-- Na porta, o olhar mesto. "Voltei".
-- Engoliu a surpresa, descansou as pálpebras e sorriu. "Venha".
Micro-conto inspirado na frase:
"Toda vida só é vida pela osmose da palavra e do fato,
em que a primeira reveste o segundo de seu traje de gala."
De autoria de Muriel Barbery, em seu livro
"Une gourmandise"
domingo, 21 de outubro de 2012
domingo, 14 de outubro de 2012
OSSOS
Em
sua já pouca lucidez, ele tenta lembrar alguns nomes.
Mentalmente
declama: tarso, metatarso, tíbia, ulna...
Nenhum
reage e portanto serão eles que, por mais tempo, provarão a
existência daquele homem.
No
branco que o envolve, o gotejar silencioso do soro a intervalos
precisos.
Nem
tem que ficar olhando, supõe-lhes a cadência e o barulho.
Ploct. Ploct.
Na
única mão desperta, o indicador permanece imóvel, encapuzado.
Os
outros quatro dedos acompanham o ritmo numa imperceptível
contração.
Falange,
ploct.
Falanginha,
ploct.
Falangeta,
ploct.
fa..lan...
plo..ct,
fal.......pl...
sábado, 6 de outubro de 2012
PLÁGIO? " MINHA VIDA SEM MIM" X " 'TUDO O QUE DESEJAMOS'
Dois
filmes realmente marcantes. Sem pieguices pela tragedia que contam.
Entre eles, uma distância de oito anos.
Nancy
Kincaid, é uma escritora americana que, entre outras obras,
escreveu, em 1987, o livro “Pretending the bed is a raft”
(Fazendo de conta que a cama é uma jangada) de onde a diretora de
cinema Catalã, Isabel Coixet extraiu o tema do filme de 2003, “Minha
Vida sem mim” tendo ela mesmo elaborado o roteiro.
Emmanuel
Carrére, é um escritor francês, bastante conhecido, que escreveu
em 2009, o livro “D'autres vies que la mienne” (Vidas outras que
não a minha) de onde ele mesmo elaborou o roteiro do filme “Tudo o
que desejamos” dirigido por Philippe Loiret em 2011.
As
histórias são idênticas em 95% dos detalhes.
As
duas protagonistas são jovens, ambas descobrem ter pouco tempo de
vida por uma doença já terminal, ambas recusam o tratamento inútil.
As
duas são casadas e tem dois filhos pequenos. As duas tem marido
provisoriamente sem emprego. As duas tem uma mãe de difícil
relacionamento.
Uma
acaba tendo um caso extra-conjugal e adianta-se em procurar outra mulher que possa satisfatoriamente
substitui-la tanto com os filhos como com o marido, e sua preocupação
maior é deixar fitas gravadas para que as filhas não a esqueçam.
A
segunda age exatamente da mesma forma só que sua maior preocupação
é conseguir, com a ajuda de um colega também advogado e juiz, ( um rerlacionamento platonicamente amoroso é apenas esboçado) que
leis sejam mudadas em defesa do consumidor.
Atenção:
Em nenhum dos dois filmes os planos que as protagonistas seguem, nos
levam a sentimentalismos baratos, pieguices ou estímulos lagrimais.
Os
dois tem muita classe: assinatura autoral de grife.
Coixet,
como cineasta, tem um currículo respeitável, tendo nos brindado com
filmes do calibre de “Vida secreta das palavras “ em 2005, um
capítulo marcante em “Paris Je t'aime” de 2006, e, com “Fatal”
de 2009, uma versão arrebatadora da obra de Philip Roth “The
dying animal”
Loiret,
é um cineasta de boa produção, não sei quantos de seus filmes
passaram por aqui, mas só consegui lembrar-me de um que foi
realmente inesquecível por ser curto, simples, carinhoso, mas
super bem desenvolvido até visualmente, que se chamou “La
lectrice” creio de 1989.
Não
sou autoridade em assuntos cinematográficos, nem tenho a
possibilidade de ler TODAS as resenhas de todos os filmes que
aparecem, mas fiquei surpresa que, em nenhuma das resenhas publicadas
a que tive acesso, sobre o merecidamente elogiado “Tudo o que
desejamos”, ninguém fez referencia a “Uma vida sem mim”. E
portanto a semelhança é brutal em tudo. Até na alta categoria em
que os dois filmes foram classificados quando entraram no mercado.
Então?
