quarta-feira, 24 de setembro de 2008

TRINTA ANOS: DUAS OBRAS DE WESLEY DUKE LEE DUAS FASES DO PODER DE CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO ARTISTA

Ensaio

Wesley Duke Lee – brasileiro apesar do nome - pintor de vanguarda, não conformista, experimentador, pesquisador e poeta da forma, questionado e endeusado. Quase desconhecido, sempre mal conhecido. Ele entrou na minha vida de modesta colecionadora de arte, há trinta anos, pela mão de uma obra intrigante, para começar, pelo seu título:

“Minha viagem à Grécia no Helicóptero de Leonardo da Vinci”
Ensaio Filosófico Visual, de Wesley Duke Lee,
36 transformações de sua autoria
Divagações por Pietro Maria Bardi
Editora Praxis Museu de Arte de São Paulo, MASP, 1978.

No lançamento, de tacada duas personalidade controvertidas que agitavam o mundo das artes do São Paulo daquela época. Agitaram e enriqueceram para sempre. Naquela época, uma obra apresentada em uma luxuosa caixa de linho azul, reunindo as gravuras de um artista, juntamente com a apresentação escrita de um “senhor” entendedor como o professor Bardi, fundador e diretor do MASP , e críticas de especialistas do gabarito de uma Cacilda Teixeira da Costa, foi uma revolução no mundo e no mercado de arte da cidade. Disse-se de tudo a respeito da idéia, mas isto não me tirou o prazer, durante anos e anos, de espalhar as gravuras no tapete de minha casa, e, deitada de barriga no centro delas, viajar para a Grécia com Lee, no helicóptero de Leonardo. Foram tardes de imenso prazer, mergulhando no mundo de Lee todo fim de semana para trazê-lo dentro de mim e fundí-lo com aquilo que eu já havia estudado e incorporado das obras do Leonardo: uma descoberta e tanto. Se por um lado os críticos e apresentadores do Lee haviam mencionado sua identificação com Oswald de Andrade e Flávio de Carvalho para muitas de suas manifestações artísticas, para mim não foi de estranhar que ele tivesse-se inspirado e aliado a Leonardo para percorrer o caminho da mitologia grega naquelas 36 gravuras, que ele chamou de “transformações”, e que traziam uma releitura profunda e bem humorada dos mitos; releitura às vezes crítica, outras cínica. Em “Minha viagem” Lee quase sempre acompanhou seus desenhos à reprodução do desenho original do “helicóptero” e suas especificações técnicas de punho do próprio Leonardo; outras vezes um deus, uma deusa ou um cavalo, animal-rei por ser o meio de transporte básico do século XIV, vivido por ele. Muitas das invenções de Leonardo, - nem todas realizadas mas de perfeita utilização como comprovou a IBM nos anos 80*, - foram dedicadas à locomoção. Desde as eclusas, que ainda regem muitos dos tráfegos fluviais, ao empírico sistema de bolinhas aplicadas às rodas das carroças para medir distâncias, e ao, finalmente, “parafuso voador” cujo principio básico ainda move nossos helicópteros. Mas também dedicou-se a pequenas amenidades, como a simples junção de retalhos pentagonais e exagonais para compor a bola perfeita que ainda rola em muitos de nossos gramados milionários; ao sistema de refrigeração a água que instalou nos aposentos de Ana de Bretanha no castelo de Amboise; ao sistema pantográfico e a mil e uma pequenas coisas cuja origem já nem lhe é mais atribuída visto as evoluções que a técnica moderna lhes imprimiu. Não por nada Bernard Berenson, o crítico e estudioso americano que revitalizou o Museu do Palacio Pitti de Florência, definiu Leonardo o “precursor da tecnologia”, em vista das soluções por ele propostas. Inusitadas levando em consideração sua época. Apontadas por Cacilda Teixeira da Costa, as diversas formas da obra de Duke Lee “são permeadas de uma preocupação essencial: os mistérios da origem, do sagrado, da felicidade, da sexualidade e da morte”. Estas fontes vem da literatura religiosa do ocidente e especialmente da mitologia grega cuja tradição filosófica sempre verteu sobre a relação vida-morte e, essencialmente, sobre a necessidade de eliminar os obstáculos que demasiadas vezes nos impedem de viver bem conosco e com o próximo, de viver uma vida com conforto espiritual e físico, com lazer e prazer, assim como morrer deixando lições. Leonardo baseou sua cultura humanista nos legados dos sábios latinos e sua cultura técnica nos dos gregos. Além de ter sido o primeiro a deixar – preto no branco- o mais perfeito registro das proporções do físico humano, ele abrange, em seu “Código Atlántico”, mais de mil manuscritos e desenhos tão ecléticos que vão da literatura à arte militar, da astronomia, à hidráulica, geometria, aeronáutica, acústica e ótica. Em “Minha viagem”, Lee apossou-se tanto do “parafuso voador” de Leonardo, como de sua ótica, para ir simbolicamente à Grécia resgatar, do classicismo, sua própria visão realista do mundo de hoje. Ele não descreveu sua viagem à Grécia naquele helicóptero, mas transformou sua emoção visual e sensorial, guardando em sua memória os mitos e suas representações esculturais gregas, como fossem negativos de fotos hipoteticamente tiradas há dois mil anos e finalmente revelados e impressos nas suas 36 gravuras. Isto