quarta-feira, 24 de setembro de 2008

“O SENA NA NEVE”

Miniconto gastronômico para um amigo

A meia lua de lâmina duplas ondula sobre a tábua de madeira, triturando, esmagando, amalgamando salsa, alho, tomilho, tomate seco e azeitonas verdes, junto com os champignons frescos, cheirosos, completos de chapéus e talos. Um festival de cores. Rápido, rápido, tudo para a frigideira de ferro, antes que a manteiga escureça. Rápido, o golpe giratório para que as cores comecem a rodar em volta das bordas. Uma boa dose de conhaque e, rápida, a chama do gás para dentro da frigideira.
A mão direita do homem firme no cabo, a esquerda no ar, trazendo com gestos macios o aroma para perto do nariz. Olhos entreabertos, satisfeito, sorri.
Sobre o “réchaud” um prato aguarda: chiquérrimo, ovalado, todo branco. Duas folhas de alface, uma de cada lado; uma tirinha de brie sobre uma, uma de camembert sobre a outra. Rápido despeja as cores da frigideira entre as duas alfaces, um filete de creme fresco em cima de tudo. Dois grãos de zimbro para enfeitar e o moedor de pimenta sobrevoa rápido o prato. Está pronto.
As duas tiras de queijo sobre as alfaces lembram uma vista de Paris: os cais da Rive Gauche e Droite debaixo dos plátanos. Aí está: “O Sena na neve”. O homem sorri novamente: que bom nome para este prato, lindo, perfumado, leve, o melhor que tem criado nas últimas semanas, digno de um Bocuse. Senta-se olhando para o lugar vazio do outro lado da mesa e ataca de garfo.
Ele saboreia tudo. A decoração está linda: dois lugares, um em frente ao outro, velas em dois suportes com pequenas guirlandas de flores amarelas, copos de vinho, de água, de champagne. Um Sauterne já aberto para respirar.
Do outro lado da mesa: o prato imaculado, a corola de copos, o espaço entre as duas velas; tudo cria uma moldura ideal para uma linda cabeça ruiva, dois olhos claros e um sorriso suave. Aquela imagem acompanha seu jantar. Sua vizinha do andar de cima é alta, esguia, rabo de cavalo, maquilagem zero, passo elástico em sapatos baixos e macios. Seu ar modesto, mas seguro, sempre lhe inspirou serenidade e, ao mesmo tempo, autoconfiança.
Agora, do prato do homem, já vazio, um molho solitário olha para ele, convidativo. Furtivamente, da cestinha de fina palha prateada, um pãozinho macio, parece piscar para ele. E ele não vai desperdiçar aquele deglacée divino...O Sauterne está apenas fresco, no ponto certo: pode estalar a língua......em total, quem vai criticá-lo? Na outra extremidade da mesa, o branco do prato vazio, parece reprovar. “Isto não se faz, não é de bom tom...” O homem levanta o guardanapo do colo, cruza os braços satisfeito. Seu olhar perde-se na escuridão entre as duas velas.
“... Tá, prometo que não farei nada disto. Semana que vem, crio coragem e a convido para jantar... Como será que ela se chama...”

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