sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O ROTEIRO SENTIMENTAL QUE VIROU CRÔNICA, OU : A TRANSGRESSÃO ANUNCIADA

Vinda da luminosidade do Rio de Janeiro, hoje vivo em São Paulo, essa cidade-luz que não é Paris mas que me fez sentir, desde minha chegada, como se estivesse chegando de férias, pronta para conquistar o mundo. Essa é a cidade onde já vivi a feérica Rua Augusta e a classudíssima “Higienópolis”. De lá, há quase quinze anos, fiz minha entrada nos Jardins, provavelmente meu último reduto paulista.
Meu roteiro sentimental? Para criá-lo deve haver uma maneira melhor do que virar esquinas, descrevendo caminhos e Marcos, históricos ou sentimentais, feito guia turístico. Tarefa desoladora especialmente para quem, como eu, não tem cultura histórica para fazê-lo. E arriscaria de soar árido.
Desde que não tenho mais carro, caminho muito: aproveito minhas pernas, ainda obedientes, para ziguezaguear pelas ruas e por essas maravilhosas alamedas que descem saltitante da Paulista, e que eu escalo – o termo realmente é escalar – quando vou à Casa das Rosas, aos Cinemas, aos Shoppings.
Marcos? Estou num continente onde Marcos são, em sua maioria, descartáveis apesar dos esforços individuais para perpetuá-los. O que é um Marco? Um Masp decadente onde não há indicação visível do ano em que foi construído aquele vão livre surpreendente? Ou o Masp de vidraças ainda mais opacas desde que lhes tiraram o azul e as nuvens de uma artista já esquecida? Ou um palacete dinamitado em surdina para evitar sua desapropriação? Um parque com esquilos escondidos entre árvores centenárias que só é seguro com policiamento ostensivo? A Casa das Rosas só permanece Marco pela galhardia de um grupo de intelectuais, ainda assim cerceados pelas limitações de um Condephaat ineficiente.
Outro dia reparei, numa das alameda, o letreiro de uma antiga casa, sólida e azul, que hoje abriga um instituto de beleza: orgulhosamente ostenta os dizeres “DESDE 1975” , pouco mais de trinta anos de tradição, um Marco para garantir categoria e credibilidade. Ao seguir minha escalada, me descobri rindo de verdade: eu também ostento minhas credenciais, DESDE 1934. Sem letreiro...
Minhas caminhadas me levam à observação mais cuidadosa das coisas. Os edifícios de arquitetura arrojada esbanjam espaços internos e jardins bem projetados. Foi numa dessas subida que verifiquei com quanto zelo a nossa prefeitura obedece os cânones do civismo urbano: o rebaixamento das calçadas em toda esquina, que pode até parecer uma sarcástica afronta ao bom senso dos cadeirantes.
Mas tudo é muito bem cuidado, varrido, saneado. Por ser chamado Jardins, o bairro poderia ter canteiros: teve, uns anos atrás, quando da revitalização da Nove de Julho, o que me rendeu também “A flor” o miniconto em homenagem aos agapantos brancos e azuis de reminiscências infantis. Eles não existem mais, freneticamente pisoteados, junto com grama e arbustos pelos apressadíssimos transeuntes. Essa Avenida merece uma segunda mão de maquiagem, se possível, com manutenção.
Com tanto caminhar descobri que Marco hoje, para mim, é o que meu instinto registra como inusitado. Hoje tenho meu próprio GPS emocional que não preciso acionar, pois é ele que me conduz espontaneamente a admirar, acompanhar e reconhecer os Marcos para mim mais importantes. E seus novos vizinhos. Estou falando de árvores.
Duas mudas de Choupos foram plantadas no fim do ano passado na calçada em frente a um prédio novo, na Alameda. Lorena. Árvores raras, praticamente desconhecidas: seus ramos crescem desde a raiz, paralelos ao tronco, suas folhas quase redondas, claras e macias: apesar do seu aspecto final lembrar o desenho de um cipreste, seu volume é leve, quase transparente. Uma delas já está alta o suficiente para roçar nos mil fios das mil tensões que correm entre os postes. Mereceriam uma placa: Populus Alba, DESDE 2010!
Dois Pinheiros na Paulista, um a poucos passos da Casa das Rosas, outro numa esquina perto da Campinas. E a Nespereira – frutífera apesar de abastardada - ao lado do Instituto Pasteur. Há coisa mais inusitada do que uma Mangueira no meio da Avenida Nove de Julho, tão generosa que, no verão, passo debaixo dela com cuidado... Os Ipês amarelos e rosa das transversais; alguns Plátanos com seus ouriços mas sem as castanhas; um Jambo-cereja a uma quadra de minha casa, tão modesto que só o descobri depois de anos de vizinhança. David que o diga, não é amigo?
Uma Amoreira alimenta ninhadas de sabiás-laranjeira no jardim do meu prédio. A poucos passos dela, uma Jabuticabeira parece eternamente carregada de frutos: os pássaros sabem sugá-los deixando o invólucro intacto! Há uma Tangerineira a caminho da feira onde compro meus “Tomates Sentados* que entrelaçou-se a uma árvore corriqueira, dessas comuns de calçada, mas que dá frutos cuidadosamente recolhidos pelos porteiros do prédio em frente. E há Carambolas, com sua folhagem intensa, que roçam vidraças, não é Sandra?
Talvez tudo isso não seja Marco para quem cresceu ao redor dele, sempre fez parte de suas vidas e não notam mais! Mas tenho uma descoberta mais recente, que meu GPS emocional registrou aos gritos, pois faz parte de uma paisagem que me é saudosamente familiar e, por isso mesmo, agora e aqui, inusitada.
Desviando-me do caminho numa corriqueira ida a banco, deparei-me com ela. Numa alameda tropical, uma intrusa. Desconhecida. Reconhecida. Lá estava ela, majestosa apesar de sua pequenez, mas rígia, com seus curtos troncos retorcidos, seus galhos franzinos, sua folhas miúdas, cinzentas, pontudas.
Majestosa. Imponente.
E enternecedora.
Uma Oliveira.

4 comentários:

André Braga disse...

Produções em massa, meros amores efêmeros... O instante "agora" é a unica coisa que interessa à maioria. 'Marco' virou nome próprio. Bruna, você ainda enxerga o pouco da natureza que existe em SP, o que é bom. O ruim é que você também vê ela ir aos poucos...

André Braga (desde 1975)

Tânia Tiburzio (TT) disse...

Que lindo!! Quero ver essas árvores! Beijos.

Tânia (desde 1976)

andrea disse...

merece uma comenda da prefeitura ...fazia muito tempo que eu não lia algo positivo sobre a cidade ....a quinta cidade mais rica ( ???? ) do planeta ainda tem VIDA !

concha celestino disse...

Este texto é uma delícia e mais uma prova de que você se renova a cada dia.
Tenho tanto a aprender com você, querida Bruna-Margueritte!