ficou muito evidente no poema introdutor à sua própria obra. É de se estranhar, portanto, que ele não tivesse chamado as suas gravuras de “revelações” em vez de “transformações”, pois na realidade seu significado se enquadrou não somente numa etapa da arte fotográfica, mas primordialmente na aparição e identificação de verdades, descobertas e reconhecimentos: as verdadeiras revelações. Mais ainda é de se estranhar que Lee não tivesse ostensivamente acusado Leonardo de omissão por não ter arquitetado – do alto de seu parafuso voador – mais um dispositivo ardiloso que registrasse o panorama para a posteridade. Em suas “divagações analíticas”, como chamou sua apresentação da obra de Lee, Bardi aproximou as “revelações” de Lee às múltiplas faces do processo criativo da obra em questão; inclusive à essência da nossa leitura, qualquer que ela seria, e à essência do próprio Lee, qualquer que ela tenha sido ao criá-la. Hoje, depois de trinta anos, eu dou bom dia a uma gravura daquela série: ela colore uma das paredes brancas do meu pequeno apartamento, entre duas janelas, sem receber luz natural direta, nem reflexos de lâmpadas. Suas cores são nítidas e puras. As demais foram distribuídas – ao longo dos anos – aos amigos mais queridos por ocasião de festas e aniversários; devidamente enquadradas em passepartout neutro, (sem moldura para que todos pudessem exercer o próprio estilo), acompanhadas de xerox do poema e das divagações que compunham a documentação original da obra. Foi a maneira que achei de compartilhar meu prazer, já que não disponho mais do espaço necessário para a apreciação da obra em sua totalidade. De repente: há poucas semanas a revista “Veja São Paulo” trouxe o artigo “O retorno do Mestre”, Wesley Duke Lee: na Galeria Ricardo Camargo, estariam as telas da série “O Filiarcado”, de 1999, re-apresentadas como despedida do artista que, afetado pela doença de Alzheimer, encerraria assim suas presença física no mundo das artes. Seria uma oportunidade única para quem não conhece a obra de Lee e imperdível para quem já tem familiaridade com sua identidade artística. Foi lá que reencontrei as elucubrações do visionário Lee: grandes telas em formato de losango, em pé, fixadas por uma das pontas, em pedestais de vidros e aço, como estivessem soltas no ar, melhor: ao ar livre. Como as crianças que ele pintou, divertindo-se com brinquedos rudimentais, hoje quase históricos. Desta vez, Lee entregou-se corpo e alma à técnica renascentista: seus “puttini”, não diáfanos como os anjos de Andrea del Sarto, mas plebeus e realistas ao gosto do Mantegna, dançam, nadam, jogam ao tiro-ao-alvo, à cabra-cega. Acertaram os curadores da mostra, Ricardo Camargo e Roberto Comodo, ao identificar o estilo de Mantegna nestas pinturas de Lee, pois apesar do Mantegna ter sido um dos precursores da renascença, foi seguramente o primeiro “verista” por ter usado como modelos os rostos do povo, dos marceneiros, dos pescadores, dos mendigos, das prostitutas, mesmo em temas religiosos. Não tendo mecenas que lhe sustentassem a fúria criativa, Mantegna venceu justamente por seu realismo exacerbado: seus santos e mártires são figuras reais que se imolaram por uma crença, sem ascetismo. O seu “São Sebastião”, no Louvre, mostra ombros e pescoço fortes de operário musculoso, mandíbula enrijecida, olhar pronto a suportar o martírio. Dentro daquela galeria, num beco charmoso atrás da Faria Lima, uma iluminação cálida, entre o ensolarado e o “vermeil” metálico, enfatizava os três tons em que Lee dividiu suas pinturas: albedo ( fração clara de luz difusa em superfície), rubedo (fração avermelhada), nigredo (fracão escura). Todas as telas apresentam relevos provocados por camadas irregulares; “espatuladas” de areia, talvez algumas de gesso, argamassas recobertas de uma das três cores; crianças contornadas por pastel à óleo: os corpos nus, os rostos mais variados onde reencontramos o sarcasmo lúdico de Lee: na cabra-cega, um dos meninos tem traços envelhecidos, como se há anos estivesse brincando da mesma coisa sem nunca ganhar. Os dois no trenó, bem maiores dos três que os puxam, tem a expressão mais adulta e claramente sardônica. Lee divertiu-se não em pintá-los, mas em criá-los. Se as telas nos remetem a desconhecidos desenhos rupestres, seus conteúdos nos colocam perante as últimas lembranças de um fauno que cresceu, envelheceu, e agora, no limite de sua existência, relê sua vida, deixando-nos só a parte ingênua, naive, natural, infantil para sempre, como se a vida do artista estivesse apenas começando: bem-vindo ao mundo, Wesley.

· Nos anos 80, a IBM trouxe para o MASP a exposição completa que mantêm desde os anos 60, na casa em que viveu Leonardo da Vinci, em Amboise, no vale da Loira, onde, no castelo gótico-renascentista de Carlos VIII, trabalhou por muitos anos com o patrocínio de Ana de Bretanha. Naquela casa a IBM mandou construir – obedecendo todos os detalhes dos desenhos de Leonardo, mas alguns em escala menor – todas suas invenções, colocando-as em funcionamento, e comprovando portanto sua exatidão.

