sábado, 7 de dezembro de 2013

O ESPELHO
 

Na escuridão do quarto, lençóis embaralhados sobre o colchão, desordem por toda parte. Sentado na beira da cama, cotovelos nos joelhos, mãos na testa, observa seus pés no chão. Não sabe há quantas horas está assim, olhando o nada. Um suor frio o sacode; ele sabe que se tirasse as mãos do rosto, elas estariam tremendo, como ontem, quando havia deixado cair no chão da cozinha seu último copo de cristal: água e estilhaços em volta de seus pés nus. Conseguira sair da armadilha sem se cortar, ir calçar um chinelo e voltar para uma xícara de café, sem requentá-lo, o mesmo que havia tomado no dia anterior, guardado num bule desde … não lembrava mais quando.

Agora um toque do telefone o empurra até ele, mas não atende. Ele sabe quem é. Ontem Júlia havia tocado a campainha, batido na porta com as duas mãos, implorado. “Sou eu, abra por favor, quero falar com você!” Ele havia ligado o rádio para que ela soubesse que ele estava sim, mas não queria vê-la. E agora, seguramente era ela, de novo, insistindo em querer atirar-lhe um salva-vida. Logo ela, que ainda o amava, apesar de tudo.

Ele sabe que pode salvar-se sozinho. É só decidir. Um gesto raivoso e as cortinas correm revelando o sol já alto. Na luminosidade improvisa, as cores das telas e das gravuras inundam o quarto como a enquadrar com mais vigor o desleixo ao redor; todas as cores agora jazem no chão, planas, descoloridas, amorfas.

A súbita mudez do telefone o agride como uma bofetada.

Não precisa da ajuda de ninguém, é a ele que cabe a decisão de uma atitude definitiva. Os três dias trancado naquela casa que fora seu prazer e orgulho, deveriam dar-lhe a resposta do seu futuro. Qual futuro?

O espelho do banheiro revela-lhe um rosto que não reconhece: macilento, barba por fazer, olhos inchados, cabelos empastados de suor. É assim que se transforma a imagem de alguém que está se destruindo? Ou estas são as marcas do esforço para tomar uma decisão? Ou para reconstruir seu próprio respeito, ou para combater - e vencer - o fácil caminho do abandono...

Num frenesi que desconhece há tempos, atira-se aos jeans largados na poltrona, às muitas camisas suadas penduradas no encosto das cadeiras, na procura de um pedacinho de papel amarelo onde anotara um endereço. Nada.

Vai até a cozinha; mãos trêmulas, uma mordida na maçã em cima da mesa, um gole de leite direto do tetrapac e lá está de volta a ânsia de vômito que o ataca sempre que se obriga a comer alguma coisa. De volta ao banheiro, lá está sua imagem, assustadoramente pior do que há poucos minutos. Num impulso: o chuveiro. A água fria sacode-lhe a musculatura, o sabonete escorre rápido pelo corpo, pelos cabelos; gilete e barba ali mesmo. Rapidez é preciso, antes que sua decisão se esconda atrás dos arrependimentos, dos perdões que não pediu, das aceitações que rejeitou.

Onde teria largado aquele papel amarelo... Mal enrolado na toalha, procura a carteira, olha para suas roupas. Quanta sujeira pode-se acumular para apagar a qualidade das coisas. Jeans, camisas, aqueles mocassim... É tudo meu? Desse jeito?

Veste o melhor que encontra, entre as roupas espalhadas por aí. Agora quase apresentável, senta na poltrona para calçar o sapato e lá está o bilhete amarelo, bem debaixo de uma das garrafas vazias largadas no chão ao seu lado. Alisa-o com cuidado: não é longe, pode ir a pé.

De novo o suor frio, as mãos trêmulas.

Ao abrir o armário para pegar um cinto, vê-se novamente no espelho: sim, agora pode-se acreditar nas intenções de um homem com a aparência decente como a que, em poucos minutos, conseguira com tão pouco. Antes de sair, ainda passa pela cozinha, mais um gole, mais uma mordida: outra vez a ânsia de vômito leva-o à beira da pia. Mais uma mordida, mais um gole, e sente-se mais seguro.

O suor parece voltar mas o tremor das mãos agarra com segurança o endereço mal escrito no papel amarelo. Vai caminhando pela rua, com rapidez, quase com fúria. No número que procura, uma porta modesta o leva a um salão grande mal iluminado. Umas dez pessoas sentadas em semicírculo em volta de uma mesa, outra dezena de cadeiras vazias espalhadas pelos cantos. Tem alguém falando timidamente, sem olhar a plateia, cabisbaixo.

Ele puxa uma cadeira qualquer, senta e aguarda sua vez. Duas, três pessoas se revezam. Depois, o silêncio.

É agora.

Ao levantar, passa as palmas das mãos na calça para secar-lhes o suor, ajeita o colarinho da camisa e lá está ele, em pé, atrás da mesa, palmas esparramadas sobre o tampo.

Um ligeiro pigarro e sua voz sai clara, surpreendentemente tranquila.

“Meu nome é Augusto. Sou alcoólatra. Não bebo há setenta e duas horas”.



















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