sábado, 24 de outubro de 2009

A LOJA DE BRINQUEDOS - Conto

Os cavalinhos de rodinhas estavam alvoroçados.
-Como alguém poderá escolher se eles se diferenciam só pela cor.....
-E aqueles pinos de boliche que tem cores diferentes sim, mas também tamanhos diferentes, e estão tão mal expostos que se confundem com peças de xadrez.
Mas o que mais enraivecia os cavalinhos era aquela boneca.
-Porque ela é tão grande, tão maior do qualquer outro brinquedo: não parece ser nem brinquedo nem boneca.....
-E olha aquela mulher que vê tudo do lado de fora e não se decide a entrar.
-Porque não entra e escolhe de uma vez...

A boneca é grande demais, cabelos lisos demais, sedosos demais e compridos demais; a boca vermelha demais. E parece estar quase sem roupa. A velha senhora do lado de lá da vitrine, está intrigada e pensativa. Intrigada pela estranheza da posição da boneca; pensativa por sua memoria estar sendo posta a prova. A boneca tem um sorriso parado, quase feliz; como se estivesse pensando numa cena romântica, num salão todo vermelho, onde ela, esguia e leve, dança no futuro, abraçada a um cavalheiro desconhecido, esguio e leve.
Sim, o sorriso parece feliz mas é fixo, pintado e desenhado como para não sair do lugar. E o olhar também é fixo, sem nuances de luz.

............Era como se a boneca fosse tão grande por ter crescido junto às lembranças da velha senhora. Olhos fixos, parados, como os da Titti, depois que a menina lhe enfiara um lápis, para ver o que tinham atrás que os fazia mexer, abrir e fechar.
E fechados ficaram, quando a abandonou, como morta, bracinhos esmagados e semi-nua, entre os escombros da casa onde nunca mais voltaria a morar.


terça-feira, 13 de outubro de 2009

EDUARDO E MÔNICA (O homem do conserto não vem?)

CONTO

"-Eduardo, não acredito que tudo voltou como há seis anos atrás. Ahi, Edu, Edu, queria tanto que a gente não se largasse mais..."
Beijos e arranhões, umidades, lençois atrapalhando e travesseiros no chão.
"-Mônica, minha Momô...quem falou em largar..."
Risadas, gritinhos, palavras gemidas acelerando os corpos. Nos intervalos pacatos, respirações profundas, restos de drinques por toda parte. Lembranças da joventude e pequenos relatos de vidas interrompidas.
"-A gente pensava que o Renato fez aquela música só pra nós"

...um dia se encontraram sem querer e conversaram muito pra tentar se conhecer...quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração...

"-E assim você casou com a Marcia; lembro dela, sempre deu em cima de você..Mas você nunca conheceu o Fonseca, né?

...não tó legal, não aguento mais birita...e ela riu e quis saber um pouco mais sobre o boyzinho que tentava impressionar...

"-Casei com ele porque voce se mandou pros Estados Unidos estudar matemática quântica...Que coisa....."
"-E ele é bom pra você?"
"-É, é sim; é fácil lidar com ele. Gosta de quase tudo o que eu gosto e, o que ele não gosta, posso fazer sozinha quando ele viaja. Agora, vê? Foi pra Proto Alegre semana passada e só volta depois de amanhã.."
"-Que bom a gente pode ser ver muuuito...Vem cá Momô, mais um pouquinho....Mas cadê o cara que o seu porteiro chamou pra resolver o problema da porta? Nunca vi apartamento como esse não ter entrada de serviço..."
"-Paciência, Edu, tudo vai dar certo..."
Mais um beijo e, com ele todo o resto, com fúria...
Boca ainda grudada nos lábios de Eduardo, Mônica retoma fôlego.
"-Olha nem sei como aconteceu: quando você chegou eu tranquei a porta e a chave não saiu mais. De tanto forçar acabou quebrando lá dentro..."

.....Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar ficou deitado e viu que horas eram enquanto Mônica tomava um conhaque....

