O Discurso do Rei
Colin Firth e Geoffrey Rush: dois artistaços carregam o filme nas costas com suas interpretações, ambos dignos da premiação que só um levou. Uma fotografia competente eleva os dois à estratosfera durante os diálogos. E não somente isso. O fotógrafo consegue também criar uma metáfora muito expressiva: --Primeiro, nas imagens de neblina e chuva no e do interior de um carro onde o casal, que poderia ser um casal qualquer, é protegido por aquela impermeabilidade toda, enquanto troca dúvidas e angustias. --Depois pela visão impressionantemente bem conseguida do alto da nave central de Westminster que reduz praticamente a pó a imagem de quem está saindo dela.
O percurso de um homem a caminho do reinado de um País e da religião que é nele embutida. Helena Bonham-Carter, como atriz coadjuvante, no papel da esposa e depois rainha, só convenceu por ser apropriada fisicamente ao papel: quem lembra da rainha-mãe da atual Rainha Elisabeth, viu claramente que a atriz, ao envelhecer, será sua fiel imagem: pequena e roliça.
A primeira parte do filme, bastante enfadonha, é prolixa em algumas situações. Também, durante as várias tentativas da reeducação verbal, foi infeliz a referência às pedrinhas na boca com que - ao dizer do folclore - o gago Demóstenes tentava controlar laringe e traquéia. O que estragou mesmo foi a revelação - demasiadamente antecipada e numa cena ruim - da carreira frustrada de ator do "educador".
Tirou do público o impacto da descoberta, quando acusado pelo rei. O Diretor Tom Hopper dirigiu o filme com luvas cirúrgicas para não arranhar a já tão desgastada casa real. Um corretíssimo roteiro, quase documentário, que não pareceu trazer nenhuma contribuição exemplar à arte cinematográfica. Estou ficando cada vez mais exigente quando vou ao cinema. A arte já tem diretores que marcam com veemência parâmetros cada vez mais elevados. O Discurso do Rei é um bom filme. O melhor da safra?
CISNE NEGRO
Na fábula musicada por Tchaikovsky, os cisnes eram efetivamente dois e na maioria das montagens teatrais, dançados por duas bailarinas diferentes. Portman é arrasadora na revelação, minuto a minuto, de um personagem tão duplo quanto o papel dos cisnes, o branco e o preto, que deve dançar. Não somente mereceu o premio de melhor atriz, mas ela, Nina-bailarina, estabeleceu um parámetro bastante definitivo na identidade dos dois cisnes. Não estamos falando da identidade-bailarina (sabemos do virtuosismo das câmaras que nos enganam nos momentos mais eloquentes da dança) mas do empenho, do "inner-ego" da Nina-Portman E de cada um dos dois cisnes. Não devemos avaliar Portman como bailarina, apesar de ter ficado bem evidenciada a competência com que ela investiu-se do papel com as partes do seu corpo que podiam sublimá-lo. O roteirista assumiu tanto os personagens do "Lago dos Cisnes" que dá oportunidade ao coreógrafo de comportar-se como o Mago da fábula, enganando Nina quanto à escolha definitiva do papel, provocando assim na já conturbada dançarina, mais uma explosão de angustia. Como Nina, Portman lança mão de um semblante sombrio com que esconde a impaciência para com sua mãe; a furtividade com que rouba os apetrechos da rival; a sutileza com que os orgasmos "solos" a investem de um prazer ignorado. Aliás, é justamente então que reparamos na qualidade do Diretor. Ele conseguiu- evidentemente através de efeitos visuais rebuscadíssimos - que os arrepios da epidérmide da protagonista tivessem, em cada poro, a quase imperceptível consistência da pele onde, a qualquer momento, surgiriam plumas. É a paulatina transformação da mulher/ bailarina em cisne. E só percebi isso na segunda vez em que assisti o filme. O Diretor Darren Aronofsky - o mesmo que nos emocionou com aquele "Wrestler" trazendo de novo à ribalta o então sumido e excelente Mickey Rourke - criou em volta da protagonista um emaranhado de grades, cercas e reticulados para aprisionar-lhe o espírito: -- as paredes apertadas da casa onde mora; --o espelho de recortes geométricos na entrada do apartamento que lhe secionam o semblante ao passar; --seus percursos nas coxias estreitas do teatro, onde, até quando ela senta no chão para amarrar as sapatilhas ou preparar-se às provas, é sempre num canto tão agudo onde mal cabem suas costas; --ela nunca anda pelas ruas, ou está dentro do metrô, de um taxi, dentro da cabine de banheiro, ou rapidamente na saida de uma boate obscura; --ela só tem espaço na grande sala de ensaios, ou no saguão do teatro, assim mesmo quase achatada por uma imensa escultura negra e alada; A maior área aberta em que o Diretor a coloca é a praça em frente ao teatro, para depois de poucas frases trocadas com o coreógrafo, jogá-la num hospital visitando uma suicida. Esse Diretor, que assumiu para si os sentimentos e as trepidações de três cisnes - dois do bailado e um da protagonista - ainda foi capaz de criar um duelo verbal, agressivo e enternecedor, entre dois grandes intérpretes: Portman e Cassel. Bastaria só o momento em que Cassel-coreógrafo transforma voz, expressão corporal e olhar, ao dizer " Eu acabei de seduzir você, agora é a sua vez", para definir o personagem "coreógrafo". Um Vincent Cassel - que vinha de interpretações apenas corretas em papeis de pouco peso e muita movimentação - nos surpreende com nuances de sutis transformações interiores: passa da fase de mero observador técnico, à de provável aproveitador de meninas que fariam qualquer coisa para conseguir o papel de cisne; do frio mas diplomático descartador de talentos esgotados à gradativa capitulação perante um talento novo e arrasador sim, mas impregnado de inseguranças, medos, frustrações. Capitulação que o humaniza apesar de si mesmo. Há inúmeros outros detalhes que fazem desse filme uma obra tão marcante. O mais marcante de todos - e reconhecido - é Aronofsky ter escolhido Natalie Portman para o papel. Seu talento é indiscutível. Desde os 13 anos, no papel da pré-adolescente naquele "Leon" * de cortar o fólego, ela interpretou muitos filmes diferentes, pondo a prova sua capacidade eclética de transformação e amadurecimento. Eis uma atriz que, a menos de trinta anos de idade, parece ter esgotado a procura do personagem-desafio. Sua interpretação é tão arrebatadora quanto perigosa: dificilmente em sua vida profissional se deparará com outro papel tão definitivo.
*1994, produção Franco-Americana dirigido por Luc Besson, com Jean Reno Gary Oldman e Danny Aiello
Um comentário:
Assistimos a tantos filmes que às vezes esquecemos que é arte, tão anestesiados ficamos.
Por isso gostei do seu texto.Ele me fez parar para pensar.
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