segunda-feira, 24 de novembro de 2008

OS GIRASSÓIS - Crônica

Falta pouco para chegarem os setenta e cinco.
Incrível. Eu tenho tudo isto? As rugas, as pelancas, os quilos a mais, as manchas nas mãos. Isto eu sei. Vejo, sou realista. Mas lá dentro, também tenho tudo isto? Esta vontade que ainda tenho de olhar, perceber, fazer, aprender, ela também tem tudo isto? E porquê ela, esta vontade, não tem rugas nem pelancas, mas é fresca e ágil? As manchas: serão elas esta dificuldade que tenho de lembrar nomes? E os quilos a mais, serão justamente a vontade de olhar, perceber, aprender, fazer, que cresceram? Ou será somente por que eu sei que "o tempo urge"?
Quando precisei mudar-me, transformei este meu novo pequeno apartamente numa quase varanda de tão claro, luminoso e alegre. Mais parece que o preparei para uma moça que acaba de entrar na faculdade! Talvez fosse mais condizente ter um carpete aconchegante de cor sóbria e fácil de disfarçar a sujeira, no lugar deste piso de laminado todo branco. Talvéz teria sido aconselhável forrar meu sofá de tweed cru no lugar do tecido xadrez em tons claros de azul e verde: aquele verde que combina com o teto pintado como uma tenra alface, para que, ao entrar, se tenha a impressão de estar saindo: para um jardim.
Nunca morei, na idade adulta, em casa com jardim. Só quando era criança e no jardim eram plantados alface, batata, tomate e cebolinha, servindo de despensa; era a Europa em tempo de guerra - não tem o que obter com os cupons/racionamento? vamos aos canteiros!
Deve ser por isto que estou literalmente camuflando este meu minúsculo apartamento. Gosto tanto dele que o elegi a meu apartamento definitivo. Esgotei meus recursos financeiros e não posso ter mais projetos de mudança. Na verdade nem quero: estou feliz dentro dele, não tenho por que querer outro. Decididamente ele é definitivo. Isto também quer dizer que ele será meu último apartameno.
Se olho para trás, apesar de ter já morado melhor, com muito mais espaço, mais luxo, mais mordomias, ainda assim sei que não vou abrir mão deste. Tive muito. Agora o meu muito é ele. Tive uma vida venturosa, com sucessos e derrotas, erros e acertos, alegrias e decepções, euforias e lágrimas. Andei pelo mundo, conheci muito - quase tudo o que pretendia. Na realidade nunca fiz uma lista do que queria conhecer, mas acabei cobrindo todos os lugares que me interessavam, quase que pela órdem.
Faltou o Nepal. Não quero dizer que conheci o mundo todo. Assim mesmo, faltou o Nepal.
Que coisa estranha: comecei dizendo que ainda quero muito olhar, perceber, fazer, aprender, conhecer, e de repente pareço acomodada, como uma velha que sou, abrindo mão do Nepal, contentando-me do colorido ovo que abriga e enternece minha vida. É uma incoerência, mas é a minha verdade. Por que sou realista e esta é minha realidade. Às vezes também - como todo mundo - fujo dela, mas sei que ela está aí, aí mesmo, no meu último apartamento.
Hoje, chegando em casa quis deitar na cama, pernas para cima, para ler. Ao ajeitar as almofadas e a luz, olho para o teto amarelo do meu quarto: amo o amarelo. Tem o ziguezaguear branco dos trilhos que abrigam os espotes que iluminam as gravuras e os objetos nas paredes brancas.
Ficou um desenho bonito este ziguezague: parece uma serpentina de cantos agudos, salpicada de pequenas manchas escuras que o calor das lâmpadas pinta no amarelo, como fossem estames de girassóis. Que boa idéia foi este amarelo.
E, de repente, lá está mais uma descoberta. Isto poderá vir a ser a última coisa que verei. Poderei lembrar desta visão final, depois? Depois do que? Ninguém jamais pôde explicar este "depois": ele é, como a criação de uma obra de arte, um ato de solidão.
Não deve ser ruim um ato de solidão com uma visão de alguns girassóis, quiça um campo inteiro de girassóis.
Seria bonito! Uma loucura!
Van Gogh que o diga...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

