quarta-feira, 12 de novembro de 2008

CRIANÇAS - Conto


Porte ainda seguro e ágil aos setenta e oito anos, o homem sentia-se ainda mais revigorado naquela manhã fresca e ensolarada. Descia a avenida curioso de descobrir se reconheceria a esquina onde deveria virar a esquerda para ir ao Museu. Lembrava que, ao atravessar, veria uma igrejinha em frente à qual, anos atrás, havia comprado de um artista de rua, uma linda gravura: a minúscula imagem de uma mulher em semi-perfil, olhando um passarinho pousado no seu ombro, que lhe oferecia um pequeno buquê de flores do campo. O artista jovem, barbudo e jovial, sorrira alegremente: “Está levando o que o Museu aí ao lado recusou !” Tereza havia adorado a gravura e a estória.
Tereza. Já naquela época, ela não viajava mais. Apesar de seu espírito combativo enfrentar tudo com coragem e até com algum humor, o Alzeimer afetara seu equilíbrio e ela sabia que a qualquer momento poderia-se ausentar, assim, de repente e sem perceber.
Esta viagem representava para ele a aposentadoria real. Ao voltar, largaria assessorias, diretorias honoríficas, orientação de investimentos para seus filhos e amigos. Entre a varanda da casa de campo para fazer companhia a Tereza, enquanto ela pudesse permanecer em família, e o seu pequeno escritório ao lado do alpendre, começaria a escrever. Queria reler sua vida, lembrar sua infância, seus anos universitários, os projetos realizados, as utopias ainda na gaveta e as já atiradas ao lixo. Queria preparar-se para a tranqüilidade, e talvez a solidão, de seus anos futuros. Quantos? Rever ao redor do mundo o que lhe dera tanto prazer outrora, seria como recarregar as baterias para a serenidade.
De repente soube estar quase chegando. O ar frizante da manhã de primavera animou-o a apertar o passo. Ao olhar o relógio, percebeu que o Museu ainda não estaria aberto. Poderia entrar na Livraria em frente e ver as novidades: gostava daquela livraria antiga, suas vitrines emolduradas de madeira entalhada; modernizada em seus vidros não refletivos, sua entrada imponente ainda ostentava puxadores de bronze artístico encaixados em cristais bisotê que lançavam reflexos azulados e esverdeados como os lustres de certos castelos.
Certo, a Livraria primeiro. O cartaz na primeira vitrine anunciava ,no interior, a exposição retrospectiva de um grande fotógrafo; na segunda o lançamento de seu livro: alguns empilhados e outros, cujas páginas abertas, projetavam algumas de suas mais importantes fotos. Irving Penn, o fotógrafo da cidade. Entre um ângulo inusitado da ponte Verazzano, a vista sombria das velhas casas do Bronx e o perfil solitário das fábricas abandonadas, uma menina estava olhando para ele, de baixo para cima, mãos escondidas num camisolão branco, muita luz na franjinha aloirada. Estranhamente, sua legenda em francês: “enfant de New York, 1953”.
Franziu a testa, perturbado: esta criatura deveria ter hoje, mais de cinqüenta anos... Estaria ela agora aqui? Teria o artista acompanhado a vida daquela menina ou teria sido ela um modelo casual?
Entrou com inesperado interesse. Ficou encantando com o que viu, especialmente por serem todas aquelas fotos em preto e branco. Suas sombras, suas infinidades de cinza, a imperturbável estática das fotos, tinham uma verbosidade descritiva e barulhenta ao mesmo tempo. Parou em frente à ampliação da menina de camisolão branco. Tinha algo nela, algo que lhe dizia algo, algo que o levava para algum lugar, longe no espaço, longe no tempo.
Saiu angustiado. Queria entrar no Museu e, antes de ver qualquer outra coisa, queria sentar na cafeteria ao ar livre, concentrar-se, tomar algo nos jardins repletos de esculturas e arbustos. Estava ainda aí a cabra de Picasso, com seu ventre que parecia moldado numa cesta de vime, daquelas em que se poe o coalho para conseguir o queijo: estava lá o humor cáustico do espanhol que, ao mudar-se para a costa francesa, não dispensaria, nunca mais, seus queijos picantes.
Sentou debaixo de um guarda-sol branco, quadrado, cuja sombra desenhava, em volta da mesa e da sua cadeira, um recinto bem definido, como que a limitar-lhe os pensamentos, as perguntas, as angustias. Quis abstrair-se daquilo que o atormentava: sem levantar-se correu os olhos pelo resto do jardim reconhecendo coisa por coisa. O velho cabriolé de Dalí cheio de musgo regado por invisíveis mangueiras que o mantinham úmido entre os caracóis que circulavam por fora e, por dentro, na nudez do manequim. O cavalo esguio do Giacometti, de bronze escuro e superfície áspera, como tivesse sido composto de pequenos e grandes cones de areia molhada por uma criança inventando sorvetes. De longe, identificou coisas novas: um animal enorme de gordo, provavelmente a mais recente aquisição de Botero; um grande dedo polegar pintado de vermelho e uma lasca de mármore branco infestado de formigas de arame multicolorido. De quem serão... Sempre novo, sempre vanguarda, este museu, sempre reconhecendo além das artes, o poder e a beleza do design.
Por tê-lo visto premiado naquele museu, havia presenteado Tereza com o “Movado 1968”, o primeiro relógio sem ponteiros, fundo de esmalte preto, uma gota de ouro branco nas doze horas, único ponto de referência para sua leitura.
De repente, agora, não queria levantar daí. O acervo ele conhecia; mas sempre haveria algo novo em alguma sala especial, certamente algum outro design premiado. O mundo estava cheio de artistas criativos, inovadores fabulosos. Mas era naquele jardim que ele queria ficar. Sentia necessidade do ar livre. Por que? Depois do primeiro reconhecimento do que tinha ao seu redor, era a imagem daquela “enfant de New York, 1953” que retornava sempre à sua frente. Quantas vezes havia estado na cidade e nunca havia conhecido nenhuma criança, fora as que vira na rua, nos restaurantes, nos hotéis que freqüentava. Entretanto era como se ele conhecesse aquele olhar de uma outra vida, de outro lugar, de um outro mundo.
Tentou pensar em outras coisas. Resolveu almoçar lá mesmo, para tragar outras sensações, para concentrar-se em algo que lhe trouxesse outro tipo de prazer. Viu, no menu, omelete de queijo de cabra com legumes ao vapor; um copo de vinho branco seria ideal. Em homenagem a Picasso, fez o pedido à garçonete que o atendeu com sorriso lacônico e, para esperar, começou a folhear o catálogo da Livraria. Em matéria de lançamentos era difícil escolher entre romances, biografias e panoramas de tudo quanto era especialidade, arquitetura, engenharia, design, até moda. Poderia comprar um lindo livro sobre a moda para Tereza: tão chique, ela que sempre sabia usar uma extravagância e continuar elegante.
Um gole de vinho antes de começar a comer, deu-lhe sensação de frescor e alívio. Ao lado do prato, o catálogo ficara aberto na página de Penn, e lá estava de novo aquele olhar, de baixo para cima, braços encobertos por camisolão branco, luz na franja dourada. Só uma garotinha. Agora podia observá-la melhor: uma expressão quase adulta, olhos muito grandes para uma boca tão pequena, olheiras profundas demais para uma criança; os lábios tristes, criavam um sombreado intrigante sobre o queixo. Por que ela não ergue a cabeça, por que não olha de frente? Timidez, medo? Seria curiosidade disfarçada? É isto, isto mesmo: ela quer fingir que não está olhando. É isto.

