domingo, 11 de outubro de 2009

CARTA DE UM SUICIDA


Eu sei por que. E não tenho a quem dizer.
Ao mandar-lhe esta carta pelo correio, estou tendo a coragem de assumir publicamente o compromisso do meu suicídio, para não ter, na última hora, a covardia de desistir.
Meu navio sai amanhã cedo: esperarei o barulho do porto e o garrir das gaivotas desaparecerem. Quando só o ruido das turbinas orquestrar meus pensamentos, é que acabarei com esta minha vida tão diária que aos poucos me encolheu, me apagou.
E acabará assim: eu só, com a minha Beretta.
Não haverá velório, nem enterro, nem flores, nem o silêncio dos abraços de praxe. Estes rituais fariam muita gente sentir de ter cumprido deveres, apagando remorsos.
Ao retomar posse do apartamento, o senhor pode dispor de tudo, como quiser.
O quadro campestre na parede da sala, acima do divã, será suficiente para cobrir a multa pela quebra contratual do aluguel que encerrarei antes do vencimento. É um Boucher autêntico apesar de parecer esquálido por ter-me eu alimentado de suas cores durante meus anos em preto e branco.
Desejo-lhe que, à beira mar, o senhor continue vendo sempre, no horizonte claro e bem definido, os prenúncios de bons augúrios.
Desculpe tê-lo usado para dizer adeus.
E obrigado.

N.A. agradeço a Cortázar de quem roubei o suicida por ele esboçado em "A linha da mão"

4 comentários:

Benedito Deíta disse...

Lindo - sem marcas: vida tão diária, me encolhendo,..., apagando remorosos,... Visão tão subjetiva: esquálido,alimentando de cores a vida em preto e branco. ´E como quando, envolvidos pela imaginação, vemos carros parados andar, mortos respirarem,...
Mas será que a sua história não mereceria um enredo mais recheado?

Blog da Bruna disse...

Meu caro Bené! não me atreveria.
"Carta de um suicida" foi tema Evandro Affonso Ferreira sugeriu para a oficina da Márcia Tiburi (ela faltou à primeira aula e ele substituiu). Eu havia gostado muuuito do conto do Cortazar em que ele esboça - aliás só menciona- a presença de um suicida. Peguei o gancho só para criar uma carta, mas não poderia jamais enriquecer (logo eu, quem???) o enredo de um Cortázar. E, dequalquer forma, tudo a favor da concisão! o leitor da carta que eu criei tem o suficiente para dar à personagem uma estoria....

Benedito Deíta disse...

A concisão não tem a ver com o tamanho. posderia ser pequeno e prolixo, não acha. Talvez o tamanho a favoreça, só não a determina.

Lohan Lage Pignone disse...

Um dos textos mais lindos que já li. Acho que essas palavras resumem o que agora sinto.
Muito prazer em ''embarcar'' neste blog. Parabéns, já virei seu fã;
Lohan Lage Pignone, autor do blog Autores S/A.