quinta-feira, 30 de julho de 2009

A CADUQUICE DO MUNDO

.....Obrigada à Hilda Hilst por emprestar-me o título....

Na volta do cemitério, Marta estava cansada. Ao entrar em casa, chutou os sapatos, jogou a bolsa no sofá e foi direto à cozinha. Uma xícara de café e uma fruta seriam o suficiente para encerrar o dia, exaustivo física e emocionalmente. Não é fácil enterrar uma mãe. Bem cuidada numa casa de repouso, continuou até o fim reclamona, agressiva e sarcástica, mas lúcida apesar de centenária.
Sentada agora na sua poltrona preferida, bandeja no colo, Marta ligou a televisão. Quem sabe algo corriqueiro aliviaria o estresse, antes da hora de deitar. Nem se preocupou em procurar um canal específico: ficou olhando as imagens que corriam na sua frente, sem rumo nem sentido. Nem havia-se dado conta que não acionara o som.
De alguma forma sentiu que aquelas imagens a levariam de volta ao momento que, durante todo o dia, havia tentado identificar. Qual foi a primeira lembrança que tinha da sua própria mãe? Como era seu corpo, seu rosto, seu comportamento, sua voz quando Marta era criança? Foi só na adolescência que suas descobertas da vida, seus gostos repentinos e imperativos haviam começado a fazê-la olhar para a mãe como um livro didático que lhe indicava os rumos da vida, de uma vida que não era a que ela, Marta, estava finalmente vendo com seus próprios olhos.
As reproduções das pinturas de Picasso que ela levava para seu quarto, pregando na parede com tachinhas coloridas.
-"Onde já se viu os dois olhos no mesmo lado, parece um linguado! E chamam isto de arte? O mundo está acabando!!"
Enquanto o mundo dela parecia estar caducando, o da Marta era uma revelação diária: a emancipação da mulher, a revolução sexual, o homem na lua!
-"Para que meu Deus, com tanta fome no mundo! pra que gastar tanto dinheiro....Esta gente está louca!"
A progressiva erradicação do racismo, a sempre crescente tolerância ao antigo condenável, o telex que estava virando fax, os supersônicos a cruzarem os céus. E o tampax! a trazer um conforto quase orgástico nos dias mais incômodos.
-"Eu ehn, não é natural andar com um troço aí dentro o dia inteiro. Este mundo está completamente caduco!!"
-"Uma vergonha esses gays por aí!"
-"Já não se pode andar na rua sem ser assaltado!!"
-"Com todos os impostos que pagamos, os caras lá em cima ganham fortunas e ainda roubam!!"
As imagens continuavam correndo no vídeo colorido e Marta, xícara vazia na mão, tinha um nome martelando em seu cérebro, algo reminiscente de seus estudos, um pequeno livro de muitos contos, todos com os mesmos personagens: estórias picarescas de dois jovens foragidos vivendo, observando e participando dos podres de todos, dos ricos, dos pobres, dos vagabundos como eles. Traições, latrocínios, homicídios, adultérios, pedofilia, glutonice, extorsões, avareza, dissipação, desperdício. Todos os exageros e todas as licenciosidades: tudo, tudo estava lá. Tudo já estava lá. Mas onde?
Talvez amanhã, descansada e mais serena, ela procuraria aquele livrinho, se é que ainda o tinha.
Um bom banho, um pijama quente, uma última oração.
Ao apagar a luz, sua mente inesperadamente trouxe-lhe o nome: "Satiricon" escrito por Petrônio no "Ano I - DC".

4 comentários:

Tânia Tiburzio (TT) disse...

Adorei!

Ellen disse...

Minha Bruna (já me apropriei!)
A vida não é senão uma seqüência de momentos. Vivê-los. Registrá-los para recordá-los, reviver. Esquecer... Seria tão bom poder escolher!

Tamires F. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
concha celestino disse...

bruna, você está impossível!
escrevendo muito e cada vez melhor.
nada mais apropriado q esse título p/ seu conto, pois o mundo já caducou há muitos séculos e está podre, além de caduco. falta renová-lo, recomeçá-lo do zero, voltarmos a ser criança. A Ellen me fez pensar: escrevemos p/ reviver, explicar-nos,distorcerou endireitar os fatos? Me parece q é p/ transcender. Beijão, Concha