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
O NUNCA e O AGORA
Nunca
havia-me feito a pergunta.
Agora
já tenho a resposta.
Devo
à História Íntima da Leitura, às outras dezessete pessoas
com que partilhei a aventura do livro, à Editora Vagamundo e,
precipuamente, a Fabiana Turci que teve a idéia de registrar os
depoimentos de cada autor.
Foi
justo aquele DVD que me deu a resposta antes mesmo que eu tivesse-me
perguntado: como será que os outros me vêem? pois me vi como nunca
antes havia-me visto. Foi uma descoberta.
Hoje
sei que a musculatura do meu rosto tem trejeitos instintivos que revelam a intenção
de uma palavra ao mesmo tempo em que ela brota dos lábios. Há o
olhar malicioso acompanhando uma frase que embute , e só embute,
um sarcasmo. Há o bufar real e visível ao calcular rapidamente a
quantidade de anos que se passaram. E há o acompanhamento da mão
que dá leveza – ou peso – a um conceito já mentalmente
presente, cujas palavras ainda estão sendo garimpadas.
Mas
também há as rugas, a flacidez, o vagar do olhar pesado pelos
anos de buscas, de encantos e prazeres, de emoções e lágrimas,
de conquistas e derrotas. E de saudades.
Pura
embalagem.
O
mais edificante é justamente isso: todo o deletério do visual é só
embalagem para um conteúdo que parece-me ainda seguir a lógica do
seu fio condutor. Conteúdo que sei ser consciente, vibrante ,
sincero. E ainda válido.
Afinal esta aparência atual não me magoa nem
me incomoda. Tenho até certo orgulho dela. Ela é toda minha, sem
subterfúgios. E me lembra do que uma vez Anna Magnani recomendou aos
fotógrafos numa de suas últimas entrevistas:
“Não retoquem minha imagem, sobretudo não
me tirem as rugas: as consegui a duras penas, as conquistei uma por
uma”.
Ela tinha toda razão.
São minhas medalhas.
quarta-feira, 15 de agosto de 2012
VIAGEM NO TEMPO
Meu café está esfriando.
Culpa da moça que acaba de passar por aqui
levando na coleira um labrador loiro, com a calma de quem não vai a
lugar nenhum a não ser passear seu cachorro. Alpargatas coloridas,
camiseta e bermudas, nenhum enfeite, nem bolsinha; nada, só o
cachorro.
Passou e não consegui ver-lhe os olhos: o sol
diretamente no rosto, pálpebras ligeiramente franzidas, narizinho
reto, impertinente.
Fico torcendo para que ela volte pelo mesmo
caminho para vê-la contra o sol. Ou será que ela já estava
voltando...
Ansiedade estranha essa, que me faz esperar de
revê-la. Como se sua passagem tivesse-me desafiado a um duelo de
recordações e eu, ao recolher a luva, tivesse-me perdido nelas.
Tomo meu café frio, peço mais um e uma torta
de maçã para amenizar a espera; tenho a impressão que a
garçonete, agora, me olha de forma diferente.
O que estou fazendo eu, vestida desse jeito...
Não trabalho mais, mas saí de casa ao completo: meias, maquiagem,
pulseiras, bolsa. Para sentar ao sol no café da esquina!
Nunca fiz isso antes.
Mas algo assim já aconteceu. Naquela noite na
estação, via o céu ainda estrelado antes que o trem começasse
a correr enfiando-se na neblina. Uma imagem na plataforma, feito
epifania, havia ficado na minha retina: a menina com um cachorro, mas
era poodle abricó.
Agora tenho a impressão que ela está
voltando, mas ainda não quero olhar. Terminada a torta, rapidamente
tomo o café e fecho os olhos, cansada.
Ao abri-los me encontro naquela rua arborizada,
com uma menininha ao lado que se parece com minha filha. Pode ser ela
afinal, antes de crescer e ir-se, longe, onde tornou-se a mulher que
eu não vi amadurecer, onde ela não me viu envelhecer.
Mas a moça que agora volta a passar na minha
frente, tem olhos claros; casualmente olha para mim e sorri. Sorrio
de volta e tenho vontade de perguntar-lhe o nome: sei que
reconheceria a voz, mas prefiro não ouvi-la.
Pago a conta e saio andando no sentido
contrario.