HABEMOS OBAMA - Ensaio

Sem fumacinhas, brancas ou pretas; sem paramentações ou alvas vestimentas; sem ar embevecido de humildade; sem ascetismos. Ele surgiu, como do nada, obscuro senador provinciano, internacionalmente desconhecido. E com a aprovação - amplamente demonstrada nos noticiários - de meio mundo, quiça do mundo inteiro. De onde tanta unanimidade?
Preparado? Quanto qualquer outroex-presidente, melhor até de alguns. Formado em duas das mais prestigiadas faculdades do país, casado com uma mulher culta e carismática, duas filhas: a típica família americana, classe média, sem tecnicólor. Provavelmente mais preparado ainda por já ser, por nascimento e criação, um cidadão do mundo, com convivências, familiar e "territorial", das mais variadas e heterogêneas. Isto cria, em cérebros de abertur ímpar, calor, entendimentos, compreensão, sobrevivência e uma capacidade infinita de conceder.
Inteligente? Nenhuma inteligência mediana, em menos de dois anos de "exposição" política, sairia de senador para o primeiro plano de uma campanha para Presidênciaa de um país como aquele.
Corajoso? Seguramente: após enfrentar acusações de todos os tipos, do islamismo ao terrorismo, da malversação (por um pastor!!! Haleluya...) à utilização de sua cor como bandeira eleitoreira, ainda teve a coragem de recusar o apoio dos seguidores de Malcom X que continuam batalhando não por igualdade, mas por um Estado Negro. Sua campanha eleitoral arrecadou - conforme permitido pela legislação daquele pais - a cifra recorde de 700 milhões de dólares: evidentemente não provenientes dos bolsos negros, a minoria menos abastada. De fato, e é de estarrecer, ganhou por pouco mais de 53% dos votos, dos quais somente 13% negros. Num país onde o U-klux-klan ceifou milhares de vidas em nome do racismo; onde ainda florecem comunidades hitlerianas (controladas a distância em nome da democracia); onde já quatro presidentes foram assassinados; um Barak Hussein Obama, com um nome que revela origem negra, africana, árabe e islámica, deve ter coragem. De todas as comunidades mundiais que aplaudiram sua vitória, uma única personalidade internacional (Kadafi, justo um líbio ditador e terrorista mediterrâneo) demonstrou preocupação ao dizer: "Temo por sua segurança".
Honesto? Seguramente, caso contrário seus oponentes já teriam, durante a campanha eleitoral, enquadrado e divulgado bens ilícitos, propinas, bandalheiras.
Autoconfiante? Ele tem uma confiança tão absoluta de estar no caminho certo que, no discurso apos vitória em praça pública de Chicago, sem ler e de improviso,traça o perfil definitivo
de uma nação em uma frase que permanecerá na história americaqna e mundial:
"Se existe alguém que ainda duvide que os Estados Unidos sejam o lugar onde todas as coisas são possíveis; que ainda questione a força de nossa democracia, a resposta está aqui, esta noite.(4.11.2008)"
Daqui em diante esta citação transformar-se-á em bandeira, orgulho e ditado, como aconteceu com a primeira frase de um discurso de Martin Luther Kind nos anos 60 " I had a dream! - "Eu tive um sonho". Interessante ainda o fato de que Obama fez referência a King unicamente no discurso de vitória e jamais em sua campanha eleitoral.Fez questão de não "apelar", evitando toda e qualquer pieguice.
Bem intencionado? Sério? É certo que está consciente do grande desafio que o espera:
- Ele sabeque não pode decepcionar um povo que votou nele primordialmente para livrar-se de um Bush inépto, superficial, mal aconselhado, cuja impopularidade tornou-o quase risível.
- Ele sabe também que para livrar-se de Buch o povo poderia ter votado em McCain, mas McCain é só um ferido de guerra promovido a candidato pela bandeira do patritismo, ainda membro de uma elite tradicionalista que não inovaria, e cuja mulher multimilionária não democratizaria em nada a imagem da Casa Branca.
