quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O CRIME

(conto cinematográfico para um amigo dos olhos de avelã)

Magro, roupa surrada, olhos grandes demais, o rapaz entra no prédio com passo seguro. Já está cansado de subir aqueles três andares pela enésima vez, cansado de ter que enfrentar aquela velha nojenta. Ao olhá-la, sempre tem a sensação de que a profissão dela não era agiota, mas vampiro. Quando ela abre a boca ele sente naquele hálito o cheiro de seu próprio sangue, e a cada vez sente que aquele vampirismo aguça-se cada vez mais, complacente, olhando para ele com aquele olhar ambíguo, entre o cínico e o guloso, quase a dizer-lhe: você não sobrevive sem mim. Nunca o que ele lhe entrega é bom o suficiente para que o empréstimo do penhor chegue perto do que ele precisa. Mas hoje será diferente. Ao receber seus últimos haveres, ela abrirá uma caixa onde guarda os butins, tirará do moedeiro e escolherá uns poucos trocados para colocar na palma de mão dele. Hoje é diferente sim: é ele quem a olha com olhar homicida e assim que o butim e dinheiro estão a vista, ele prepara-se a fazer o que mil vezes sonhou fazer. Pronto: agora posso estrangulá-la. “Não, não!” grita uma voz surgida do nada. “Tire a faca do bolso, mate-a com a faca, longos cortes profundos, como se fosse com um sabre: quero sangue, muito sangue. E se aparecer a idiota da irmã, mate ela também!” Apareceu. As mãos do rapaz trabalham sem parar: gargantas, braços, corações, ventres. “Tem que jorrar, quanto mais sangue melhor! E rápido, para que o sangue se junte e desça escada abaixo! Quero um rio, com ondas e com toda a sujeira do lixo de Leningrado, e se calhar, o de Moscow”. Atônito, o rapaz não está preparado para tanto. Enquanto enfia no bolso o que pode em jóias e dinheiro, começa a patinar em cima das poças de sangue e, já fora do apartamento das velhas, escorrega até cair no chão; na escada tenta segurar-se nas grades dos corrimão, mas suas mãos já não têm aspereza suficiente para se agarrar em nada, tão encharcadas estão daquele vermelho pegajoso. Ao escorregar, escada abaixo, degrau por degrau, sua nuca bate em cada um, seus olhos mal vêm o revés do lance de escada do andar de cima. De repente, a voz de Sônja. Sim é a voz dela: em pé no corrimão do quarto andar, aos prantos: “Espere, espere, vou te ajudar!” E salta no vazio, certa de chegar ao térreo antes dele e ampará-lo. Suas roupas enchem-se de ar como um guarda-sol para amenizar a aterrissagem. Mas eis o comissário entrando no átrio aos saltos, e já ao pé da escadaria, agarra o pulso de Sonja que fica suspensa no ar, pisa fundo com o pé esquerdo no peito do rapaz, imobilizando-o, e com a mão esquerda aponta a arma à sua cabeça. A voz volta a gritar: “Congela!!” Um velho, de fronte muito calva, mas de bigode, barba e cabelo compridos, sai da escuridão e corre para o homem sentado no alto de uma máquina. “Não, não é assim, nunca foi assim, não quero que seja assim. Você não pode fazer isto!” O homem desce, acaricia seu longo queixo sem disfarçar sua satisfação interior e replica: “Cale a boca, Fiodor. Eu sei o que estou fazendo. Quando isto sair, o resto do mundo vai voltar a lembrar teu nome, vai reler teu livro e quem não leu, vai sair comprando adoidado!” Vira-se de costa e grita: “Cadê o designer da produção?” “Estou aqui!” “Ótimo. Então anota isto: o filme acaba aqui. Quero a lista do cast e dos créditos colocada no início do filme, logo após o título. A cena que mandei agora congelar é a última cena. Amplie para que o vermelho do sangue invada a tela inteira, deixando somente a silhueta preta do comissário de costas, no canto inferior esquerdo. Apague a figura de Sonja e o revólver do comissário. Quero que ele pareça um grande T maiúsculo, todo preto, ligeiramente inclinado para esquerda. Será a última e única imagem: o resto de minha assinatura, eu faço depois.”

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