Agora sou eu quem caminha com o sol nos olhos,
mas tenho óculos escuros para me refugiar.
quarta-feira, 18 de julho de 2012
PARA ROMA COM AMOR
Título
original: To Rome with Love
Produção: USA/Itália/Espanha
2012
Direção: Woody
Allen
Cast: Woody
Allen, Judy Davis, Ellen Page, Penelope Cruz, Alec Baldwin, Jesse
Isenberg
O
filme, nos mesmos padrões de “Meia noite em Paris”, cria uma
comédia que surge juntando turistas estrangeiros e italianos a
moradores da cidade, com a adição de algumas idéias estapafúrdias,
tudo temperado por lugares comuns, tanto em diálogos, - menos,
naturalmente, os ditos por ele mesmo – como em situações já
vistas. Flagrantes de traição, troca de esposas, ingenuidade da
recém casada que cai na lábia de um velho ator famoso, tudo em
torno de uma Roma como realmente ela é no viço de uma primavera
luxuriante.
Mas
ando meio cansada de ver Woody Allen idiotizando-se só para soltar
alguma frases de sarcasmo inteligente. Alguns dos seus filmes
realmente geniais já estão sendo exumados em festivais dedicados a
esse diretor agora em pleno Sunset Boulevard. E assim seja, contanto
que saiba manter a faculdade excepcional de saber, como soube nesse
filme, escolher uma Judy Davis para o papel da própria mulher e da
fantástica Ellen Page para ser uma Monica inigualável.
Amem.
sábado, 30 de junho de 2012
VIOLETA FOI PARA O CÉU
Título Original:
Violeta se fue a los Cielos
Diretor:
Andrés Wood
Produção:
Chile/Brasil/Argentina 2011
Cast:
Francisca Gavilán
Violeta
Parra ainda é grande nome da arte latino-americana e finalmente esse
filme, baseado no livro escrito por seu filho Angel, nos traz
informações bem mais amplas sobre a vida e a múltipla obra dessa
emblemática mulher cuja história nos chegou – durante os últimos
anos de sua vida – provavelmente deturpada pelas lentes
castradoras do momento político do nosso país e do dela.
Cantora,
compositora, pintora e escultora e, antes de mais nada, quintessencia
de “povo”. Povo chileno, qualquer povo limitado por séculos à
condição de colonizado, privado de oportunidades sociais, cujas
únicas fontes de cultura foram as herdadas da tradição verbal
andina.
Filha de
uma índia com um branco, professor de uma escola miserável numa
aldeia miserável, menina de rosto marcado por cicatrizes de
varíola, Violeta cresceu entre guitarras arrebentadas pelas
bebedeiras do pai, guardando seus sons dentro do peito numa ansiedade
criativa. Foi andando de casa em casa, entre os núcleos mais
longínquos, registrando histórias, sons e canções dos mais
velhos, que começou a coletar o material necessário para tirar de
dentro de si mesma, os primeiros acordes. Suas primeiras canções e
baladas não podiam deixar de ser o que foram: lamentos e esperanças
de vida melhor, revoltas e brados de protesto inexoravelmente a
caminho de um ideal proletário facilmente transformado em
engajamento marxista.
É justo
de países comunistas que vem seus primeiros sucessos musicais, suas
primeiras viagens ao exterior, para as quais até deixa seus filhos
ainda pequenos aos cuidados dos maiorzinhos. É a simplicidade de
seus versos, a profundidade das imagens aparentes só bucólicas e
infantis, que despertam a admiração lá fora, onde a vida é sempre
mais fácil, onde as oportunidades estão ao alcance de muitos ou
quase todos . Seguindo um jovem suíço por quem se apaixona, é que
em Paris, começa a pintar quadros e a bordar painéis, recriando
cenas dos povos andinos, suas cores e suas misérias, obras que
merecem a atenção de um dos setores de divulgação temporária do
Louvre. A notoriedade internacional consegue que o prefeito da zona
onde vive no Chile, conceda um espaço para que construa uma tenda
que ela chega a chamar faculdade/escola, onde viverá criando um
palco permanente da cultura indígena através de suas canções e de
seus painéis. Será a perda daquele suíço, bem mais jovem do que
ela, que transformará sua vida do abandono de suas próprias
aspirações, até o suicídio.
A grande
interpretação de Francisca Gravilán leva ao espectador uma Violeta
de densidade emocional vibrante e magnética. O filme não pretende
tornar Violeta Parra uma heroína, mas deixa dela, sim, a força de
uma mulher do povo que “é” sua própria terra e que sempre
viveu dela e nela “como el musguito en la piedra”...
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