sexta-feira, 20 de novembro de 2009

BOAS FESTAS COM TODO O CARINHO

Uma torrente, uma velha casa de pedra.
Num vale perdido da Toscana.
Lugarejo anônimo que, em época de caos,
Protegeu minha infância.
Compartilhar emoções é uma das
Melhores formas de ser feliz.
Seja

domingo, 15 de novembro de 2009

......E HORIZONTES

O horizonte sumiu.
A bruma sobe, mistura-se com as nuvens, desce até a mim; quente na japona e cachecol, cabelos empastado de umidade salgada, iodada, ondulada. Mas meus pés nus brincam com os grânulos que chiam entre os dedos; seu encolher-se e alongar-se empurram os calcanhares para baixo, mais baixo, afundando mais, enquanto eu olho a poucos passos, a borda mas escura, molhada, achatada pelo rolar encaracolado da espuma que vem devagar, volta encrespada para um pouco mais longe, engrossa de novo, cresce de novo e cai suavementer na minha direção.
Este é o caminho extremo da ressaca que vem para descansar.
Faz frio.
Mas hoje ele não está furioso, não me agride com os estrondos dos dias anteriores. Desde que cheguei anteontem, fiquei esperando por este mediterrâneo de inverno: escuro, cinzento, mas tranquilo. Eu precisava de seu desenrolar silencioso na praia, queria ver a espuma fraca, apenas esboçada, apagar-se na respiração da areia e as pequenas bolhas que surgem a revelar o raso abismo das conchas. Fugi do outro lado da ilha cheia de falésias, onde eu teria o constante frangir das ondas contra os rochedos; onde os marouços me levariam de volta àquele impácto dolorido. Aqui, sem porto nem barcos, some o choro das gaivotas e com ele o lamento de minha dor.
Já consegui exorcizar minha única boneca. E é aqui, agora que tenho que arrancar, uma por uma, as camadas lívidas de minha pele, seus roxos, sua flacidez.
Para tentar ficar, finalmente e de novo, nua.
E, quem sabe um dia tropeçar em alguém tão especial com que eu possa, também, ficar em silêncio.

DIÁLOGOS E SILÊNCIOS
(EPÍLOGO)

---Posso entrar?
---Como se eu pudesse dizer não: você sempre entrou sem perguntar. Estou aqui nesse atelier há quase dez anos e sabia que a qualquer momento você voltaria a aparecer. Tropeço em você desde que nasci.
---Não reclame, se não fosse por mim você nem existiria.
---E eu existo? Com a desculpa de ser obrigado a escrever minha estória em primeira pessoa, você nem nome me deu.
---Mas eu só queria saber se, afinal, você gostou. Eu não a tratei bem? No lhe dei nenhuma conotação de vítima passiva: fiz com que você achasse força, estrutura e espinha dorsal para decidir seu caminho de cabeça erguida.
---Bem então, e agora?
---Agora vim verificar com meus próprios olhos que você tenha recuperado a quase totalidade de seus braços e mãos, que você finalmente conseguiu pintar com sucesso e queria saber como você se sente às vésperas do vernissage.
---Olha, estou muuuito feliz. Consegui um marchand que realmente gosta do meu trabalho.
---Eu percebi: ontem eu o ouvi dizer que suas pinturas, apesar de abstratas, tem cor e cheiro de mar.
---Mas isto ele deve a você, por que foi você, no terceiro capítulo, que me colocou em frente ao mar com meus silêncios.
---É, e por falar nos teus silêncios, não esqueça que ele aprendeu a ouvi-los. E se você quer mesmo saber, está se separando da mulher e está muito de olho em você, pode crer.
---Você vai esticar minha estória até o pieguismo de um romance?
---Piegas....acha que a estória que escrevi para você foi piegas?
---Não, não, desculpe....Quis dizer que...não sei o que quis dizer...
---Então eu tenho a dizer que não gosto de matar minhas personagens, por isso desde o começo usei metáforas e fugi das autópsias, necrópsias, dissecações exigidas, entrando na tua carne pelo acidente de que fiz você escapar vivva. Para mim bastou a morte de sua boneca para dar pathos ao fim do segundo capítulo.
---Miiiinha boneca?...
---Desculpe, na verdade era a minha. Mas, que diabos, se a gente não puder lançar mão das próprias experiências, então para que serve um escritor....
---Então, agora você vai escrever do meu sucesso na exposição, e que mais....
---Nada, não vou mais escrever nada. Até esse diálogo fica entre nós. Ponto e parágrafo, para mim a estória terminou a beira mar, lembra?
---E eu vou continuar descalça naquela praia de inverno até quando?
---Se alguém se propuser a continuar tua estória, que o faça, mas não deixe que ele lhe mude personalidade, força de vontade, nem seu brilho. Isso tudo é obra minha.