“O SENA NA NEVE”

Miniconto gastronômico para um amigo

A meia lua de lâmina duplas ondula sobre a tábua de madeira, triturando, esmagando, amalgamando salsa, alho, tomilho, tomate seco e azeitonas verdes, junto com os champignons frescos, cheirosos, completos de chapéus e talos. Um festival de cores. Rápido, rápido, tudo para a frigideira de ferro, antes que a manteiga escureça. Rápido, o golpe giratório para que as cores comecem a rodar em volta das bordas. Uma boa dose de conhaque e, rápida, a chama do gás para dentro da frigideira.
A mão direita do homem firme no cabo, a esquerda no ar, trazendo com gestos macios o aroma para perto do nariz. Olhos entreabertos, satisfeito, sorri.
Sobre o “réchaud” um prato aguarda: chiquérrimo, ovalado, todo branco. Duas folhas de alface, uma de cada lado; uma tirinha de brie sobre uma, uma de camembert sobre a outra. Rápido despeja as cores da frigideira entre as duas alfaces, um filete de creme fresco em cima de tudo. Dois grãos de zimbro para enfeitar e o moedor de pimenta sobrevoa rápido o prato. Está pronto.
As duas tiras de queijo sobre as alfaces lembram uma vista de Paris: os cais da Rive Gauche e Droite debaixo dos plátanos. Aí está: “O Sena na neve”. O homem sorri novamente: que bom nome para este prato, lindo, perfumado, leve, o melhor que tem criado nas últimas semanas, digno de um Bocuse. Senta-se olhando para o lugar vazio do outro lado da mesa e ataca de garfo.
Ele saboreia tudo. A decoração está linda: dois lugares, um em frente ao outro, velas em dois suportes com pequenas guirlandas de flores amarelas, copos de vinho, de água, de champagne. Um Sauterne já aberto para respirar.
Do outro lado da mesa: o prato imaculado, a corola de copos, o espaço entre as duas velas; tudo cria uma moldura ideal para uma linda cabeça ruiva, dois olhos claros e um sorriso suave. Aquela imagem acompanha seu jantar. Sua vizinha do andar de cima é alta, esguia, rabo de cavalo, maquilagem zero, passo elástico em sapatos baixos e macios. Seu ar modesto, mas seguro, sempre lhe inspirou serenidade e, ao mesmo tempo, autoconfiança.
Agora, do prato do homem, já vazio, um molho solitário olha para ele, convidativo. Furtivamente, da cestinha de fina palha prateada, um pãozinho macio, parece piscar para ele. E ele não vai desperdiçar aquele deglacée divino...O Sauterne está apenas fresco, no ponto certo: pode estalar a língua......em total, quem vai criticá-lo? Na outra extremidade da mesa, o branco do prato vazio, parece reprovar. “Isto não se faz, não é de bom tom...” O homem levanta o guardanapo do colo, cruza os braços satisfeito. Seu olhar perde-se na escuridão entre as duas velas.
“... Tá, prometo que não farei nada disto. Semana que vem, crio coragem e a convido para jantar... Como será que ela se chama...”

ENSAIO SOBRE “UMA HISTÓRIA DO CONTO” DE GUILLERMO CABRERA INFANTE

Difícil escrever um ensaio sobre um texto que já é um ensaio “di per se”, só que de autoria de um escritor com a E maiúscula, que o tratou como uma composição literária e não como um exame técnico-analítico. A linguagem de Cabrera canta, tem ritmo, onomatopéia, quase rima:

........houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção...

Daria para solfejar: não tivesse obedecido às linhas corridas da prosa, poderia ser chamado de poema. Cabrera, cuja obra não conhecemos a fundo, demonstra ser um apaixonado do conto, fazendo-nos perceber que Conto é um gênero nobre, com brilho próprio e não uma mera etapa preparatória para o romance. Ele nos dá a história do conto com a habilidade, a leveza, a versatilidade e todos os demais elementos que identificam o gênero, inclusive ironias e trocadilhos

(.....na saga arturiana que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas...),

críticas e sarcasmos

(...o livro do escritor cairota Naguib Mahfuz quer ser árabe e é apenas egípcio),

e até pede emprestadas a Jeronimus Bosch e Salvador Dali imagens surrealistas

(...até que chegou Stalin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista, transformou a fértil
literatura russa num deserto com tratores...).

Enfim, Cabrera demonstra ser um contista da melhor qualidade, num texto em que poderia ter se limitado a oferecer nomes e estilos das épocas, na aridez de uma listagem seletiva de “ quem é quem” no mundo do conto. Mas ele se alimenta- e nos alimenta – da pesquisa sobre os primórdios da comunicação, levando em consideração que hieróglifos e ideogramas rupestres já eram uma forma de transmitir um acontecimento, portanto contar uma estória, um conto. E que os homens descendentes daqueles que os esculpiram em pedra, foram ampliando as mesmas estórias de geração em geração até que:

(....passados tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever e, é claro, a ler, e outros animais e outros homens que se transformavam em animais, povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era a transcendência chamada religião..)