- Ele sabe, o povo sabe, - e o povo sabe que ele sabe - que a sua frase de campanha "Change we can" não é somente uma promessa, é uma conclamação dirigida ao povo e que o povo aceitou. Muito estrategicamente sua campanha foi baseada nisto: no "Nós mudaremos", no "Nos podemos mudar".- "Plural Majestatis" na melhor forma da Roma de César; contra o "eu estou com vocês" do McCain, ele convidou "Vocês estão comigo, nós vamos mudar" e o povo aceitou. Não é somente o Presidente descendo às ruas , mas o povo entrando na Casa Branca. O poder dentro dela.
- Ele sabe que tem mil e um desafio a vencer, sendo o mais grave a situação econômica que - de resto - só estourou no meio da campanha eleitoral e para a qual ele poderia não estar praparado. Mas ele, firme, encarou o desafio. A crise americana - alastrada mundo afora - colocará sobre Obama, um microscópio feroz, constante, implacável: um cheque assinado esperando os fundos de cobertura que pareceriam dever sair diretamente do bolso do próprio Presidente Americano.
Assim mesmo a unanimidade espalhou-se aos quatro ventos. O mundo, e especialmente a Europa, tão orgulhosa de sua predominância cultural, de suas origens históricas, humanísticas e artísticas, e de sua importância mundial e ancestral, está aplaudindo a verdadeira democratização da América. Para ela Estados Unidos é América, um continente que abraça dois continentes num só, de Norte a Sul, e que finalmente curvou-se perante o reconhecimento da pluralidade de raças em coesão nacional.
Sei que é bastante deselegante citar-se a si próprio, mas vou fazê-lo assim mesmo, pois há pelo menos dois anos, num ensaio em que analisei os dois filmes de Clint Eastwood sobre IwoJima, preconizei:
"...o filme "Flags of Our Fathers" (" A Conquista da honra")....pode parecer uma afronta ao patriotismo exacerbado do dia-a-dia do povo americano....mas não é: Eastwood fez do filme uma ARMA PARA LEVAR AO AMADURECIMENTO O POVO AMERICANO QUE, APÓS ANOS E ANOS NO TOPO DO MUNDO, DEVERÁ COMEÇAR A CEDER À HUMANIZAÇÃO DAS RAÇAS E PASSAR DE HUMILHANTE - POR SUA PUJANÇA - A HUMILDE POR CONFRATERNIÇÃO. E QUE ISTO LEVE TEMPO, SE FOR PRECISO. NÃO HAVERÁ DESONRA NISTO".
Não levou tanto tempo assim. Eastwood e Obama lêem pelo mesmo prisma a história do país, e um senador jovem, inteligente e arrojado, parece empenhado em concretizar o que eu, ilustre joão ninguém, só cogitara em hipótese.
Pois aqui estou eu, mera aprendiz de escritor, sem nenhuma formação universitária mas carregada, na pele, de experiências de vida, septuagenária, caucasiana, romana e católica que presenciou, ao vivo ou por TV, dezenas de fumacinhas pretas e brancas ao longo de seis papados, aqui estou eu, pronta a depositar num americano desconhecido, da mesma idade de minha filha, a determinação de mudar e ajudar a mudar.
Acordar com uma pergunta: o que eu posso fazer para mudar, em meu favor, em favor do mundo, do planeta, da natureza, do meu próximo? Na minha idade parece não haver muitos futuros a serem projetados. Agora eu pareço ter encontrado um.
Só por ter semeado estas perguntas no coração e nos cérebros dos seres do mundo, Obama já cumpriu uma boa parte de sua missão; mas o que é certo e evidente é que além da semente firmou-se a aceitação para uma mudança que, o mundo inteiro já pressentia, há muito tempo deveria ter sido abordada.
Se saberá dialogar com outras nações, se virá a ser um bom Presidente para os Estados Unidos, se driblará a crise, ninguém sabe. Em nenhuma eleição de qualquer candidato isto jamais foi ou seria garantido.
Portanto, bem-vindo Obama a esta hercúlea tarefa que é conversar com o mundo. Ajudar ou ser ajudado por ele. Perder ou ganhar com ele.





