quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

CRÔNICAS DOLOMÍTICAS...

Dolomíta é o nome geológico de uma rocha incomum. É muito típica de uma parte pequena dos Alpes, quase no último trecho à direita de quem olha o mapa, da cadeia montanhosa em arco que forma a fronteira natural da Itália. A rocha tem como característica uma coloração rosada que por seus cristais embutidos - e não visíveis - cria uma refração única dos raios solares colorindo as pistas nevadas e até os vales verdes mais longinquos.
Foi lá, uma vez ,que admiramos o fenômeno de num pico nevado e ensolarado. No fim da tarde, surpreendentemente, nos foi negada a descida pelo teleférico. O encarregado explicou que havia sido divulgada há poucos minutos a chegada de uma tempestade de vento e neve que colocaria em perigo o trajeto.
Chegaram mais dois casais com o mesmo problema e todos fomos encaminhados para uma "báita": este é o nome que se dá aos refúgios permanentemente espalhados em diversos pontos alpinos para todo tipo de emergências. O mais perto estaria a mais ou menos 150/200 metros de distância, detrás de um pico.
Foi difícil chegar lá, pois todos tinhamos botas para neve, até com os pregos, mas não as raquetes necessárias para não afundar. Enfim, sim chegamos.
Ao entrar tivemos que esperar que dois esquiadores saissem pela única porta escoltando um cachorro San-Bernardo com seu barrilzinho de conhaque no pescoço e um curioso brinco vermelho fincado numa das orelhas. Era a ronda obrigatória em busca de pessoas perdidas ou feridas. Ficamos todos apreensivos imaginando que, sim, afinal, alguém poderia ter ficado para trás.
O interior da báita era quente, confortável, com pufes ao redor das paredes e ao lado da lareira onde, por uma corrente, estava suspenso um balde de cobre com água fervendo. A encarregada, uma velha senhora simpática, descartou com um grande gesto o gatão que estava dormindo no seu colo e que correu a aninhar-se junto de um Pastor-Alemão, que também dormia tranquilo num canto do salão perto de uma pilha de lenha.
A velha senhora, pareceia uma pintura de Bruegel: aparentava mais do que seus 50/60 anos, pela pele queimada do sol, sulcos profundos mas um sorriso encorajador; malha grossa, calças enormes metidas dentro de longas botas peludas, cabelo no topo da cabeça amarrado com um chumaço de fitas coloridas.
Ao distribuir canecas com saquinhos de chá para que nos servíssemos da água da lareira, falava algo lindo mas ininteligível: seguramente um dos dialetos locais, mistura de véneto, alemão da Áustria transalpina e do eslavo adriático.
Canecas na mão, algumas encrementadas com doses de aguardente, começamos e conhecer-nos enquanto o vento uivava lá fora e a neve caia vagarosamente e de tempo em tempo, era varrida por grandes sopros silenciosos.
Os holandeses, falando um inglês arranhado, eram fluoricultores em Keukenhoff, e o outro casal, velhos ingleses que á há alguns anos viviam na França, orgulhosamente confessaram-se exilados gastronômicos.
O tempo passava sem que percebéssemos.
Subitamente, gato e cachorro agitaram-se: orelhas em pé, patas em alerta. Na única janela, vimos os vidros congelados em desenhos cristalinos e pouca neve rodeando lá fora.
O vento havia caido como por milagre e um silêncio se instalou no salão numa expectativa tensa. Antes que alguém pudesse falar, a porta se abriu: entrou o San-Bernardo com seu pelo rígido como estalactites, o sopro de sua fadiga saindo em pequenas fumaças intermitentes de seu bocão aberto.
Foi naquele momento a aventura do imprevisto, a grande emoção que cortou a respiração de todos os presentes, menos a da velha senhora que continuou sorrindo como se soubesse o que aconteceria. O gatão malhado e o Pastoralemão encurralaram o San-Bernardo para o canto da sala, junto das lenhas e antes mesmo que a encarregada conseguisse retirar o barrilzinho do pescoço do cão quase congelado, os outros animais começaram a lambê-lo a partir dos olhos e das orelhas, no sentido do pelo até o rabo curto e rígido.
O gato, chegando ao rabo, voltava à cabeça passando por cima do cachorro já na metade do caminho, numa alternância rítmica e carinhosa.
O silêncio foi absoluto durante muitos minutos e a imobilidade de todos foi interrompida pela senhora inglesa ao meu lado que, num gesto calmo e discreto, passou-me um lencinho amarrotado e já molhado.

3 comentários:

concha celestino disse...

Linda, enternecedora, uma delícia essa crônica dolomítica. Fiquei à espera da tormenta, da borrasca, de alguma calamidade e a magia do que veio foi surpreendente. Ouvi o silêncio das pessoas quase sem respirar, às lágrimas. Bravo, Bruna!
Concha

Benedito Deíta disse...

A contenção de qualquer tipo de afeto mais solto entre os humanos é compensado pela "humanidade" de quem reconhece seus "iguais". E isso entre gato e cão, parceiros em rivalidades. Lindo. E tudo isso num cenário didaticamente bem descrito. Como se estivéssemos lá.

fe disse...

Muito legal o desfecho inusitado, onde não se topa com tempestade, com curiosidades acerca das pessoas dentro da cabana, nem de reflexões...mas sim de uma lição humana dada por cães e gatos...lindo texto!!! Aliás, através do seu comentário no meu texto no blog "Prática do texto", vim parar por aqui e estou completamente imersa, há um bom tempo...Abraço, Fernanda de Paula.