É a partir da mitologia que Cabrera inicia seu passeio prazeroso através dos estilos: do grego Homero, ao romano Ovídio, até Petrônio, cujo Satyricon foi considerado o primeiro romance por ser a reunião de estórias fragmentadas a respeito dos mesmos personagens. E o inconfundível estilo dos contos árabes e orientais de transmissão oral, até os contistas que começaram a ser publicados, mesmo que manuscritos em pergaminhos ou em outros tecidos vegetais, o que começou a criar, de alguma forma, o registro mais tangível da criação literária. Seria inútil falar aqui de todos os escritores que Cabrera menciona, mas o importante é ter entendido a influência que uns exerceram sobre outros, às vezes provenientes de culturas e línguas diferentes. A clareza com que Cabrera nos leva de um autor para outro, nos abre portas para descobertas pessoais. De repente parece lógico que o “Decameron” - coletânea de contos picarescos de Boccaccio em 1300 – tenha influenciado os “Cantebury Tails” de Chaucer, mas não os “Contos Exemplares” de Cervantes. Levando-nos de mãos dadas pelas páginas de autores ingleses, russos, franceses e americanos, Cabrera nos apresenta os gêneros mais diferentes, do policial ao mistério, ao horror e ao suspense, ao socialmente e politicamente engajado. Ao chegar à produção do conto contemporâneo, Cabrera nos dá. Com um acidez mal disfarçada, quase uma crítica a escritores que publicam em revistas e semanários suas obras até em episódios, como fizeram Updike, Parker, Fitzgeral. Devemos discordar para não ter que tachar de oportunistas os grandes pintores e arquitetos que, na Renascença e antes dela, foram protegidos por reis e mecenas. Na nossa era quem escreve raramente tem uma fonte de renda suficiente só pela venda de livros; publicar em revistas, jornais e semanários, escrever roteiros de cinema e crônicas jornalísticas não somente enriquece a conta bancária, mas contribui a manter vivo o interesse pelo autor. Ou seja: os meios de comunicação de hoje exercem a função de divulgação em grande escala, da mesma maneira que reis e mecenas faziam –em escala mais restrita -provocando a admiração – e frequentemente a inveja – entre seus pares. Extremamente interessante a maneira como Cabrera se policia quando percebe que está divagando, trazendo a tona obras que, ou não são contos mas novelas, ou são obras vertidas para o cinema. Num curto parágrafo, que tem o ritmo Shakespeariano do discurso apologético de Marco Antônio, ele se emenda:

“.....mas vim aqui para falar de conto...Toda intromissão de outro gênero deve ser considerada uma digressão. E a digressão nunca deve ser considerada uma agressão....

Assim que for possível pretendo conseguir as duas obras de Cabrera, esgotadas há tempos, que a Cia. Das letras publicou: “ Havana para um Infante Defunto” e “Mea Cuba”, cujos títulos já revelam um apuradíssimo sentido de humor cultural. É até possível que possamos descobrir que existem mais livros, além dos que conhecemos, que não se lêem somente por que se publicam!

AME.

(texto de amor com poemas para uma amiga que já é poema)

Escuridão* Três fósforos, um a um, acesos na noite
O primeiro para enxergar teu rosto inteiro
O segundo para ver teus olhos
O último para ver tua boca.
E a escuridão total para lembrar-me
de tudo isto enquanto te aperto nos meus braços.

Amar não é só apaixonar-se, desejar, querer tocar, querer sorver e absorver, trocar beijos, fluidos e sonhos. É também trocar respeito, amizade, cultura, gostos, sabores. É também construir algo dividindo seu dia-a-dia com alguém, mesmo que não seja para sempre. Mesmo a dois – e enquanto durar – aquele construir tem que aglutinar os seres ao redor, sem isolamentos, sem segredos, sem vergonhas ou pudores. Na mais sincera forma de aceitação, livre de preconceitos, de exigências, mas oferecendo e aceitando críticas procedentes mas construtivas, portanto benéficas. Seguramente, uma das mais lindas e gratificantes formas de amar é – mesmo sem se amar reciprocamente – aprender a amar a dois a mesma coisa. Será a única forma de enriquecer e perpetuar o amor que já nasceu conosco. Entretanto nos surpreendemos diariamente com o nosso próprio esquecimento de valores, e só mais tarde nos conscientizamos que pecamos. Tarde demais? Nem sempre: vale pedir desculpas, confessar, retratar-se? Vale, sim: Se nosso amor for maior que nosso orgulho. E ame também as coisas ruins que cruzam e cruzaram sua vida. Ame sua infância, sua vida passada, mesmo sofrida. Ela lhe trará cheiros e sabores que você pensa ter esquecido. Ame sua força de superar e superar-se: ela é a fazedora de resultados, apesar de tudo. Respeite-se por ela. E, sobre tudo, não abra mão de seus sonhos, nem do seu sonho de amor, mesmo inadequado ou esgotado. Como disse um poeta quase desconhecido**, neste versinho amargo mas revelador:

Não obstante meu ardor,
esta atração enorme que me envolve,
não posso prosseguir:
Você é humano demais para o meu sonho

*Jacques Prevert (1900-1981?) escritor e cineasta (Os visitantes da noite, As crianças do Paraíso, O cáis das Névoas)- No livro: “Palavras”
**Arlindo Viana,- No livro “Poesias em quatro atos”.