quarta-feira, 12 de novembro de 2008

CRIANÇAS - Conto


Porte ainda seguro e ágil aos setenta e oito anos, o homem sentia-se ainda mais revigorado naquela manhã fresca e ensolarada. Descia a avenida curioso de descobrir se reconheceria a esquina onde deveria virar a esquerda para ir ao Museu. Lembrava que, ao atravessar, veria uma igrejinha em frente à qual, anos atrás, havia comprado de um artista de rua, uma linda gravura: a minúscula imagem de uma mulher em semi-perfil, olhando um passarinho pousado no seu ombro, que lhe oferecia um pequeno buquê de flores do campo. O artista jovem, barbudo e jovial, sorrira alegremente: “Está levando o que o Museu aí ao lado recusou !” Tereza havia adorado a gravura e a estória.
Tereza. Já naquela época, ela não viajava mais. Apesar de seu espírito combativo enfrentar tudo com coragem e até com algum humor, o Alzeimer afetara seu equilíbrio e ela sabia que a qualquer momento poderia-se ausentar, assim, de repente e sem perceber.
Esta viagem representava para ele a aposentadoria real. Ao voltar, largaria assessorias, diretorias honoríficas, orientação de investimentos para seus filhos e amigos. Entre a varanda da casa de campo para fazer companhia a Tereza, enquanto ela pudesse permanecer em família, e o seu pequeno escritório ao lado do alpendre, começaria a escrever. Queria reler sua vida, lembrar sua infância, seus anos universitários, os projetos realizados, as utopias ainda na gaveta e as já atiradas ao lixo. Queria preparar-se para a tranqüilidade, e talvez a solidão, de seus anos futuros. Quantos? Rever ao redor do mundo o que lhe dera tanto prazer outrora, seria como recarregar as baterias para a serenidade.
De repente soube estar quase chegando. O ar frizante da manhã de primavera animou-o a apertar o passo. Ao olhar o relógio, percebeu que o Museu ainda não estaria aberto. Poderia entrar na Livraria em frente e ver as novidades: gostava daquela livraria antiga, suas vitrines emolduradas de madeira entalhada; modernizada em seus vidros não refletivos, sua entrada imponente ainda ostentava puxadores de bronze artístico encaixados em cristais bisotê que lançavam reflexos azulados e esverdeados como os lustres de certos castelos.
Certo, a Livraria primeiro. O cartaz na primeira vitrine anunciava ,no interior, a exposição retrospectiva de um grande fotógrafo; na segunda o lançamento de seu livro: alguns empilhados e outros, cujas páginas abertas, projetavam algumas de suas mais importantes fotos. Irving Penn, o fotógrafo da cidade. Entre um ângulo inusitado da ponte Verazzano, a vista sombria das velhas casas do Bronx e o perfil solitário das fábricas abandonadas, uma menina estava olhando para ele, de baixo para cima, mãos escondidas num camisolão branco, muita luz na franjinha aloirada. Estranhamente, sua legenda em francês: “enfant de New York, 1953”.
Franziu a testa, perturbado: esta criatura deveria ter hoje, mais de cinqüenta anos... Estaria ela agora aqui? Teria o artista acompanhado a vida daquela menina ou teria sido ela um modelo casual?
Entrou com inesperado interesse. Ficou encantando com o que viu, especialmente por serem todas aquelas fotos em preto e branco. Suas sombras, suas infinidades de cinza, a imperturbável estática das fotos, tinham uma verbosidade descritiva e barulhenta ao mesmo tempo. Parou em frente à ampliação da menina de camisolão branco. Tinha algo nela, algo que lhe dizia algo, algo que o levava para algum lugar, longe no espaço, longe no tempo.
Saiu angustiado. Queria entrar no Museu e, antes de ver qualquer outra coisa, queria sentar na cafeteria ao ar livre, concentrar-se, tomar algo nos jardins repletos de esculturas e arbustos. Estava ainda aí a cabra de Picasso, com seu ventre que parecia moldado numa cesta de vime, daquelas em que se poe o coalho para conseguir o queijo: estava lá o humor cáustico do espanhol que, ao mudar-se para a costa francesa, não dispensaria, nunca mais, seus queijos picantes.
Sentou debaixo de um guarda-sol branco, quadrado, cuja sombra desenhava, em volta da mesa e da sua cadeira, um recinto bem definido, como que a limitar-lhe os pensamentos, as perguntas, as angustias. Quis abstrair-se daquilo que o atormentava: sem levantar-se correu os olhos pelo resto do jardim reconhecendo coisa por coisa. O velho cabriolé de Dalí cheio de musgo regado por invisíveis mangueiras que o mantinham úmido entre os caracóis que circulavam por fora e, por dentro, na nudez do manequim. O cavalo esguio do Giacometti, de bronze escuro e superfície áspera, como tivesse sido composto de pequenos e grandes cones de areia molhada por uma criança inventando sorvetes. De longe, identificou coisas novas: um animal enorme de gordo, provavelmente a mais recente aquisição de Botero; um grande dedo polegar pintado de vermelho e uma lasca de mármore branco infestado de formigas de arame multicolorido. De quem serão... Sempre novo, sempre vanguarda, este museu, sempre reconhecendo além das artes, o poder e a beleza do design.
Por tê-lo visto premiado naquele museu, havia presenteado Tereza com o “Movado 1968”, o primeiro relógio sem ponteiros, fundo de esmalte preto, uma gota de ouro branco nas doze horas, único ponto de referência para sua leitura.
De repente, agora, não queria levantar daí. O acervo ele conhecia; mas sempre haveria algo novo em alguma sala especial, certamente algum outro design premiado. O mundo estava cheio de artistas criativos, inovadores fabulosos. Mas era naquele jardim que ele queria ficar. Sentia necessidade do ar livre. Por que? Depois do primeiro reconhecimento do que tinha ao seu redor, era a imagem daquela “enfant de New York, 1953” que retornava sempre à sua frente. Quantas vezes havia estado na cidade e nunca havia conhecido nenhuma criança, fora as que vira na rua, nos restaurantes, nos hotéis que freqüentava. Entretanto era como se ele conhecesse aquele olhar de uma outra vida, de outro lugar, de um outro mundo.
Tentou pensar em outras coisas. Resolveu almoçar lá mesmo, para tragar outras sensações, para concentrar-se em algo que lhe trouxesse outro tipo de prazer. Viu, no menu, omelete de queijo de cabra com legumes ao vapor; um copo de vinho branco seria ideal. Em homenagem a Picasso, fez o pedido à garçonete que o atendeu com sorriso lacônico e, para esperar, começou a folhear o catálogo da Livraria. Em matéria de lançamentos era difícil escolher entre romances, biografias e panoramas de tudo quanto era especialidade, arquitetura, engenharia, design, até moda. Poderia comprar um lindo livro sobre a moda para Tereza: tão chique, ela que sempre sabia usar uma extravagância e continuar elegante.
Um gole de vinho antes de começar a comer, deu-lhe sensação de frescor e alívio. Ao lado do prato, o catálogo ficara aberto na página de Penn, e lá estava de novo aquele olhar, de baixo para cima, braços encobertos por camisolão branco, luz na franja dourada. Só uma garotinha. Agora podia observá-la melhor: uma expressão quase adulta, olhos muito grandes para uma boca tão pequena, olheiras profundas demais para uma criança; os lábios tristes, criavam um sombreado intrigante sobre o queixo. Por que ela não ergue a cabeça, por que não olha de frente? Timidez, medo? Seria curiosidade disfarçada? É isto, isto mesmo: ela quer fingir que não está olhando. É isto.

