segunda-feira, 22 de março de 2010

MANGANELLI E EU


*** Hoje levei meu amigo Giorgio Manganelli a um passeio pela cidade e, no fim da tarde, ao cinema assistir "Fogo e Paixão" dos arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. Giorgio não conhece suficientemente a cidade para apreciar o filme, mas me agradeceu: conhecia um dos panoramas.

É perigoso caminhar pelo elevado, além de proibido. Mas o castelinho está lá. Feio e ruim de proporções, como se saído só de lembranças infantis. Continua lá, desde sempre. O homem não sabe há quantos anos o viu pela primeira vez, mas ainda sente o ímpeto de cancelar de seus olhos aquela construção horripilante.
Impossível: ele não só o vê, ele o olha! Do alto do viaduto, descobre mais um detalhe de decadência, mais um requadro de vidro trincado no janelão que abre sobre o terraço; mais sujeira de pombos no parapeito, mais lácrimas empretecidas pela fuligem, escorridas pelas paredes externas já sem cor, entre labirintos de mofo. Continua cenário de fábula, de conto de fadas gasto, regasto, rançoso, embalsamado...
Seus olhos recebem a untuosidade do tempo e as narinas as lembranças de pratos abandonados na mesa, com ossos escalpelados, talheres cruzados, guardanapos amassados. Ainda lê neles as espectativas não alcançadas.
Ele sabe por que acaba voltando. Já não quer surpreender-se com o aparecimento da moça, quase uma fada ...-ou seria a Branca de Neve...- que saisse ao balcão procurando-o com olhos, sorriso e mãos de arpista. Mas acaba voltando e olhando. Agora a figura da mulher, que atravessou o tempo e as esperanças, não mais passa pela porta-janela para alcançar o parapeito. Ele só veria suas rugas, o olhar parado, pálpebras caidas como os seios dentro do decote, sua roupagem de conto de fadas, desbotada e enrugada, a gola branca engomada em arco a emoldurar o penteado rebuscado, gasto, regasto, embalsamado...
E o homem volta, olha e contempla. Começa a tirar disso sua paz. É pouco o que lhe sobrou, mas é sólido, pois cada vez que sobe ao viaduto, debruçado no elevado, arranca, e recolhe, uma pedra, um caco, uma trave. Até o dia em que finalmente, dará por encerradas aquelas tolas aspirações idas, gastas, regastas, rançosas, embalsamadas...
Continua indo para tocar só com os olhos, a certeza de ter conseguido fugir a tempo da ilusão. Uma ratoeira. Uma trapaça. Como a arquitetura do castelinho, como a mulher do parapeito, como as fendas dos muros erguidos sobre aquele nada, irremediavelmente cinzento.
Hoje, quase apaziguado, duvidou: seria o castelinho uma real construção de um mau arquiteto, ou só a miragem de um horizonte gasto, regasto, rançoso, embalsamado......
Negrito

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