analítico. A linguagem de Cabrera canta, tem ritmo, onomatopéia, quase rima:

........houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção...

Daria para solfejar: não tivesse obedecido às linhas corridas da prosa, poderia ser chamado de poema. Cabrera, cuja obra não conhecemos a fundo, demonstra ser um apaixonado do conto, fazendo-nos perceber que Conto é um gênero nobre, com brilho próprio e não uma mera etapa preparatória para o romance. Ele nos dá a história do conto com a habilidade, a leveza, a versatilidade e todos os demais elementos que identificam o gênero, inclusive ironias e trocadilhos

(.....na saga arturiana que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas...),

críticas e sarcasmos

(...o livro do escritor cairota Naguib Mahfuz quer ser árabe e é apenas egípcio),

e até pede emprestadas a Jeronimus Bosch e Salvador Dali imagens surrealistas

(...até que chegou Stalin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista, transformou a fértil
literatura russa num deserto com tratores...).

Enfim, Cabrera demonstra ser um contista da melhor qualidade, num texto em que poderia ter se limitado a oferecer nomes e estilos das épocas, na aridez de uma listagem seletiva de “ quem é quem” no mundo do conto. Mas ele se alimenta- e nos alimenta – da pesquisa sobre os primórdios da comunicação, levando em consideração que hieróglifos e ideogramas rupestres já eram uma forma de transmitir um acontecimento, portanto contar uma estória, um conto. E que os homens descendentes daqueles que os esculpiram em pedra, foram ampliando as mesmas estórias de geração em geração até que:

(....passados tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever e, é claro, a ler, e outros animais e outros homens que se transformavam em animais, povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era a transcendência chamada religião..)

É a partir da mitologia que Cabrera inicia seu passeio prazeroso através dos estilos: do grego Homero, ao romano Ovídio, até Petrônio, cujo Satyricon foi considerado o primeiro romance por ser a reunião de estórias fragmentadas a respeito dos mesmos personagens. E o inconfundível estilo dos contos árabes e orientais de transmissão oral, até os contistas que começaram a ser publicados, mesmo que manuscritos em pergaminhos ou em outros tecidos vegetais, o que começou a criar, de alguma forma, o registro mais tangível da criação literária. Seria inútil falar aqui de todos os escritores que Cabrera menciona, mas o importante é ter entendido a influência que uns exerceram sobre outros, às vezes provenientes de culturas e línguas diferentes. A clareza com que Cabrera nos leva de um autor para outro, nos abre portas para descobertas pessoais. De repente parece lógico que o “Decameron” - coletânea de contos picarescos de Boccaccio em 1300 – tenha influenciado os “Cantebury Tails” de Chaucer, mas não os “Contos Exemplares” de Cervantes. Levando-nos de mãos dadas pelas páginas de autores ingleses, russos, franceses e americanos, Cabrera nos apresenta os gêneros mais diferentes, do policial ao mistério, ao horror e ao suspense, ao socialmente e politicamente engajado. Ao chegar à produção do conto contemporâneo, Cabrera nos dá. Com um acidez mal disfarçada, quase uma crítica a escritores que publicam em revistas e semanários suas obras até em episódios, como fizeram Updike, Parker, Fitzgeral. Devemos discordar para não ter que tachar de oportunistas os grandes pintores e arquitetos que, na Renascença e antes dela, foram protegidos por reis e mecenas. Na nossa era quem escreve raramente tem uma fonte de renda suficiente só pela venda de livros; publicar em revistas, jornais e semanários, escrever roteiros de cinema e crônicas jornalísticas não somente enriquece a conta bancária, mas contribui a manter vivo o interesse pelo autor. Ou seja: os meios de comunicação de hoje exercem a função de divulgação em grande escala, da mesma maneira que reis e mecenas faziam –em escala mais restrita -provocando a admiração – e frequentemente a inveja – entre seus pares. Extremamente interessante a maneira como Cabrera se policia quando percebe que está divagando, trazendo a tona obras que, ou não são contos mas novelas, ou são obras vertidas para o cinema. Num curto parágrafo, que tem o ritmo Shakespeariano do discurso apologético de Marco Antônio, ele se emenda:

“.....mas vim aqui para falar de conto...Toda intromissão de outro gênero deve ser considerada uma digressão. E a digressão nunca deve ser considerada uma agressão....

Assim que for possível pretendo conseguir as duas obras de Cabrera, esgotadas há tempos, que a Cia. Das letras publicou: “ Havana para um Infante Defunto” e “Mea Cuba”, cujos títulos já revelam um apuradíssimo sentido de humor cultural. É até possível que possamos descobrir que existem mais livros, além dos que conhecemos, que não se lêem somente por que se publicam!

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