quarta-feira, 24 de setembro de 2008

TRINTA ANOS: DUAS OBRAS DE WESLEY DUKE LEE DUAS FASES DO PODER DE CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO ARTISTA

Ensaio

Wesley Duke Lee – brasileiro apesar do nome - pintor de vanguarda, não conformista, experimentador, pesquisador e poeta da forma, questionado e endeusado. Quase desconhecido, sempre mal conhecido. Ele entrou na minha vida de modesta colecionadora de arte, há trinta anos, pela mão de uma obra intrigante, para começar, pelo seu título:

“Minha viagem à Grécia no Helicóptero de Leonardo da Vinci”
Ensaio Filosófico Visual, de Wesley Duke Lee,
36 transformações de sua autoria
Divagações por Pietro Maria Bardi
Editora Praxis Museu de Arte de São Paulo, MASP, 1978.

No lançamento, de tacada duas personalidade controvertidas que agitavam o mundo das artes do São Paulo daquela época. Agitaram e enriqueceram para sempre. Naquela época, uma obra apresentada em uma luxuosa caixa de linho azul, reunindo as gravuras de um artista, juntamente com a apresentação escrita de um “senhor” entendedor como o professor Bardi, fundador e diretor do MASP , e críticas de especialistas do gabarito de uma Cacilda Teixeira da Costa, foi uma revolução no mundo e no mercado de arte da cidade. Disse-se de tudo a respeito da idéia, mas isto não me tirou o prazer, durante anos e anos, de espalhar as gravuras no tapete de minha casa, e, deitada de barriga no centro delas, viajar para a Grécia com Lee, no helicóptero de Leonardo. Foram tardes de imenso prazer, mergulhando no mundo de Lee todo fim de semana para trazê-lo dentro de mim e fundí-lo com aquilo que eu já havia estudado e incorporado das obras do Leonardo: uma descoberta e tanto. Se por um lado os críticos e apresentadores do Lee haviam mencionado sua identificação com Oswald de Andrade e Flávio de Carvalho para muitas de suas manifestações artísticas, para mim não foi de estranhar que ele tivesse-se inspirado e aliado a Leonardo para percorrer o caminho da mitologia grega naquelas 36 gravuras, que ele chamou de “transformações”, e que traziam uma releitura profunda e bem humorada dos mitos; releitura às vezes crítica, outras cínica. Em “Minha viagem” Lee quase sempre acompanhou seus desenhos à reprodução do desenho original do “helicóptero” e suas especificações técnicas de punho do próprio Leonardo; outras vezes um deus, uma deusa ou um cavalo, animal-rei por ser o meio de transporte básico do século XIV, vivido por ele. Muitas das invenções de Leonardo, - nem todas realizadas mas de perfeita utilização como comprovou a IBM nos anos 80*, - foram dedicadas à locomoção. Desde as eclusas, que ainda regem muitos dos tráfegos fluviais, ao empírico sistema de bolinhas aplicadas às rodas das carroças para medir distâncias, e ao, finalmente, “parafuso voador” cujo principio básico ainda move nossos helicópteros. Mas também dedicou-se a pequenas amenidades, como a simples junção de retalhos pentagonais e exagonais para compor a bola perfeita que ainda rola em muitos de nossos gramados milionários; ao sistema de refrigeração a água que instalou nos aposentos de Ana de Bretanha no castelo de Amboise; ao sistema pantográfico e a mil e uma pequenas coisas cuja origem já nem lhe é mais atribuída visto as evoluções que a técnica moderna lhes imprimiu. Não por nada Bernard Berenson, o crítico e estudioso americano que revitalizou o Museu do Palacio Pitti de Florência, definiu Leonardo o “precursor da tecnologia”, em vista das soluções por ele propostas. Inusitadas levando em consideração sua época. Apontadas por Cacilda Teixeira da Costa, as diversas formas da obra de Duke Lee “são permeadas de uma preocupação essencial: os mistérios da origem, do sagrado, da felicidade, da sexualidade e da morte”. Estas fontes vem da literatura religiosa do ocidente e especialmente da mitologia grega cuja tradição filosófica sempre verteu sobre a relação vida-morte e, essencialmente, sobre a necessidade de eliminar os obstáculos que demasiadas vezes nos impedem de viver bem conosco e com o próximo, de viver uma vida com conforto espiritual e físico, com lazer e prazer, assim como morrer deixando lições. Leonardo baseou sua cultura humanista nos legados dos sábios latinos e sua cultura técnica nos dos gregos. Além de ter sido o primeiro a deixar – preto no branco- o mais perfeito registro das proporções do físico humano, ele abrange, em seu “Código Atlántico”, mais de mil manuscritos e desenhos tão ecléticos que vão da literatura à arte militar, da astronomia, à hidráulica, geometria, aeronáutica, acústica e ótica. Em “Minha viagem”, Lee apossou-se tanto do “parafuso voador” de Leonardo, como de sua ótica, para ir simbolicamente à Grécia resgatar, do classicismo, sua própria visão realista do mundo de hoje. Ele não descreveu sua viagem à Grécia naquele helicóptero, mas transformou sua emoção visual e sensorial, guardando em sua memória os mitos e suas representações esculturais gregas, como fossem negativos de fotos hipoteticamente tiradas há dois mil anos e finalmente revelados e impressos nas suas 36 gravuras. Isto ficou muito evidente