"-Já são cinco e meia...Ciiiinco e meeia! O tal de Manoel não falou que o cara viria até as quatro?"
Descalça, acariciando os seios ainda quentes de outro corpo, Mônica vai calmamente até a cozinha. O telefone interno tem seu cheiro de fêmea.
"-Seu Manoel, o homem do conserto não vem?"
-"Já está aqui, Dona Mônica. Vou subir com ele, também para ajudar seu marido com as malas: ele acaba de chegar".


domingo, 11 de outubro de 2009

CARTA DE UM SUICIDA


Eu sei por que. E não tenho a quem dizer.
Ao mandar-lhe esta carta pelo correio, estou tendo a coragem de assumir publicamente o compromisso do meu suicídio, para não ter, na última hora, a covardia de desistir.
Meu navio sai amanhã cedo: esperarei o barulho do porto e o garrir das gaivotas desaparecerem. Quando só o ruido das turbinas orquestrar meus pensamentos, é que acabarei com esta minha vida tão diária que aos poucos me encolheu, me apagou.
E acabará assim: eu só, com a minha Beretta.
Não haverá velório, nem enterro, nem flores, nem o silêncio dos abraços de praxe. Estes rituais fariam muita gente sentir de ter cumprido deveres, apagando remorsos.
Ao retomar posse do apartamento, o senhor pode dispor de tudo, como quiser.
O quadro campestre na parede da sala, acima do divã, será suficiente para cobrir a multa pela quebra contratual do aluguel que encerrarei antes do vencimento. É um Boucher autêntico apesar de parecer esquálido por ter-me eu alimentado de suas cores durante meus anos em preto e branco.
Desejo-lhe que, à beira mar, o senhor continue vendo sempre, no horizonte claro e bem definido, os prenúncios de bons augúrios.
Desculpe tê-lo usado para dizer adeus.
E obrigado.

N.A. agradeço a Cortázar de quem roubei o suicida por ele esboçado em "A linha da mão"

sábado, 10 de outubro de 2009

CRONICA NORDESTINA, no mesmo dia, mesma pousada...

Pois é .
Não devo mesmo ser nordestina de raiz .
Não consegui ter a mesma sabedoria da Biú.
O filhote morreu nas minhas mãos hoje de tarde , ninguém sabe porquê .
Talvez estivesse já muito fraco quando o Edson achou.
Mas eu fiquei muito triste e não fui capaz de alegrar meu coração.
A Biú , como a maioria das pessoas daqui, sabem viver os momentos .
Como é dificil conseguir absorver essa sabedoria .
Mas, mãe, fiquei muito feliz e lisonjeada de ter sido publicada ......
depois, abri o e-mail e meus clientes ingleses anularam a vinda.
Vou deitar , rapidamente , com um livro.
Quem sabe o que o dia de amanhã trará .... apesar de eu " odiar " essa fala da Scarlet OHara.
Beijos pra você. Andrea .

Minha querida...Há muita diferença na intenção entre "quem sabe o que o dia de amanhã trará" e a frase original da Scarlet O'Hara "Tomorrow is another day". Na primeira há dúvida, na segunda, confiança. Você é minha filha: escolha a segunda.

CRONICA NORDESTINA, relato de uma emoção


Pois é . Ainda meio dormindo, como me é peculiar pela manhã, desço do meu quarto , pego o Ralph e vou ver onde está o Edson . Está na horta , aguando ainda no sol fraco , a couve , as berinjelas , a beterraba , a hortelã de folha miúda , o coentro e o manjericão. Logo me diz que encontrou um pelanco de martim pescador à sombra da casa de caseiro, pelo chão. Sorrio e acordo de vez .
Vamos lá ver o bebê que o Edson havia guardado na lavanderia .... por conta da presença felina do Baghera .
Eu nunca cuidei de filhote de passarinho. Ajeitamos o bicho numa caixa e lá vou eu pra internet . O bico já tem uns 5 cm e me preocupo em achar uma vasilha que corresponda a seu bico, de maneira que ele possa beber água. Como nada é por acaso na vida , me lembro da presença em meu freezer de uns peixinhos e umas ovas de peixe que meu afilhado Mickael e seu amigo Caio haviam tirado da água num dia de pescaria em julho, enquanto estavam de férias por aqui. Assim , decido batizar o filhote de Miko . Que é como madrinha chama afilhado....
Beijos a todos e bom dia ! Andrea

PS. Ao receber, faz poucos minutos, esta perola de espontaneidade, ganhei meu dia! E, agradecida, publico para que todos sorriam e arregacem as mangas.....
(Marcelino Freire teria aprovado)