segunda-feira, 6 de setembro de 2010

JÚLIO CORTÁZAR E SEU CONTO "AS LINHAS DA MÃO"

É a morte voluntária e sua corriqueira grande insignificância. Uma retrospectiva em que o autor percorre o caminho da vida de um desconhecido, caminho esse que parece ser só um trajeto físico e urbano. Ao mencionar um quadro de Boucher - pintor do século XVI de cenas predominantemente bucólicas - Cortázar confere certa serenidade à decisão final daquele ser anônimo que nos parece sorrir lembrando a mulher amada reclinada num sofá; ou sobressaltado pelo lampejar de raios; ou amargurado pela reminiscência das lindas pernas de uma loira que ele poderia ter abordado mas não o fez.
A posição do autor é isenta, impessoal: respeita a decisão de quem escolheu sair da vida tão totalmente e anonimamente que perpetra o suicídio num navio, fora do núcleo onde viveu. E não importa quem ele fosse: marinheiro, ou amante rejeitado, ou exilado repudiado pelo próprio país. Nem importa a razão de sua decisão: qualquer que ela tenha sido, carta de abandono, aviso de extradição ou vaticínio de cartomante. É assim que o suicida, - que já ouve o apito da partida do navio e que já pode prever a gritaria das gaivotas na espuma da popa - tem certeza que só será achado no alto mar, aquele mar que será sua sepultura. O dito e o não-dito: amarga poesia.
Na metáfora usada pela linha da vida que percorre casas e ruas, o autor apresenta como argumento complementar, a impermeabilidade de uma cidade que, apesar da tragedia em curso, continuará a ser a mesma cidade. Perderá um ser mas, sem emoção, continuará a renovar-se nos quadros das paredes, nas costas de uma mulher, nos tetos cobertos de antenas e para-raios, no trânsito das ruas, na má vontade dos conferentes alfandegários, nos navios chegando e noutros partindo levando seus floridos turistas. E, quem sabe...talvez mais um suicida a bordo.
Júlio Cortázar, considerado pela Enciclopédia Larousse (edição 1977) um escritor que mescla realismo social e político à inspiração fantástica, foi definido, por seu amigo, o cineasta Antonioni, "un comunista all'acqua di rose" (comunista floreado idealista) por seu engajamento político sem todavia ter-se envolvido em luta armada, mas contando unicamente com a força de suas palavras. Apesar de sua tendência ao fantástico, ele frequentemente - como fez agora com Boucher - cita em seus contos, pintores das mais diversas escolas (Tiziano, Holbein, Magritte), comprovando assim estar confortável como pensador de qualquer tendência, do bucólico ao renascentista e do retratismo clássico ao mais ousado surrealismo.
No conto "As linhas da mão", revela-se ao leitor como um autor essencialmente "concretista", de uma concisão muito peculiar e, ao mesmo tempo, com um sentido muito preciso de uma realidade viva sim, mas oculta. Por pesquisa, por instinto ou por sofrida experiência, Cortázar tem um profundo conhecimento do "pathos" humano, tanto de personagens quanto de leitores. A definição de "pathos" não é aqui somente a "paixão" humana, mas a inclusão intencional, e com alguma enfase, das confusões da alma e suas manifestações mais obscuras. Só que Cortázar não as descereve mas as deixa implícitas nas ações de seus personagens. Em seus contos eles são anônimos, sem nacionalidades, sem identidade, frequentemente sem nome. Tanto faz que eles se chamem João, estejam em Roma ou Paris, sejam argentinos, belgas ou escandinavos: eles se comportam como indivíduos sem bagagem histórica e não são afeitos a obediências ancestrais. São indivíduos na mais completa asserção da palavra: seres únicos naquele preciso momento, naquela precisa situação. E sem julgamento.
Cortázar sabe destilar um sarcasmo quase jocoso, como fez no conto "Sábio com buraco na memória": tão forte quanto "As linhas da mão", aquele texto é ainda mais conciso, e torna-se sarcástico e folclórico, misturando casos históricos, citações populares, pequenos provérbios e frases feitas. Talvez justamente um dos textos mais representativos das qualidades que fizeram de Cortázar um dos escritores contemporâneos mais universais entre os autores latino-americanos.
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2 comentários:

COSER disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Bruna,
o que falou a respeito da característica do Cortázar não ser só fantástica, mas beber um pouco do romance, enfim... e tantas outras vanguardas, prova que você consegue sentir, ou pelo menos alcançar, o modo como ele enxerga o mundo.
Como sempre o texto está impecável.
Virei fã.
beijo,
Raquel.