O CRIME

(conto cinematográfico para um amigo dos olhos de avelã)

Magro, roupa surrada, olhos grandes demais, o rapaz entra no prédio com passo seguro. Já está cansado de subir aqueles três andares pela enésima vez, cansado de ter que enfrentar aquela velha nojenta. Ao olhá-la, sempre tem a sensação de que a profissão dela não era agiota, mas vampiro. Quando ela abre a boca ele sente naquele hálito o cheiro de seu próprio sangue, e a cada vez sente que aquele vampirismo aguça-se cada vez mais, complacente, olhando para ele com aquele olhar ambíguo, entre o cínico e o guloso, quase a dizer-lhe: você não sobrevive sem mim. Nunca o que ele lhe entrega é bom o suficiente para que o empréstimo do penhor chegue perto do que ele precisa. Mas hoje será diferente. Ao receber seus últimos haveres, ela abrirá uma caixa onde guarda os butins, tirará do moedeiro e escolherá uns poucos trocados para colocar na palma de mão dele. Hoje é diferente sim: é ele quem a olha com olhar homicida e assim que o butim e dinheiro estão a vista, ele prepara-se a fazer o que mil vezes sonhou fazer. Pronto: agora posso estrangulá-la. “Não, não!” grita uma voz surgida do nada. “Tire a faca do bolso, mate-a com a faca, longos cortes profundos, como se fosse com um sabre: quero sangue, muito sangue. E se aparecer a idiota da irmã, mate ela também!” Apareceu. As mãos do rapaz trabalham sem parar: gargantas, braços, corações, ventres. “Tem que jorrar, quanto mais sangue melhor! E rápido, para que o sangue se junte e desça escada abaixo! Quero um rio, com ondas e com toda a sujeira do lixo de Leningrado, e se calhar, o de Moscow”. Atônito, o rapaz não está preparado para tanto. Enquanto enfia no bolso o que pode em jóias e dinheiro, começa a patinar em cima das poças de sangue e, já fora do apartamento das velhas, escorrega até cair no chão; na escada tenta segurar-se nas grades dos corrimão, mas suas mãos já não têm aspereza suficiente para se agarrar em nada, tão encharcadas estão daquele vermelho pegajoso. Ao escorregar, escada abaixo, degrau por degrau, sua nuca bate em cada um, seus olhos mal vêm o revés do lance de escada do andar de cima. De repente, a voz de Sônja. Sim é a voz dela: em pé no corrimão do quarto andar, aos prantos: “Espere, espere, vou te ajudar!” E salta no vazio, certa de chegar ao térreo antes dele e ampará-lo. Suas roupas enchem-se de ar como um guarda-sol para amenizar a aterrissagem. Mas eis o comissário entrando no átrio aos saltos, e já ao pé da escadaria, agarra o pulso de Sonja que fica suspensa no ar, pisa fundo com o pé esquerdo no peito do rapaz, imobilizando-o, e com a mão esquerda aponta a arma à sua cabeça. A voz volta a gritar: “Congela!!” Um velho, de fronte muito calva, mas de bigode, barba e cabelo compridos, sai da escuridão e corre para o homem sentado no alto de uma máquina. “Não, não é assim, nunca foi assim, não quero que seja assim. Você não pode fazer isto!” O homem desce, acaricia seu longo queixo sem disfarçar sua satisfação interior e replica: “Cale a boca, Fiodor. Eu sei o que estou fazendo. Quando isto sair, o resto do mundo vai voltar a lembrar teu nome, vai reler teu livro e quem não leu, vai sair comprando adoidado!” Vira-se de costa e grita: “Cadê o designer da produção?” “Estou aqui!” “Ótimo. Então anota isto: o filme acaba aqui. Quero a lista do cast e dos créditos colocada no início do filme, logo após o título. A cena que mandei agora congelar é a última cena. Amplie para que o vermelho do sangue invada a tela inteira, deixando somente a silhueta preta do comissário de costas, no canto inferior esquerdo. Apague a figura de Sonja e o revólver do comissário. Quero que ele pareça um grande T maiúsculo, todo preto, ligeiramente inclinado para esquerda. Será a última e única imagem: o resto de minha assinatura, eu faço depois.”