Esse conto que começou com o título "De armários e.....portas" é produto da oficina estimulante e criativa que Márcia Tiburi deu na Casa das Rosas nos meses de Outubro/Novembro. Não somente a ela devo inúmeras horas de aprendizado e cultura, mas também à minha querida amiga Sandra Schamas, que - generosamente - adotou a personagem criada por mim e deu-lhe em grande estilo, um final glorioso. Sandra, obrigada!

domingo, 8 de novembro de 2009

".......DE ARMÁRIOS E PORTAS"



UM CONTO

--"Augusto, por favor. Você já me ligou três vezes hoje. O carregador acaba de levar as malas e meu avião sai daqui a três horas". --
Ele continua, insiste. O espelho da porta aberta do armário me reflete sentada nesta cama anônima de hotel: telefone na mão, meio encolhida entre a beira do colchão e os travesseiros que me acolheram nessa última noite. O único cabide ainda pendurado naquele mar de madeira escura, parece querer atirar-me cachecol e capa de chuva.
--"Sei, entendo, eu também gosto muito de você. Um dia seremos bons amigos, você vai ver." --
Faculdade de Belas Artes juntos, dois anos de estágio nesta cidade no meio dos Alpes. Parece uma vida inteira. Mas quando aconteceu o acidente, já estávamos a caminho do fim. Eu sei, ele também sabe, mas prefere não admitir. Se defende. Insiste. Me ama.
--"Augusto: o museu daqui tem muuuitas obras para você restaurar e isto é um grande começo para a sua carreira. Mas meu negocio é pintar. E assim que puder mexer-me direito, também quer fazer escultura. Quero granitos rosa, quero mármores. E quero mar. Mar, ouviu?"--
Tenho vontade de atirar o telefone à parede. Ouço até seu estrondo; mas pouso o microfone no gancho com delicadeza para que ele não perceba a raiva de minha exaustão. Visto a capa e cachecol com alguma dificuldade; ao fechar o armário, o telefone toca de novo. Sei que é ele. Volta minha vontade de berrar, de repetir que ele não me deve nada, que a culpa não foi dele. Que eu não quero, não queeero ser seu remorso pelo resto de minha vida. Quero só mar, mesmo se com a chuva e o frio daqui. Só o mar por algum tempo; o mar, seu cheiro, seu movimento, sua evaporação. Mar! Só mar! è só isso que eu quero agora.
Depois é depois.
Ao entrar no saguão do aeroporto, um deslizar suave e a porta fecha-se atrás de mim. Com ela, todas as outras.
Check-in rápido, sala de embarque superlotada. Nos janelões sobre um céu de chumbo, a neve, vagarosa, começa a flanar. Deve ser por isso que anunciaram o atraso de uma hora para o meu vôo. O super aquecimento me obriga ao lento e sofrido despir de casaco, gorro e cachecol; até a curta suéter sobre a camisa de seda. Ando em círculo pelas paredes beirando as vitrines: jornaleiro, bombonniére, boutiques, últimos redutos para compras e souvenires. Se pelo menos achasse uma poltrona livre para descarregar minhas coisas. O que tirei do corpo agora é muito pesado para eu carregar. Parece toneladas de latas, vidros e ferros a apertar meus braços, a lacerar minha carne, a contorcer meus ossos. O zunido de aviões lá fora e os alto-falantes aqui dentro me jogam naquela escuridão em que fui atirada por alguma droga que abafou minha dor, mas não a consciência do britar dos pinos, da penosa introdução dos enxertos, do retesar das suturas. Meus braços não alcançavam minha mãe; minha boca não urrava de medo. Não lembro se eu respirava, se meu corpo ainda estava comigo. Estava correndo atrás de minhas entranhas que eu recolhia com uma mão e recolocava no ventre rasgado que eu segurava com a outra.
Meu corpo todo volta a doer. De novo faz calor. Muito calor.
Ouço chamarem meu vôo e já estou em direção à fila. Na porta de embarque, a boneca no colo de uma menina ao meu lado, me olha. No rostinho de plástico, o sorriso é pintado como para não sair do lugar. Os olhos também: sem nuances de luz. Fixos.
Como ficaram quando lhes enfiei um lápis para ver o que tinham que os fazia mexer, abri e fechar. Eu não devia tê-la abandonado, quase morta, braços esmagados e semi-nua, entre os escombros da casa onde nunca mais voltei a morar.
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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

