quarta-feira, 24 de setembro de 2008

CRÔNICA SOBRE A RE-LEITURA DE CRIME E CASTIGO

“ Dostoievski no meu ontem e no meu hoje” Aos pouco mais de vinte anos de idade o livro me fascinou pela imensa piedade que a miséria do protagonista me transmitiu, pelo detalhamento de cada cômodo e seu apetrechos, enfim pela força descritiva que parecia fazer-me ver as cores sempre mais sombrias (por que terá sido?), e sentir os cheiros de cada coisa. E quão romântico pareceu-me o amor de Raskolnikov por uma Sônja prostituta, e quão cruéis os interrogatórios do comissário Porfiri Pietrovich, antes mesmo de ter comprovado a culpa do estudante: atitude policial abusiva, legalmente condenável! É claro que com o correr do tempo, alguns detalhes, parte da história, e minhas próprias impressões, foram empalidecendo. Foi com certa curiosidade e com extremo prazer que voltei a lê-lo. E com surpresa, - claro, mesmo por que eu também estava mais madura - pareceu-me mais novo, mais rico, mais chocante. Mais novo, como se tivesse sido escrito mais recentemente, por que continua universal em sua essência, mesmo que as personagens sejam mais antigos em princípios e comportamento. Mais rico por que descobri nele uma imensa gama de vocábulos que na literatura moderna tornaram-se raros, não por que tenham envelhecido, mas por que o linguajar de hoje parece envergonhar-se de sua erudição. Seu conteúdo analítico das personagens e dos acontecimentos, me trouxe a necessidade de refletir sobre assuntos que vão desaparecendo no uso das “ondas de frequëncia modulada” da superficialidade contemporânea. E finalmente mais chocante “contra” mim mesma: como não ter notado, na época, a profunda penetração de Dostoievski na alma de Raskolnikov? Voltei a ler inúmeras vezes os trechos em que traça o perfil do estudante que, apesar de seus precários meios de sobrevivência, ainda tenta sentir-se responsável pelo resto de sua família de quem, porém, depende financeiramente. Não havia guardado, anos atrás, os detalhes de seu temperamento que hoje me revelam que reduzir-se a levar seus poucos pertences à agiota, era resultado mais de uma preguiça totalmente física do que a alienação mental que nele se instala ao planejar o crime. Como não ter percebido que aquele amor dele por Sônja – que tento me havia comovido antes – nunca foi amor: ele sentia-se compelido a confessar o crime a alguém por que não conseguia mais guardar dentro de si o pecado segredo do homicidio cometido. E a quem melhor que uma Sônja, ela também pecadora, prostituída em prol da família, tão sofrida e carente quanto ele, para ouvi-lo, guardar segredo e compreende-lo? Ele só escolheu, instintivamente, com quem juntar duas misérias, para construir uma união de mútua compaixão. Ela sim, provavelmente, amou-o, levada por um sentimento de gratidão por ter confiado nela, pobre ignorante, e finalmente pela possibilidade de abandonar sua vida degradante. Isto parece evidente quando ela decide acompanhá-lo na prisão, o que em algum momento quase imperceptível sugere-se que a intervenção dela junto ao diretor da prisão, aliviaria os trabalhos do condenado. Se esta intervenção implica na disponibilidade carnal de Sônia para consegui-lo, parece lógico atribui-lo a um ato de amor. Finalmente minha descoberta da personagem Porfiri Pietrovitch, cuja atuação perante um suspeito, sua habilidade em colocá-lo em xeque, só agora me pareceram freudianas, como premonitórias da prática da psiquiatria, arte surgida do estudioso austríaco que foi sim, contemporâneo de Dostoievski durante poucos anos, mas cuja obra só começou a ser levada à imprensa cerca de dez anos depois da morte do russo. Na segunda leitura, onde antigamente pareceu-me uma bravata, agora o interrogatório montado por Pietrovitch, com suas perguntas sem pausas, sua perseguição verbal e seus argumentos diretos, - raciocinados como se o próprio Pietrovitch tivesse arquitetado o assassinato, soou como uma grande ameaça, clara e explícita: “ tenho meios científicos para chegar dentro de você”. Foi uma premonição da “angustia da influência”, ou teria Freud lido o russo agarrando-se às bases de suas observações para validar suas teorias? Só a ambientação em St. Petersburgo ficou para mim mais difícil de voltar a imaginar como havia feito há tantos anos, e como estava descrita:cinzenta, descolorida, tristonha apesar de fluorescente em negócios e atividades financeiras, com a vitalidade típica de uma cidade importante de meados de 1800. Deve ser porque há uns poucos anos – na realidade mais do que neste momento consigo julgar – tive a chance de estar lá, achando-a clara, colorida, alegre: uma das cidades mais bem arborizadas do mundo, fria mas ensolarada num Junho que – numa primavera tardia -aspergia pelo ar as sementes dos plátanos que ladeiam as grandes avenidas, num rodopiar de flocos, quase brancos e leves como neve fora de estação. Não sei como, estando lá, não pensei na St. Petersburgo do Dostoievski/Raskolnikov. Não sei como, ao emocionar-me na cripta do memorial ao cerco dos 900 dias, não re-encontrei lá a emoção da primeira leitura. Deveria haver uma idade certa para certas leituras. Ou então não: deveríamos reler os grandes clássicos da literatura universal a cada fase de nossas vidas. Vou colocar na agenda do meu computador, para daqui a vinte anos, um lembrete: ler Crime e Castigo. Daqui a vinte anos....estou sendo demasiadamente otimista...

3 comentários:

mp disse...

Olá, Bruna.
Sou Marcos Paulo, amigo do seu colega de letras, Paulo Sancer.
Após anos escutando referências sobre o garoto Fiódor, decidi ler Crime e Castigo (com uma dose de ambição, pois o li em inglês).
A descrição de ambientes e, especialmente, das personagens é algo de abrir a boca.
Ler teu texto também me dá uma vontade de retornar ao livro, rever as cenas, as travessias desesperadas e os períodos sufocantes em que Rodia consumia sua missão.
Tudo isso pra te dizer que a sensação que tive sobre o casal formado após a confissão do crime (acredito) não é baseado unicamente no amor, e sim na cumplicidade e no entendimento do que é "pecar" tendo-se consciência de que o fez.

Parabéns pela análise e por estimular a releitura deste clássico.

Marcos

Paulo Sancer disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paulo Sancer disse...

Para Leste, na distante, fria e falecida Leningrado o espírito - eterno e imortal como sua obra - do bom e velho Fiódor deve ter se remexido em sua cripta, um sorriso a lhe escapar por entre os fios de sua barba.

- A ragazza compreendeu-me!*


*Em russo, mas aí seria exigir muito deste humilde escrevivente.

Parabéns por mais uma bela crônica, Bruna!

Paulo Sancer