CRÔNICA SOBRE A RE-LEITURA DE CRIME E CASTIGO

“ Dostoievski no meu ontem e no meu hoje” Aos pouco mais de vinte anos de idade o livro me fascinou pela imensa piedade que a miséria do protagonista me transmitiu, pelo detalhamento de cada cômodo e seu apetrechos, enfim pela força descritiva que parecia fazer-me ver as cores sempre mais sombrias (por que terá sido?), e sentir os cheiros de cada coisa. E quão romântico pareceu-me o amor de Raskolnikov por uma Sônja prostituta, e quão cruéis os interrogatórios do comissário Porfiri Pietrovich, antes mesmo de ter comprovado a culpa do estudante: atitude policial abusiva, legalmente condenável! É claro que com o correr do tempo, alguns detalhes, parte da história, e minhas próprias impressões, foram empalidecendo. Foi com certa curiosidade e com extremo prazer que voltei a lê-lo. E com surpresa, - claro, mesmo por que eu também estava mais madura - pareceu-me mais novo, mais rico, mais chocante. Mais novo, como se tivesse sido escrito mais recentemente, por que continua universal em sua essência, mesmo que as personagens sejam mais antigos em princípios e comportamento. Mais rico por que descobri nele uma imensa gama de vocábulos que na literatura moderna tornaram-se raros, não por que tenham envelhecido, mas por que o linguajar de hoje parece envergonhar-se de sua erudição. Seu conteúdo analítico das personagens e dos acontecimentos, me trouxe a necessidade de refletir sobre assuntos que vão desaparecendo no uso das “ondas de frequëncia modulada” da superficialidade contemporânea. E finalmente mais chocante “contra” mim mesma: como não ter notado, na época, a profunda penetração de Dostoievski na alma de Raskolnikov? Voltei a ler inúmeras vezes os trechos em que traça o perfil do estudante que, apesar de seus precários meios de sobrevivência, ainda tenta sentir-se responsável pelo resto de sua família de quem, porém, depende financeiramente. Não havia guardado, anos atrás, os detalhes de seu temperamento que hoje me revelam que reduzir-se a levar seus poucos pertences à agiota, era resultado mais de uma preguiça totalmente física do que a alienação mental que nele se instala ao planejar o crime. Como não ter percebido que aquele amor dele por Sônja – que tento me havia comovido antes – nunca foi amor: ele sentia-se compelido a confessar o crime a alguém por que não conseguia mais guardar dentro de si o pecado segredo do homicidio cometido. E a quem melhor que uma Sônja, ela também pecadora, prostituída em prol da família, tão sofrida e carente quanto ele, para ouvi-lo, guardar segredo e compreende-lo? Ele só escolheu, instintivamente, com quem juntar duas misérias, para construir uma união de mútua compaixão. Ela sim, provavelmente, amou-o, levada por um sentimento de gratidão por ter confiado nela, pobre ignorante, e finalmente pela possibilidade de abandonar sua vida degradante. Isto parece evidente quando ela decide acompanhá-lo na prisão, o que em algum momento quase imperceptível sugere-se que a intervenção dela junto ao diretor da prisão, aliviaria os trabalhos do condenado. Se esta intervenção implica na disponibilidade carnal de Sônia para consegui-lo, parece lógico atribui-lo a um ato de amor. Finalmente minha descoberta da personagem Porfiri Pietrovitch, cuja atuação perante um suspeito, sua habilidade em colocá-lo em xeque, só agora me pareceram freudianas, como premonitórias da prática da psiquiatria, arte surgida do estudioso austríaco que foi sim, contemporâneo de Dostoievski durante poucos anos, mas cuja obra só começou a ser levada à imprensa cerca de dez anos depois da morte do russo. Na segunda leitura, onde antigamente pareceu-me uma bravata, agora o interrogatório montado por Pietrovitch, com suas perguntas sem pausas, sua perseguição verbal e seus argumentos diretos, - raciocinados como se o próprio Pietrovitch tivesse arquitetado o assassinato, soou como uma grande ameaça, clara e explícita: “ tenho meios científicos para chegar dentro de você”. Foi uma premonição da “angustia da influência”, ou teria Freud lido o russo agarrando-se às bases de suas observações para validar suas teorias? Só a ambientação em St. Petersburgo ficou para mim mais difícil de voltar a imaginar como havia feito há tantos anos, e como estava descrita:cinzenta, descolorida, tristonha apesar de fluorescente em negócios e atividades financeiras, com a vitalidade típica de uma cidade importante de meados de 1800. Deve ser porque há uns poucos anos – na realidade mais do que neste momento consigo julgar – tive a chance de estar lá, achando-a clara, colorida, alegre: uma das cidades mais bem arborizadas do mundo, fria mas ensolarada num Junho que – numa primavera tardia -aspergia pelo ar as sementes dos plátanos que ladeiam as grandes avenidas, num rodopiar de flocos, quase brancos e leves como neve fora de estação. Não sei como, estando lá, não pensei na St. Petersburgo do Dostoievski/Raskolnikov. Não sei como, ao emocionar-me na cripta do memorial ao cerco dos 900 dias, não re-encontrei lá a emoção da primeira leitura. Deveria haver uma idade certa para certas leituras. Ou então não: deveríamos reler os grandes clássicos da literatura universal a cada fase de nossas vidas. Vou colocar na agenda do meu computador, para daqui a vinte anos, um lembrete: ler Crime e Castigo. Daqui a vinte anos....estou sendo demasiadamente otimista...

