quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O RETORNO

Ao entrar no saguão do aeroporto, um deslizar suave e a porta fecha-se às suas costas. Com ela, todas as outras. Check-in rápido, sala de embarque superlotada. Nos janelões sobre um céu de chumbo, a chuva, vagarosa, continua caindo. Deve ser por isso que anunciaram o atraso de uma hora para o vôo. Lá dentro, o calor obriga Silvia a despir o casaco; até a curta suéter de algodão sobre a camisa de seda é demais; anda em círculo pelas paredes, beirando as vitrines. Jornaleiro, bombonniére, boutiques, últimos redutos para compras e souvenires. Se pelo menos achasse uma poltrona livre para descarregar suas coisas.
O pouco que tirou do corpo agora parece muito pesado para carregar. Como se, tudo de uma vez, lhe tivessem jogado em cima os lençóis esverdeados, a coberta de fustão, os fios, o oxigênio; e a televisão lá no alto, em frente à cama. Tudo a apertar-lhe os braços, a lacerar-lhe a carne, e a alma. O zunido de aviões lá fora, lhe traz de novo o barulho do rodar desconexo das macas, o assobio das chamadas, as luzinhas vermelhas a piscar. De novo a escuridão em que a mergulharam para cancelar-lhe a dor. E o remorso. Naquele escuro vazio, sua boca urrava em silêncio, seu corpo não estava mais consigo, seus braços não alcançavam o sumiço daquele ser que se ia. Havia acordado enquanto ainda corria atrás de suas entranhas que com uma mão recolhia e com a outra recolocava no ventre rasgado, agora vazio. Seu corpo todo voltou a doer.
De novo fazia calor, muito calor.
Ouve chamar seu vôo e lá está Silvia, em direção à fila. Voltar para casa. A viagem havia sido uma boa solução. Marcos nunca saberia, mas estaria à sua chegada com o sorriso e a segurança de sempre, com os mais ardorosos detalhes do projeto que, em breve, os levaria a outro continente para a gravação de sua nova sinfonia no mais prestigioso selo do planeta.
Na porta do embarque, a boneca no colo de uma menina ao seu lado, olha fixamente para Silvia. No rostinho de plástico, o sorriso é pintado como para não sair do lugar. Os olhos também: sem nuances de luz, fixos. Como aqueles da sua única boneca, quando ela lhes havia fincado um lápis para ver o que os fazia mexer, abrir e fechar. Não devia tê-la abandonado entre os escombros da casa onde nunca mais voltaria a morar. Deveria tê-la resgatado, lá mesmo, depois do desmoronamento, semi-nua, quase morta com os braços esmagados debaixo das pedras ensanguentadas que escondiam outros corpos, pernas e rostos desconhecidos.
Chovia naquele dia também: a mesma chuva branda, chuva de enterros. Como os de hoje, na desolação de uma viagem, agora, sem volta.

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