Como aquela menininha que ficava do outro lado do torrente enquanto eu tentava pescar, com caniço e anzóis improvisados, algum peixinho que subisse a corrente, quem sabe alguma truta como meu pai sabia fazer. Há quanto anos? Onde era mesmo? Sim, lá num vale escondido entre as colinas da Toscana. De repente este vinho tem o cheiro de minhas iscas debaixo do sol, do respingo da água que corria sobre aquelas pedras coberta de algas e musgos; tem o sabor da limonada que mamãe me dava, seriamente, quando eu anunciava, como se fosse uma grande aventura, que iria pescar. E na maioria da vezes lá estava a menina, do outro lado da água, com o avental branco da escola, a espiar-me fazendo de conta que não olha. Mas ela não era loira e não usava franja. Tinhas duas trancinha amarradas no topo da cabeça e cabelo castanho. E aquele olhar. O mesmo olhar da garotinha americana desconhecida, que agora me leva de volta à minha infância, que me pressiona para voltar. Voltar rápido: preciso guardar este momento, ampliá-lo, descrevê-lo, reescrevê-lo, como fosse a única maneira de contar minha estória a mi mesmo. É lá naquele olhar que minha estória começa, recomeça, tem vida. E se agora ele volta à minha memória, é por que em toda a minha vida, inconscientemente, me acompanhou sempre. Devo ter lembrado dele, muitas vezes, muitas mais vezes do que me lembre.
Comprar o livro com aquela foto dentro? Devo? Quero? Ela está guardada dentro de mim há pelo menos setenta anos e eu não sabia.
Sempre me pertenceu, é minha.
Como ousa aquele Penn?...


Um comentário:

Escrevivendo disse...

Bruna querida,

Não pudemos conversar com calma ainda, mas o que posso dizer desse texto senão somente elogiá-lo e tecer a respeito dele os mais encomiosos comentários? É magnífico! Um conto (crônica, sei lá) que devorei; não sosseguei enquanto não cheguei a seu fim!

Esplêndido! Magnífica a forma como você deu vida àquela criança que existiu outrora.

Beijos,

Loreta