CRÔNICA DE UM DIA DE AZAR

-“Só quero vê-la em fins de Setembro. Está tudo pra lá de satisfatório, viu? Continue assim!” Estou feliz: colesterol OK, glicemia nota 10, potássio normal. Vou continuar me contentando de saladas, legumes, peixes e carnes brancas, frutas e sucos naturais e me regalando – alegremente, mas só uma vez por mês – uma carne suculenta, ou uma fritura crocante, ou uma sobremesa de arromba. Saio risonha da clínica para a rua ensolarada, procuro a sombra das árvores: o sol está forte e o ar abafado, prenúncio de temporal. Mais tarde acabará refrescando, mas por enquanto suo em bicas. Meia quadra ate o estacionamento. Pago alegre e aguardo que me tragam a Katarina. É: meu Ka tem nome, como tem nome meu gatinho de madeira que dorme num canto da sala, tão perfeito que parece ronronar; como tem nome o sapo de terracota, boca rasgada e pernas tortas, que divide o chuveiro comigo. Que bom, daqui a pouco chego lá: um banho rápido, um suco e uma maçã correndo e depois irei me refrescar na hidroginástica. Katarina não chega. Espero no sol, o estacionamento é ao ar livre. - Faltou manobrista hoje, Sr. João? - Faltou não. Oh, Zé, cadê o carro da doutora! Deixo Katarina há anos aqui e já expliquei ene vezes que não sou doutora, mas eles insistem; provavelmente em homenagem à minha idade. Lá vem o Zé: chaves na mão. - Doutora, o carro não quer pegar! Juntam-se mais três. - Preocupa não, doutora, vamo fazé pegá no tranco. Sorrio, espero e olho os homens empurrando Katarina em vão. Nada. Sei que todos tem boa vontade, mas ficam uns quinze minutos no nada. Que azar. - Doutora, acho que é a bateria. - Tem uma oficina por perto? - Tem sim, a três quadras daqui. Vou lá. No caminho os primeiros pingos de chuva. Aperto o passo, chego lá na hora que começa a chover mais forte. - Tem alguém para ver meu carro no estacionamento da Martim Francisco?Não está querendo pegar. - Não estamos mais fazendo atendimento de rua, Dona. Só consertos de seguros, mas tem outro a duas quadras daqui. Muito bom, chama Adauto. Diga que o Zé Corintiano mandou! Lá fora o dilúvio. - Posso esperar a chuva estiar? - A vontade, Dona. Olho o relógio, já passa das três, chove, estou atrasada e o guarda-chuva ficou no carro. Azar. Espero mais quinze minutos e resolvo me molhar. Corro as duas quadras. - O Adauto está? - Foi tomar café na esquina, já vem. Espero. Que nome: Adauto. Com um nome desse nunca escolheria ser técnico de televisão...Mais dez minuto. Adauto chega. Explico. - Vamo lá, Dona. Pego meus treco e vamo. Some lá para os fundos e volta com uma caixa de ferramenta na mão direita e um saco de lixo feito capuz na cabeça cobrindo também o ombro esquerdo onde segura uma bateria. Vamos os dois na chuva, arrisco um “ desculpe o transtorno”. - Que é isto Dona – e ri seu riso mulato, gengiva muito rosa – a gente tá aí pra sol, chuva, calor e frio, e agradece a Deus que aqui, - titubeia - não tem neve. Percebo que não saberia declinar o verbo nevar. Chegamos. Abro o guarda-chuva que tiro do carro e fico olhando. Meu cabelo está pingando, o sapato cheio de água. Adauto dá um ói aos outros, abre a caixa, tira uma porção de ferros, olha desolado para mim. - Desculpe Dona, esqueci um troço. Volto já. Azar: pelo menos mais uns dez minutos. Volta sorridente, troço na mão. Começa, carrega a bateria, Katarina não pega, uma, duas vezes: nada. Abre o capô, desmonta peças, remonta peças. Nada. Azar. Olho o relógio: minha hidroginástica já era, e Katarina nada. Começo a pensar seriamente em ligar para o guincho do seguro. Olho para o Adauto que está me chamando, mas sou eu a falar. - Sr. Adauto, meu carro veio de uma revisão completa faz dez dias, o que pode ter acontecido? E ele: - Está tudo tão perfeito que não sei mesmo não... Olha de novo dentro do capô, mexe mais uma vez em tudo. A tarde está se esvaindo e nada. Horas perdidas. A roupa molhada está ficando gelada; o cabelo empastado parou de pingar, mas nada. Azar, perdi a tarde inteira. De repente Adauto corre para dentro do caro, senta, se abaixa, pega algo debaixo do painel, mexe uns minutos delicadamente com os dedos e sai triunfante: sorriso mulato, gengiva muito rosa, uma pecinha avermelhada na mão, quadradinha e achatada, do tamanho da unha do meu polegar. - Achei Dona. Fuzil! Aqui está o queimado. Já troquei. A Forde deixa sempre um estoque grande no estojo de reserva. Olho a pecinha, agora na palma da minha mão. Fico pasma: um fusível azarou minha tarde inteirinha. Por reação nervosa começo a tremer de frio. Pago a todos, gorjetas aqui e acolá. Agradeço a todos, João faz questão de levar Katarina até a rua. - Obrigado Doutora! Na hora de entrar no carro, um idiota passa a todo vapor do meu lado em cima de uma poça e lá se vai minha calça de linho cru, agora cheia de lama e graxa. A chuva começa forte, agora desaba mesmo. O trânsito está daquele jeito, mas estou chegando em casa; pelo menos isto. Ao entrar, cumprimento o gato Mustafá, jogo no chão do banheiro minhas roupas, as de cima e as debaixo. Entro no chuveiro, rego o sapo Craco e sento no chão debaixo de uma água quente e reconfortante. Acabo com o frasco de shampú. Toalha enrolada na cabeça, roupão apertado no corpo, dou um nó no cinto e enfio as mãos no bolso: hoje mais nada, não faço mais nada, não quero mais nada. Nem comida. Deito no sofá, nuca num braço, calcanhares no outro e ligo a televisão. Num desses canais sensacionalistas, uma mulher na delegacia dando queixa de assalto na marginal. Choramingando, encharcada de chuva, cabelo escorrendo. - Levaram tudo, meu dinheiro, meus cartões, meu relógio e até meu guarda-chuva. Só não levaram o carro porque havia parado de estalo naquela maldita marginal e não pegava mais. O delegado suspira. - É, sei minha senhora, o patrulheiro me falou. Foi ele mesmo que trocou seu fusível, não é? Solto uma gargalhada. De repente estou com fome. Risotto de atum com alcaparra. É pra já.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

