domingo, 15 de novembro de 2009

......E HORIZONTES

O horizonte sumiu.
A bruma sobe, mistura-se com as nuvens, desce até a mim; quente na japona e cachecol, cabelos empastado de umidade salgada, iodada, ondulada. Mas meus pés nus brincam com os grânulos que chiam entre os dedos; seu encolher-se e alongar-se empurram os calcanhares para baixo, mais baixo, afundando mais, enquanto eu olho a poucos passos, a borda mas escura, molhada, achatada pelo rolar encaracolado da espuma que vem devagar, volta encrespada para um pouco mais longe, engrossa de novo, cresce de novo e cai suavementer na minha direção.
Este é o caminho extremo da ressaca que vem para descansar.
Faz frio.
Mas hoje ele não está furioso, não me agride com os estrondos dos dias anteriores. Desde que cheguei anteontem, fiquei esperando por este mediterrâneo de inverno: escuro, cinzento, mas tranquilo. Eu precisava de seu desenrolar silencioso na praia, queria ver a espuma fraca, apenas esboçada, apagar-se na respiração da areia e as pequenas bolhas que surgem a revelar o raso abismo das conchas. Fugi do outro lado da ilha cheia de falésias, onde eu teria o constante frangir das ondas contra os rochedos; onde os marouços me levariam de volta àquele impácto dolorido. Aqui, sem porto nem barcos, some o choro das gaivotas e com ele o lamento de minha dor.
Já consegui exorcizar minha única boneca. E é aqui, agora que tenho que arrancar, uma por uma, as camadas lívidas de minha pele, seus roxos, sua flacidez.
Para tentar ficar, finalmente e de novo, nua.
E, quem sabe um dia tropeçar em alguém tão especial com que eu possa, também, ficar em silêncio.

DIÁLOGOS E SILÊNCIOS
(EPÍLOGO)

---Posso entrar?
---Como se eu pudesse dizer não: você sempre entrou sem perguntar. Estou aqui nesse atelier há quase dez anos e sabia que a qualquer momento você voltaria a aparecer. Tropeço em você desde que nasci.
---Não reclame, se não fosse por mim você nem existiria.
---E eu existo? Com a desculpa de ser obrigado a escrever minha estória em primeira pessoa, você nem nome me deu.
---Mas eu só queria saber se, afinal, você gostou. Eu não a tratei bem? No lhe dei nenhuma conotação de vítima passiva: fiz com que você achasse força, estrutura e espinha dorsal para decidir seu caminho de cabeça erguida.
---Bem então, e agora?
---Agora vim verificar com meus próprios olhos que você tenha recuperado a quase totalidade de seus braços e mãos, que você finalmente conseguiu pintar com sucesso e queria saber como você se sente às vésperas do vernissage.
---Olha, estou muuuito feliz. Consegui um marchand que realmente gosta do meu trabalho.
---Eu percebi: ontem eu o ouvi dizer que suas pinturas, apesar de abstratas, tem cor e cheiro de mar.
---Mas isto ele deve a você, por que foi você, no terceiro capítulo, que me colocou em frente ao mar com meus silêncios.
---É, e por falar nos teus silêncios, não esqueça que ele aprendeu a ouvi-los. E se você quer mesmo saber, está se separando da mulher e está muito de olho em você, pode crer.
---Você vai esticar minha estória até o pieguismo de um romance?
---Piegas....acha que a estória que escrevi para você foi piegas?
---Não, não, desculpe....Quis dizer que...não sei o que quis dizer...
---Então eu tenho a dizer que não gosto de matar minhas personagens, por isso desde o começo usei metáforas e fugi das autópsias, necrópsias, dissecações exigidas, entrando na tua carne pelo acidente de que fiz você escapar vivva. Para mim bastou a morte de sua boneca para dar pathos ao fim do segundo capítulo.
---Miiiinha boneca?...
---Desculpe, na verdade era a minha. Mas, que diabos, se a gente não puder lançar mão das próprias experiências, então para que serve um escritor....
---Então, agora você vai escrever do meu sucesso na exposição, e que mais....
---Nada, não vou mais escrever nada. Até esse diálogo fica entre nós. Ponto e parágrafo, para mim a estória terminou a beira mar, lembra?
---E eu vou continuar descalça naquela praia de inverno até quando?
---Se alguém se propuser a continuar tua estória, que o faça, mas não deixe que ele lhe mude personalidade, força de vontade, nem seu brilho. Isso tudo é obra minha.


Esse conto que começou com o título "De armários e.....portas" é produto da oficina estimulante e criativa que Márcia Tiburi deu na Casa das Rosas nos meses de Outubro/Novembro. Não somente a ela devo inúmeras horas de aprendizado e cultura, mas também à minha querida amiga Sandra Schamas, que - generosamente - adotou a personagem criada por mim e deu-lhe em grande estilo, um final glorioso. Sandra, obrigada!

4 comentários:

Paulo Fodra disse...

O seu conto do armário já era muito denso, cheio de nuances. Esse aqui me deixou e ainda deixa de queixo caído, pensando, sentindo. Adoro ler os seus textos porque eles vêm mansinhos, despretensiosos. E, quando dou por mim, eles já deixaram uma marca funda...

Beijos,

Lohan Lage Pignone disse...

Me perco nos horizonte do seu texto. Este texto me veio como uma brisa leve, e me carregou até o local que vc incrivelmente descreveu.
Parabéns,
Lohan, um dos autores do blog Autores S/A.

Samia disse...

Os dois primeiros contos foram de uma poesia única e o epílogo foi uma surpresa bem redondinha, pronta.
Você e a Sandra são duas danadas.
Adorei

Samia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.