Resenha do livro de Chico Buarque, editora Companhia das Letras, 2009
Finalmente um romance em que Buarque deixa de escrever apenas o relato de uma história como aconteceu em seus livros anteriores, para mim quase irrelevantes.
Em "Leite Derramado" nos deparamos com lembranças e raciocínios magistralmente implodidos na mente de um velho senhor já a caminho da esclerose e da senilidade. O protagonista reconstrói em flashes, nem sempre cronológicos, não somente a própria vida, mas a dos antepassados, desde a opulência das grandes fazendas, até a mais completa decadência moral e financeira do presente. Entretanto a saga daquela família nos chega perfeitamente compreensível e clara pelo cuidado com que o autor a enquadra em cada episódio, com a simplicidade impessoal de quem já perdeu a paixão.
De grande importância é o momento em que o personagem vê pela primeira vez Matilde, o grande amor de sua vida. A imagem, que pontua toda a narrativa, é repetida em muitos capítulos como fosse um refrão: refrão recorrente a cada instante em que o velho parece estar escolhendo as recordações melhores para encaminhar-se ao inapelável final. É nesse final que Buarque coloca o personagem, já narrador que é de toda a história, como narrador também da própria morte. E isso não é para qualquer um.
Em nenhum momento da leitura do texto, nos é impôsto o ritmo angustiante de uma "Construção" nem a monotonia rotineira do "Quotidiano". Buarque parece ter reencontrado sua linguagem poética com a releitura do seu poder de compositor. Afinal as boas canções não deixam de ser grandes monólogos, melhor, solilóquios musicados, e eis aí o Chico de volta como exímio letrista.
E se é verdade que a poética de Chico Buarque transcende a poesia romântica dos Vinícius e dos Jobins, nesse livro ele a entrega ao leitor com condescendência, deixando que cada um arpeje os próprios acordes conforme o ponto em que se encontra sua trajetória de vida.
Daremos aqui ao Chico Buarque de Hollanda as boas vindas ao rol dos Escritores.
PS- Fui investigada por alguns que me cobraram o que, afinal, esse livro significou para mim. Basicamente me indicou o caminho para reavaliar minha opinião sobre o Chico romancista.
Existe também o alerta - mas não acredito tenha sido esta a intenção do autor - de que as doenças do corpo se anunciam por sintomas, até mesmo sem dor, ou por restrições e limitações físicas. A falência da mente é inesperada, silenciosa, indolor; mas não elimina as dores das outras doenças próprias da idade avançada, nem elimina as veleidades e os desejos que nos acompanham durante a vida toda. Só as reveste de maior ansiedade e frequentemente de agressividade, o que é imperceptível ao paciente e deletério para seu entourage.
Estou tranquila: se acontecer comigo, não vou perceber, mas também não vou poder, lamentavelmente, compadecer os que convivem ao meu redor, do que desde já me penitencio.
E seja o que Deus quiser...
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
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