no poema introdutor à sua própria obra. É de se estranhar, portanto, que ele não tivesse chamado as suas gravuras de “revelações” em vez de “transformações”, pois na realidade seu significado se enquadrou não somente numa etapa da arte fotográfica, mas primordialmente na aparição e identificação de verdades, descobertas e reconhecimentos: as verdadeiras revelações. Mais ainda é de se estranhar que Lee não tivesse ostensivamente acusado Leonardo de omissão por não ter arquitetado – do alto de seu parafuso voador – mais um dispositivo ardiloso que registrasse o panorama para a posteridade. Em suas “divagações analíticas”, como chamou sua apresentação da obra de Lee, Bardi aproximou as “revelações” de Lee às múltiplas faces do processo criativo da obra em questão; inclusive à essência da nossa leitura, qualquer que ela seria, e à essência do próprio Lee, qualquer que ela tenha sido ao criá-la. Hoje, depois de trinta anos, eu dou bom dia a uma gravura daquela série: ela colore uma das paredes brancas do meu pequeno apartamento, entre duas janelas, sem receber luz natural direta, nem reflexos de lâmpadas. Suas cores são nítidas e puras. As demais foram distribuídas – ao longo dos anos – aos amigos mais queridos por ocasião de festas e aniversários; devidamente enquadradas em passepartout neutro, (sem moldura para que todos pudessem exercer o próprio estilo), acompanhadas de xerox do poema e das divagações que compunham a documentação original da obra. Foi a maneira que achei de compartilhar meu prazer, já que não disponho mais do espaço necessário para a apreciação da obra em sua totalidade. De repente: há poucas semanas a revista “Veja São Paulo” trouxe o artigo “O retorno do Mestre”, Wesley Duke Lee: na Galeria Ricardo Camargo, estariam as telas da série “O Filiarcado”, de 1999, re-apresentadas como despedida do artista que, afetado pela doença de Alzheimer, encerraria assim suas presença física no mundo das artes. Seria uma oportunidade única para quem não conhece a obra de Lee e imperdível para quem já tem familiaridade com sua identidade artística. Foi lá que reencontrei as elucubrações do visionário Lee: grandes telas em formato de losango, em pé, fixadas por uma das pontas, em pedestais de vidros e aço, como estivessem soltas no ar, melhor: ao ar livre. Como as crianças que ele pintou, divertindo-se com brinquedos rudimentais, hoje quase históricos. Desta vez, Lee entregou-se corpo e alma à técnica renascentista: seus “puttini”, não diáfanos como os anjos de Andrea del Sarto, mas plebeus e realistas ao gosto do Mantegna, dançam, nadam, jogam ao tiro-ao-alvo, à cabra-cega. Acertaram os curadores da mostra, Ricardo Camargo e Roberto Comodo, ao identificar o estilo de Mantegna nestas pinturas de Lee, pois apesar do Mantegna ter sido um dos precursores da renascença, foi seguramente o primeiro “verista” por ter usado como modelos os rostos do povo, dos marceneiros, dos pescadores, dos mendigos, das prostitutas, mesmo em temas religiosos. Não tendo mecenas que lhe sustentassem a fúria criativa, Mantegna venceu justamente por seu realismo exacerbado: seus santos e mártires são figuras reais que se imolaram por uma crença, sem ascetismo. O seu “São Sebastião”, no Louvre, mostra ombros e pescoço fortes de operário musculoso, mandíbula enrijecida, olhar pronto a suportar o martírio. Dentro daquela galeria, num beco charmoso atrás da Faria Lima, uma iluminação cálida, entre o ensolarado e o “vermeil” metálico, enfatizava os três tons em que Lee dividiu suas pinturas: albedo ( fração clara de luz difusa em superfície), rubedo (fração avermelhada), nigredo (fracão escura). Todas as telas apresentam relevos provocados por camadas irregulares; “espatuladas” de areia, talvez algumas de gesso, argamassas recobertas de uma das três cores; crianças contornadas por pastel à óleo: os corpos nus, os rostos mais variados onde reencontramos o sarcasmo lúdico de Lee: na cabra-cega, um dos meninos tem traços envelhecidos, como se há anos estivesse brincando da mesma coisa sem nunca ganhar. Os dois no trenó, bem maiores dos três que os puxam, tem a expressão mais adulta e claramente sardônica. Lee divertiu-se não em pintá-los, mas em criá-los. Se as telas nos remetem a desconhecidos desenhos rupestres, seus conteúdos nos colocam perante as últimas lembranças de um fauno que cresceu, envelheceu, e agora, no limite de sua existência, relê sua vida, deixando-nos só a parte ingênua, naive, natural, infantil para sempre, como se a vida do artista estivesse apenas começando: bem-vindo ao mundo, Wesley.

· Nos anos 80, a IBM trouxe para o MASP a exposição completa que mantêm desde os anos 60, na casa em que viveu Leonardo da Vinci, em Amboise, no vale da Loira, onde, no castelo gótico-renascentista de Carlos VIII, trabalhou por muitos anos com o patrocínio de Ana de Bretanha. Naquela casa a IBM mandou construir – obedecendo todos os detalhes dos desenhos de Leonardo, mas alguns em escala menor – todas suas invenções, colocando-as em funcionamento, e comprovando portanto sua exatidão.

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