CARAMBOLAS

Crônica para uma amiga

As mãos de Salma, são grandes e nodosas. Elas carregam consigo o trabalho de tantos anos de cuidar, colher e cortar limões. Nesta última tarefa, a de cortar limões, é que revelam a paixão: fatias grossas desnudando o contorno bem amarelo, a espessura branca esponjosa, os gomos irradiados do centro para fora, feito estrelas. Ela junta com a lâmina da faca o suco que delas se desprende, como se ele não acabasse desperdiçado na tábua de madeira ou na pedra da pia. Com a inibição e o recato ancestral das mulheres muçulmanas, e apesar do corte rítmico, ou talvez justo por ele, é surpreendente ver o manuseio quase fálico com que Salma trata aqueles limões, grandes, muito amarelos, casca carnuda, uma pequeno saliência do lado oposto do caule. Seguramente é o gesto que desenvolveu, quando já viúva e sozinha, passa a cuidar da plantação, talvez inconscientemente treinando, no trato daqueles frutos, os prazeres carnais que se havia negado. Preencher grandes potes alternando fatias de limão e pimentas dedo-de-moça, salpicando agilmente os temperos e cobrindo tudo de um denso líquido antes de atarraxar as tampas, é coisa corriqueira para ela, visto as prateleiras cheias daquelas conservas, enfeitando sua cozinha. Coisa corriqueira, sim, mas ritual preservado em orgulho, dignidade e altivez. Não a toa, os outros não a chamam Salma, mas se dirigem a ela como “uno Nasser”, o reconhecimento de que ela é a legítima representante da família de que ela carrega o sobrenome, como se ela mesma fosse a própria família, ou o seu coletivo.
Salma é personagem do filme “Lemon tree”, (Etz Limon, produção Israel/Alemanha/França, 2008), uma ode à coragem, sensibilidade e humanismo não só de uma, mas de duas mulheres, a segunda uma israelense. São as mulheres de Atenas que ressurgem de uma luta ancestral, de uma guerra sem vitórias previsíveis, e por isto mesmo mediadas, pouco a pouco, pelas mães, esposas, camponesas, diplomatas, viúvas e amantes, todas concentradas em duas únicas mulheres, entre árvores frutíferas e limões, caídos ou não, cujo cheiro parece saltar da tela, salivação aguçada pelo calor da terra : lágrimas não derramadas.
Escondida atrás de um cortiço da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, há uma única árvore de carambolas, que quase roça nas janelas da casa da Sandra. Seus frutos amarelos que eu lembro servir , cortados em forma de estrelinhas e regadas a suco de laranja lima, para minha filha pequena: eram aquelas formas que a incentivavam a comer fruta no lugar de doces.
Quem mora naquele cortiço, há crianças? certamente há mulheres: de que região vieram, o que fazem com tanta carambola disponível? Fazem geleia, ou as caramelam no forno com canela e açucar.....esta palavra que nos chega do sânscrito, portanto de longe, de outra raça, de outra religião. Que tipo de mulheres são essas, de nossa mesma terra sim, vizinhas sim, mas relegadas a uma distância tão pequena que não as alcançamos........E como elas alcançam aqueles frutos? com vara longa, com escadas, sacudindo os ramos, ou escalando os troncos como os catadores de coco?
Não haverá necessidade de nenhuma Salma para cuidar aquela árvore de carambolas. Esta nossa terra é pródiga, fértil, generosa: seu frutificar dispensa as Salmas dos terrenos arenosos da Palestina e de Israel; ela solta pelo ar a luminosidade de seus frutos, também amarelos, também dourados, também estrelados; e seu aroma inconfundível tanto quanto o dos limões......
A luminosidade e o aroma dos limões, guiaram a vida de Salma por gerações e penetraram na vida de sua vizinha estrangeira, praticamente inimiga, transformando-lhe a essência.
A luminosidade e o aroma das carambolas deram o bem-vinda a Sandra quando, ignorando a dádiva, ela escolheu aquele endereço num momento de reconstrução de vida.
Abra sempre a janela, Sandra, você tem a vantagem do canto dos pássaros que podem sorver carambolas maduras, mas não rondariam um limoeiro cujos frutos tem uma couraça protetora que somente por mãos amorosas, e palestinas, nos enternecem a alma.