domingo, 8 de novembro de 2009

".......DE ARMÁRIOS E PORTAS"



UM CONTO

--"Augusto, por favor. Você já me ligou três vezes hoje. O carregador acaba de levar as malas e meu avião sai daqui a três horas". --
Ele continua, insiste. O espelho da porta aberta do armário me reflete sentada nesta cama anônima de hotel: telefone na mão, meio encolhida entre a beira do colchão e os travesseiros que me acolheram nessa última noite. O único cabide ainda pendurado naquele mar de madeira escura, parece querer atirar-me cachecol e capa de chuva.
--"Sei, entendo, eu também gosto muito de você. Um dia seremos bons amigos, você vai ver." --
Faculdade de Belas Artes juntos, dois anos de estágio nesta cidade no meio dos Alpes. Parece uma vida inteira. Mas quando aconteceu o acidente, já estávamos a caminho do fim. Eu sei, ele também sabe, mas prefere não admitir. Se defende. Insiste. Me ama.
--"Augusto: o museu daqui tem muuuitas obras para você restaurar e isto é um grande começo para a sua carreira. Mas meu negocio é pintar. E assim que puder mexer-me direito, também quer fazer escultura. Quero granitos rosa, quero mármores. E quero mar. Mar, ouviu?"--
Tenho vontade de atirar o telefone à parede. Ouço até seu estrondo; mas pouso o microfone no gancho com delicadeza para que ele não perceba a raiva de minha exaustão. Visto a capa e cachecol com alguma dificuldade; ao fechar o armário, o telefone toca de novo. Sei que é ele. Volta minha vontade de berrar, de repetir que ele não me deve nada, que a culpa não foi dele. Que eu não quero, não queeero ser seu remorso pelo resto de minha vida. Quero só mar, mesmo se com a chuva e o frio daqui. Só o mar por algum tempo; o mar, seu cheiro, seu movimento, sua evaporação. Mar! Só mar! è só isso que eu quero agora.
Depois é depois.
Ao entrar no saguão do aeroporto, um deslizar suave e a porta fecha-se atrás de mim. Com ela, todas as outras.
Check-in rápido, sala de embarque superlotada. Nos janelões sobre um céu de chumbo, a neve, vagarosa, começa a flanar. Deve ser por isso que anunciaram o atraso de uma hora para o meu vôo. O super aquecimento me obriga ao lento e sofrido despir de casaco, gorro e cachecol; até a curta suéter sobre a camisa de seda. Ando em círculo pelas paredes beirando as vitrines: jornaleiro, bombonniére, boutiques, últimos redutos para compras e souvenires. Se pelo menos achasse uma poltrona livre para descarregar minhas coisas. O que tirei do corpo agora é muito pesado para eu carregar. Parece toneladas de latas, vidros e ferros a apertar meus braços, a lacerar minha carne, a contorcer meus ossos. O zunido de aviões lá fora e os alto-falantes aqui dentro me jogam naquela escuridão em que fui atirada por alguma droga que abafou minha dor, mas não a consciência do britar dos pinos, da penosa introdução dos enxertos, do retesar das suturas. Meus braços não alcançavam minha mãe; minha boca não urrava de medo. Não lembro se eu respirava, se meu corpo ainda estava comigo. Estava correndo atrás de minhas entranhas que eu recolhia com uma mão e recolocava no ventre rasgado que eu segurava com a outra.
Meu corpo todo volta a doer. De novo faz calor. Muito calor.
Ouço chamarem meu vôo e já estou em direção à fila. Na porta de embarque, a boneca no colo de uma menina ao meu lado, me olha. No rostinho de plástico, o sorriso é pintado como para não sair do lugar. Os olhos também: sem nuances de luz. Fixos.
Como ficaram quando lhes enfiei um lápis para ver o que tinham que os fazia mexer, abri e fechar. Eu não devia tê-la abandonado, quase morta, braços esmagados e semi-nua, entre os escombros da casa onde nunca mais voltei a morar.
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