Como aquela menininha que ficava do outro lado do torrente enquanto eu tentava pescar, com caniço e anzóis improvisados, algum peixinho que subisse a corrente, quem sabe alguma truta como meu pai sabia fazer. Há quanto anos? Onde era mesmo? Sim, lá num vale escondido entre as colinas da Toscana. De repente este vinho tem o cheiro de minhas iscas debaixo do sol, do respingo da água que corria sobre aquelas pedras coberta de algas e musgos; tem o sabor da limonada que mamãe me dava, seriamente, quando eu anunciava, como se fosse uma grande aventura, que iria pescar. E na maioria da vezes lá estava a menina, do outro lado da água, com o avental branco da escola, a espiar-me fazendo de conta que não olha. Mas ela não era loira e não usava franja. Tinhas duas trancinha amarradas no topo da cabeça e cabelo castanho. E aquele olhar. O mesmo olhar da garotinha americana desconhecida, que agora me leva de volta à minha infância, que me pressiona para voltar. Voltar rápido: preciso guardar este momento, ampliá-lo, descrevê-lo, reescrevê-lo, como fosse a única maneira de contar minha estória a mi mesmo. É lá naquele olhar que minha estória começa, recomeça, tem vida. E se agora ele volta à minha memória, é por que em toda a minha vida, inconscientemente, me acompanhou sempre. Devo ter lembrado dele, muitas vezes, muitas mais vezes do que me lembre.
Comprar o livro com aquela foto dentro? Devo? Quero? Ela está guardada dentro de mim há pelo menos setenta anos e eu não sabia.
Sempre me pertenceu, é minha.
Como ousa aquele Penn?...


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

OBAMA BARAK, PRESIDENTE

Ganhou as eleições, conforme confirmação de hoje. Andrea, minha única herdeira (do pen drive conforme consta no meu perfil...) mandou um e-mail comentando o feito e escreveu uma frase que considero, além de importantíssima, vaticínica e, quiça, antológica:
"MAIS DO QUE A COR DA PELE, QUERO CRER QUE A PLURALIDADE CULTURAL DE BARAK PERMITIRÁ AOS POVOS DO MUNDO DE OUVIR-SE RECIPROCAMENTE E MELHOR" .