SONO E SONHOS, um conto de crianças....

-”Manheee, não estou com sono...”
-”Vamos Clarinha, já e tarde e amanhã é dia de escola, esqueceu?”
-”Mas eu não estou com sono!”
-”Olhe seu irmão: Tonico já dormiu. Está escutando? Até ronca!...”
-”Ah, mãe, então conta carneirinhos comigo”
-”Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos.....”
A mãe contando e olhando o relojo: louça para lavar, uniformes para passar, lancheiras para organizar. E a mesa para o café da manhã. ....Quinze, dezesseis, dezessete carneirinhos,....e já foi a Clarinha, pestanas se encontrando, lábios se afastando num respiro tranquilo.

Lá está ela. Correndo no campo verde, gramado cheio de margaridinhas; a cerca pintada de branco serve de obstáculo para carneirinho pular, um atrás do outro: branquinhos, orelhinhas rosadas, ovelha-mãe, gorda e pesada tentando alcançá-los. Mas olha aí um pretinho, o menor, o mais lerdo, pernas ainda trêmulas, como se tivesse acabado de nascer. Clarinha corre, pega-o com os dois braços e aperta o bichinho ao peito tentando carrega-lo. Mas lá vem Tonico correndo:
-“Deixa Clarinha, ele é muito pesado para você, deixa que eu levo.”
Levam até a cozinha da fazenda, dão leite, tentam lavá-lo com um pano úmido, e o bicho miando que nem gatinho.
-“Será que mamãe vai me deixar levá-lo para casa?”
-“Vamos perguntar para ela, Clarinha. Não vai dar trabalho, nós mesmos podemos cuidar dele...”
-“Eu. Eu quero cuidar dele, o carneirinho é meu, eu achei!”


Barulho de chinelos, beijo carinhoso de mãe na testa de cada um.
-“Vamos crianças. Já está na hora. Banho rápido, aí estão os uniformes e podem descer que o café da manhã está na mesa”.
-“Mas manheee, eu ainda tenho sono....”
-“Pois é, mas a escola não espera...Vamos, rápido os dois!”
Em pouco menos de quinze minutos estão os dois famintos. Pão com manteiga, polenguinhos, mamão e suco de laranja enquanto esperam o leite. Lá vêm as jarras da mamãe: chocolate quente numa, leite na outra.
E é o Tonico a falar.
-“Mãe, eu sonhei que estava roubando leite da sua jarra para amamentar um carneirinho preto que a Clarinha achou no pasto...”
Pão preso na mordida dos dentes, Clarinha arregala os olhos.