terça-feira, 24 de agosto de 2010

CLARICE LISPECTOR E O SEU "POR ENQUANTO"

No conto "Por Enquanto" Clarice Lispector trata da solidão. E não só a de viver só, mas também a das horas que parecem não passar entre compromissos e afazeres, entre hábitos individuais e sociais, entre uma vontade e outra. O problema é que aqueles "por enquanto" são "entre-atos" que nos obrigam a achar o que fazer, onde colocar as mãos, onde sentar; enquanto esperamos o momento destinado a outras coisas, eles se transformam no perigo de sentir-nos não mais sozinhos, mas inúteis. E é aí que recorremos a coisas sem importância, como comer fora de hora sem necessidade e sem fome, só para tentar achar alguém ao nosso redor, nem que seja a cozinheira.
Os "por enquanto", os "entre-atos" se transformam mais uma vez: em "para que". E os "para que" de Clarice são perigosos demais pois podem levar a respostas que não gostariamos de saber dar. Então ela, corajosamente, esforça-se para substituir os "para que" com os "por enquanto" de antes. O leitor pergunta-se: para que marcou uma visita para as oito horas? Arrependeu-se de te-la aceito? E quem será? E para que aquela visita? Ou a programou somente para que o dia das mães não terminasse com o almoço com o filho? Um filho que tem tão pouco volume na história, que, aguardando a hora de sair de casa para almoçar com a mãe, preenche o tempo indo fazer pipí. Esse filho que não mereceu nenhuma descrição outra que a de, obedientemente, ter deixado de levar presentes. Mas quem é ele, como é? Não sabemos.
Entretanto Clarice passa detalhes do almoço: a carne, o vinho. E mais tarde nos da uma comovedora descrição da cozinheira: seu peso cheio de receitas e de sentimentos conflitantes, sua onipresença, seu rosto liso. Só estes detalhes são quase uma carícia. É ela a "não-solidão" de Clarice. É ela quem contribui a dissipar os seus "por enquanto", os "entre-atos", os "para que".
O argumento complementar é a recusa implícita de admitir que aqueles lapsos de tempo podem acabar sendo tão grandes, tão frequentes e tão contínuos que arriscam de transformar-se em definitivas acomodações, em vácuos rotineiros, em assustadores "para sempre" no aguardo da ação final, passiva mas indefectível, que é a morte.
É esse traço que reencontramos, desta vez bem assumido, no final de "A hora da estrela": Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Eu também?
O estilo do conto "Por enquanto", - seus saltos repentinos de um argumento para outro, as idas e voltas, os interlúdios entre escrever para esperar, comer para esperar, trocar de roupa, ver televisão, tudo para esperar - parece leve, casual, só porquê é o dia-a-dia. Mas só parece. Ele é intencionalmente trabalhado para que suas frases curtas obriguem o leitor a pausas mais frequentes, enfatizando ainda mais a lentidão do passar do tempo, aumentando a angustia do relógio.
Tudo isto distancia o incauto do estilo ofegante que a autora imprimiu à sua anterior "Água viva", onde ela nos atropela com um mar de palavras, adjetivos, e ansiedades: era o desespero da falta de inspiração de um artista. "Agua viva" foi o ante-parto da inspiração criativa de uma obra. Como numa medusa - tentacular mas translúcida -, dá para sentir as contrações quase vaginais de suas bainhas que impulsionam o animalzinho mar acima, em direção à luz, à claridade interior, esperando o surgir da idéia e sua realização. Confirmação e contraste: a inexistência temporária da criatividade artística, com a quase invisibilidade do celenterado.
Mais contraste ainda é a Clarice de "A hora da estrela", pois numa tentativa de eximir-se da autoria do personagem Macabéa, ela inventa um narrador. Ato de modéstia, pois aquele personagem -a autora sabe - é roubado à realidade de mulheres patéticas e temerárias que se aventuram pelas metrópoles e são engolidas por elas.
Esse contraste, entretanto, cai novamente nas últimas linhas daquela pequena obra prima na qual Clarice coloca, na boca do autor fictício, não somente o "me lembrei que a gente morre", mas - como uma reflexão tardia - um daqueles mesmos "por enquanto" tão seus:
"...por enquanto é tempo de morangos"
É a caleidoscópica Clarice, reconhecível ou não. E, quando irreconhecível, será sempre uma grata surpresa redescobri-la.
Encaixa-se perfeitamente no conto "Por enquanto", uma dica de Cortázar, citada na contracapa do livro "Histórias de Cronópios e de Famas":
"Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio,
estão dando um pequeno inferno enfeitado.
Uma corrente de rosas
Um calabouço de ar"

Nenhum comentário: