domingo, 20 de dezembro de 2009

MÁRCIA PERGUNTOU........

Muitos pensam que eu escrevo porquê não tenho o que fazer. Outros já se desculparam por isto. A verdade é que escrevo desde criança.
Tive a sorte -durante alguns anos escolares- de ter sido obrigada a aprender resumindo as lições marcadas nos meus livros. História? resumir de pagina tal a tal. Literatura? Texto de fulano: resumir de página tal a tal. Portanto aprendi a escrever resumindo, gosto até hoje e escrevo "curto". Mas foi só há pouco tempo que percebi que precisava escrever para que os outros me interpretassem corretamente. Em discussão eu não convencia. Colocando tudo preto no branco, até consigo ganhar a parada.
Hoje, ao publicar algo no meu blog, basta sentir-me satisfeita em clareza e sinceridade, o que considero essencial para que o leitor entenda o espirito com que o concebi e tire disto algum prazer. Não tenho projetos mirabolantes, não quero escrever romances, não quero ser best-seller. Um livro de contos? Talvez.
Eles nascem de imagens, que me vêm de experiências pessoais, realizadas ou não, ganhas, ou não. Em cada época marcante de vida, devo ter resumido as imagens mais vibrantes arquivando-as no subconsciente. Frequentemente confusas, são elas, aquelas cores, aqueles sabores, aqueles arrepios, que se transformam em fantasias, que crescem, incham e recheiam as lembranças com os desejos não realizados e, finalmente criam meus textos. Mas preciso que alguém me dê um tema, um título. E aí elas surgem, de repente, às vezes imperativas; outras, do nada absoluto, ou de algo tão longinquo que já perdeu-se na memória, mas estão aí, presentes, aos gritos.
Recentemente tomei um café com um escritor. Generoso que é, deu-me algumas páginas para ler, lá mesmo na mesa do bar. Estilo um tanto angustiante mas incisivo e seguro. Corria os olhos naquelas páginas e, de improviso, algo intrometeu-se. Não foi nenhuma menina vendendo amendoim na marginal, mas a tal epifania apareceu em forma de uma frase.

“este momento não vai ficar, pois vida não é obra de arte”.

Não sei onde a li, quem a escreveu, quem a pronunciou, e sei com certeza que não é minha. Só durante a longa caminhada que me levava para casa, percebi que, no texto do escritor, não havia um único artigo. Nessa frase também não.
Ela poderá ser tema, ou título, do meu próximo conto.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

BOAS FESTAS COM TODO O CARINHO

Uma torrente, uma velha casa de pedra.
Num vale perdido da Toscana.
Lugarejo anônimo que, em época de caos,
Protegeu minha infância.
Compartilhar emoções é uma das
Melhores formas de ser feliz.
Seja

domingo, 15 de novembro de 2009

......E HORIZONTES

O horizonte sumiu.
A bruma sobe, mistura-se com as nuvens, desce até a mim; quente na japona e cachecol, cabelos empastado de umidade salgada, iodada, ondulada. Mas meus pés nus brincam com os grânulos que chiam entre os dedos; seu encolher-se e alongar-se empurram os calcanhares para baixo, mais baixo, afundando mais, enquanto eu olho a poucos passos, a borda mas escura, molhada, achatada pelo rolar encaracolado da espuma que vem devagar, volta encrespada para um pouco mais longe, engrossa de novo, cresce de novo e cai suavementer na minha direção.
Este é o caminho extremo da ressaca que vem para descansar.
Faz frio.
Mas hoje ele não está furioso, não me agride com os estrondos dos dias anteriores. Desde que cheguei anteontem, fiquei esperando por este mediterrâneo de inverno: escuro, cinzento, mas tranquilo. Eu precisava de seu desenrolar silencioso na praia, queria ver a espuma fraca, apenas esboçada, apagar-se na respiração da areia e as pequenas bolhas que surgem a revelar o raso abismo das conchas. Fugi do outro lado da ilha cheia de falésias, onde eu teria o constante frangir das ondas contra os rochedos; onde os marouços me levariam de volta àquele impácto dolorido. Aqui, sem porto nem barcos, some o choro das gaivotas e com ele o lamento de minha dor.
Já consegui exorcizar minha única boneca. E é aqui, agora que tenho que arrancar, uma por uma, as camadas lívidas de minha pele, seus roxos, sua flacidez.
Para tentar ficar, finalmente e de novo, nua.
E, quem sabe um dia tropeçar em alguém tão especial com que eu possa, também, ficar em silêncio.

DIÁLOGOS E SILÊNCIOS
(EPÍLOGO)

---Posso entrar?
---Como se eu pudesse dizer não: você sempre entrou sem perguntar. Estou aqui nesse atelier há quase dez anos e sabia que a qualquer momento você voltaria a aparecer. Tropeço em você desde que nasci.
---Não reclame, se não fosse por mim você nem existiria.
---E eu existo? Com a desculpa de ser obrigado a escrever minha estória em primeira pessoa, você nem nome me deu.
---Mas eu só queria saber se, afinal, você gostou. Eu não a tratei bem? No lhe dei nenhuma conotação de vítima passiva: fiz com que você achasse força, estrutura e espinha dorsal para decidir seu caminho de cabeça erguida.
---Bem então, e agora?
---Agora vim verificar com meus próprios olhos que você tenha recuperado a quase totalidade de seus braços e mãos, que você finalmente conseguiu pintar com sucesso e queria saber como você se sente às vésperas do vernissage.
---Olha, estou muuuito feliz. Consegui um marchand que realmente gosta do meu trabalho.
---Eu percebi: ontem eu o ouvi dizer que suas pinturas, apesar de abstratas, tem cor e cheiro de mar.
---Mas isto ele deve a você, por que foi você, no terceiro capítulo, que me colocou em frente ao mar com meus silêncios.
---É, e por falar nos teus silêncios, não esqueça que ele aprendeu a ouvi-los. E se você quer mesmo saber, está se separando da mulher e está muito de olho em você, pode crer.
---Você vai esticar minha estória até o pieguismo de um romance?
---Piegas....acha que a estória que escrevi para você foi piegas?
---Não, não, desculpe....Quis dizer que...não sei o que quis dizer...
---Então eu tenho a dizer que não gosto de matar minhas personagens, por isso desde o começo usei metáforas e fugi das autópsias, necrópsias, dissecações exigidas, entrando na tua carne pelo acidente de que fiz você escapar vivva. Para mim bastou a morte de sua boneca para dar pathos ao fim do segundo capítulo.
---Miiiinha boneca?...
---Desculpe, na verdade era a minha. Mas, que diabos, se a gente não puder lançar mão das próprias experiências, então para que serve um escritor....
---Então, agora você vai escrever do meu sucesso na exposição, e que mais....
---Nada, não vou mais escrever nada. Até esse diálogo fica entre nós. Ponto e parágrafo, para mim a estória terminou a beira mar, lembra?
---E eu vou continuar descalça naquela praia de inverno até quando?
---Se alguém se propuser a continuar tua estória, que o faça, mas não deixe que ele lhe mude personalidade, força de vontade, nem seu brilho. Isso tudo é obra minha.


Esse conto que começou com o título "De armários e.....portas" é produto da oficina estimulante e criativa que Márcia Tiburi deu na Casa das Rosas nos meses de Outubro/Novembro. Não somente a ela devo inúmeras horas de aprendizado e cultura, mas também à minha querida amiga Sandra Schamas, que - generosamente - adotou a personagem criada por mim e deu-lhe em grande estilo, um final glorioso. Sandra, obrigada!

domingo, 8 de novembro de 2009

".......DE ARMÁRIOS E PORTAS"



UM CONTO

--"Augusto, por favor. Você já me ligou três vezes hoje. O carregador acaba de levar as malas e meu avião sai daqui a três horas". --
Ele continua, insiste. O espelho da porta aberta do armário me reflete sentada nesta cama anônima de hotel: telefone na mão, meio encolhida entre a beira do colchão e os travesseiros que me acolheram nessa última noite. O único cabide ainda pendurado naquele mar de madeira escura, parece querer atirar-me cachecol e capa de chuva.
--"Sei, entendo, eu também gosto muito de você. Um dia seremos bons amigos, você vai ver." --
Faculdade de Belas Artes juntos, dois anos de estágio nesta cidade no meio dos Alpes. Parece uma vida inteira. Mas quando aconteceu o acidente, já estávamos a caminho do fim. Eu sei, ele também sabe, mas prefere não admitir. Se defende. Insiste. Me ama.
--"Augusto: o museu daqui tem muuuitas obras para você restaurar e isto é um grande começo para a sua carreira. Mas meu negocio é pintar. E assim que puder mexer-me direito, também quer fazer escultura. Quero granitos rosa, quero mármores. E quero mar. Mar, ouviu?"--
Tenho vontade de atirar o telefone à parede. Ouço até seu estrondo; mas pouso o microfone no gancho com delicadeza para que ele não perceba a raiva de minha exaustão. Visto a capa e cachecol com alguma dificuldade; ao fechar o armário, o telefone toca de novo. Sei que é ele. Volta minha vontade de berrar, de repetir que ele não me deve nada, que a culpa não foi dele. Que eu não quero, não queeero ser seu remorso pelo resto de minha vida. Quero só mar, mesmo se com a chuva e o frio daqui. Só o mar por algum tempo; o mar, seu cheiro, seu movimento, sua evaporação. Mar! Só mar! è só isso que eu quero agora.
Depois é depois.
Ao entrar no saguão do aeroporto, um deslizar suave e a porta fecha-se atrás de mim. Com ela, todas as outras.
Check-in rápido, sala de embarque superlotada. Nos janelões sobre um céu de chumbo, a neve, vagarosa, começa a flanar. Deve ser por isso que anunciaram o atraso de uma hora para o meu vôo. O super aquecimento me obriga ao lento e sofrido despir de casaco, gorro e cachecol; até a curta suéter sobre a camisa de seda. Ando em círculo pelas paredes beirando as vitrines: jornaleiro, bombonniére, boutiques, últimos redutos para compras e souvenires. Se pelo menos achasse uma poltrona livre para descarregar minhas coisas. O que tirei do corpo agora é muito pesado para eu carregar. Parece toneladas de latas, vidros e ferros a apertar meus braços, a lacerar minha carne, a contorcer meus ossos. O zunido de aviões lá fora e os alto-falantes aqui dentro me jogam naquela escuridão em que fui atirada por alguma droga que abafou minha dor, mas não a consciência do britar dos pinos, da penosa introdução dos enxertos, do retesar das suturas. Meus braços não alcançavam minha mãe; minha boca não urrava de medo. Não lembro se eu respirava, se meu corpo ainda estava comigo. Estava correndo atrás de minhas entranhas que eu recolhia com uma mão e recolocava no ventre rasgado que eu segurava com a outra.
Meu corpo todo volta a doer. De novo faz calor. Muito calor.
Ouço chamarem meu vôo e já estou em direção à fila. Na porta de embarque, a boneca no colo de uma menina ao meu lado, me olha. No rostinho de plástico, o sorriso é pintado como para não sair do lugar. Os olhos também: sem nuances de luz. Fixos.
Como ficaram quando lhes enfiei um lápis para ver o que tinham que os fazia mexer, abri e fechar. Eu não devia tê-la abandonado, quase morta, braços esmagados e semi-nua, entre os escombros da casa onde nunca mais voltei a morar.
.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

SONO E SONHOS, um conto de crianças....

-”Manheee, não estou com sono...”
-”Vamos Clarinha, já e tarde e amanhã é dia de escola, esqueceu?”
-”Mas eu não estou com sono!”
-”Olhe seu irmão: Tonico já dormiu. Está escutando? Até ronca!...”
-”Ah, mãe, então conta carneirinhos comigo”
-”Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos.....”
A mãe contando e olhando o relojo: louça para lavar, uniformes para passar, lancheiras para organizar. E a mesa para o café da manhã. ....Quinze, dezesseis, dezessete carneirinhos,....e já foi a Clarinha, pestanas se encontrando, lábios se afastando num respiro tranquilo.

Lá está ela. Correndo no campo verde, gramado cheio de margaridinhas; a cerca pintada de branco serve de obstáculo para carneirinho pular, um atrás do outro: branquinhos, orelhinhas rosadas, ovelha-mãe, gorda e pesada tentando alcançá-los. Mas olha aí um pretinho, o menor, o mais lerdo, pernas ainda trêmulas, como se tivesse acabado de nascer. Clarinha corre, pega-o com os dois braços e aperta o bichinho ao peito tentando carrega-lo. Mas lá vem Tonico correndo:
-“Deixa Clarinha, ele é muito pesado para você, deixa que eu levo.”
Levam até a cozinha da fazenda, dão leite, tentam lavá-lo com um pano úmido, e o bicho miando que nem gatinho.
-“Será que mamãe vai me deixar levá-lo para casa?”
-“Vamos perguntar para ela, Clarinha. Não vai dar trabalho, nós mesmos podemos cuidar dele...”
-“Eu. Eu quero cuidar dele, o carneirinho é meu, eu achei!”


Barulho de chinelos, beijo carinhoso de mãe na testa de cada um.
-“Vamos crianças. Já está na hora. Banho rápido, aí estão os uniformes e podem descer que o café da manhã está na mesa”.
-“Mas manheee, eu ainda tenho sono....”
-“Pois é, mas a escola não espera...Vamos, rápido os dois!”
Em pouco menos de quinze minutos estão os dois famintos. Pão com manteiga, polenguinhos, mamão e suco de laranja enquanto esperam o leite. Lá vêm as jarras da mamãe: chocolate quente numa, leite na outra.
E é o Tonico a falar.
-“Mãe, eu sonhei que estava roubando leite da sua jarra para amamentar um carneirinho preto que a Clarinha achou no pasto...”
Pão preso na mordida dos dentes, Clarinha arregala os olhos.

sábado, 24 de outubro de 2009

A LOJA DE BRINQUEDOS - Conto

Os cavalinhos de rodinhas estavam alvoroçados.
-Como alguém poderá escolher se eles se diferenciam só pela cor.....
-E aqueles pinos de boliche que tem cores diferentes sim, mas também tamanhos diferentes, e estão tão mal expostos que se confundem com peças de xadrez.
Mas o que mais enraivecia os cavalinhos era aquela boneca.
-Porque ela é tão grande, tão maior do qualquer outro brinquedo: não parece ser nem brinquedo nem boneca.....
-E olha aquela mulher que vê tudo do lado de fora e não se decide a entrar.
-Porque não entra e escolhe de uma vez...

A boneca é grande demais, cabelos lisos demais, sedosos demais e compridos demais; a boca vermelha demais. E parece estar quase sem roupa. A velha senhora do lado de lá da vitrine, está intrigada e pensativa. Intrigada pela estranheza da posição da boneca; pensativa por sua memoria estar sendo posta a prova. A boneca tem um sorriso parado, quase feliz; como se estivesse pensando numa cena romântica, num salão todo vermelho, onde ela, esguia e leve, dança no futuro, abraçada a um cavalheiro desconhecido, esguio e leve.
Sim, o sorriso parece feliz mas é fixo, pintado e desenhado como para não sair do lugar. E o olhar também é fixo, sem nuances de luz.

............Era como se a boneca fosse tão grande por ter crescido junto às lembranças da velha senhora. Olhos fixos, parados, como os da Titti, depois que a menina lhe enfiara um lápis, para ver o que tinham atrás que os fazia mexer, abrir e fechar.
E fechados ficaram, quando a abandonou, como morta, bracinhos esmagados e semi-nua, entre os escombros da casa onde nunca mais voltaria a morar.


terça-feira, 13 de outubro de 2009

EDUARDO E MÔNICA (O homem do conserto não vem?)

CONTO

"-Eduardo, não acredito que tudo voltou como há seis anos atrás. Ahi, Edu, Edu, queria tanto que a gente não se largasse mais..."
Beijos e arranhões, umidades, lençois atrapalhando e travesseiros no chão.
"-Mônica, minha Momô...quem falou em largar..."
Risadas, gritinhos, palavras gemidas acelerando os corpos. Nos intervalos pacatos, respirações profundas, restos de drinques por toda parte. Lembranças da joventude e pequenos relatos de vidas interrompidas.
"-A gente pensava que o Renato fez aquela música só pra nós"

...um dia se encontraram sem querer e conversaram muito pra tentar se conhecer...quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração...

"-E assim você casou com a Marcia; lembro dela, sempre deu em cima de você..Mas você nunca conheceu o Fonseca, né?

...não tó legal, não aguento mais birita...e ela riu e quis saber um pouco mais sobre o boyzinho que tentava impressionar...

"-Casei com ele porque voce se mandou pros Estados Unidos estudar matemática quântica...Que coisa....."
"-E ele é bom pra você?"
"-É, é sim; é fácil lidar com ele. Gosta de quase tudo o que eu gosto e, o que ele não gosta, posso fazer sozinha quando ele viaja. Agora, vê? Foi pra Proto Alegre semana passada e só volta depois de amanhã.."
"-Que bom a gente pode ser ver muuuito...Vem cá Momô, mais um pouquinho....Mas cadê o cara que o seu porteiro chamou pra resolver o problema da porta? Nunca vi apartamento como esse não ter entrada de serviço..."
"-Paciência, Edu, tudo vai dar certo..."
Mais um beijo e, com ele todo o resto, com fúria...
Boca ainda grudada nos lábios de Eduardo, Mônica retoma fôlego.
"-Olha nem sei como aconteceu: quando você chegou eu tranquei a porta e a chave não saiu mais. De tanto forçar acabou quebrando lá dentro..."

.....Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar ficou deitado e viu que horas eram enquanto Mônica tomava um conhaque....

"-Já são cinco e meia...Ciiiinco e meeia! O tal de Manoel não falou que o cara viria até as quatro?"
Descalça, acariciando os seios ainda quentes de outro corpo, Mônica vai calmamente até a cozinha. O telefone interno tem seu cheiro de fêmea.
"-Seu Manoel, o homem do conserto não vem?"
-"Já está aqui, Dona Mônica. Vou subir com ele, também para ajudar seu marido com as malas: ele acaba de chegar".


domingo, 11 de outubro de 2009

CARTA DE UM SUICIDA


Eu sei por que. E não tenho a quem dizer.
Ao mandar-lhe esta carta pelo correio, estou tendo a coragem de assumir publicamente o compromisso do meu suicídio, para não ter, na última hora, a covardia de desistir.
Meu navio sai amanhã cedo: esperarei o barulho do porto e o garrir das gaivotas desaparecerem. Quando só o ruido das turbinas orquestrar meus pensamentos, é que acabarei com esta minha vida tão diária que aos poucos me encolheu, me apagou.
E acabará assim: eu só, com a minha Beretta.
Não haverá velório, nem enterro, nem flores, nem o silêncio dos abraços de praxe. Estes rituais fariam muita gente sentir de ter cumprido deveres, apagando remorsos.
Ao retomar posse do apartamento, o senhor pode dispor de tudo, como quiser.
O quadro campestre na parede da sala, acima do divã, será suficiente para cobrir a multa pela quebra contratual do aluguel que encerrarei antes do vencimento. É um Boucher autêntico apesar de parecer esquálido por ter-me eu alimentado de suas cores durante meus anos em preto e branco.
Desejo-lhe que, à beira mar, o senhor continue vendo sempre, no horizonte claro e bem definido, os prenúncios de bons augúrios.
Desculpe tê-lo usado para dizer adeus.
E obrigado.

N.A. agradeço a Cortázar de quem roubei o suicida por ele esboçado em "A linha da mão"

sábado, 10 de outubro de 2009

CRONICA NORDESTINA, no mesmo dia, mesma pousada...

Pois é .
Não devo mesmo ser nordestina de raiz .
Não consegui ter a mesma sabedoria da Biú.
O filhote morreu nas minhas mãos hoje de tarde , ninguém sabe porquê .
Talvez estivesse já muito fraco quando o Edson achou.
Mas eu fiquei muito triste e não fui capaz de alegrar meu coração.
A Biú , como a maioria das pessoas daqui, sabem viver os momentos .
Como é dificil conseguir absorver essa sabedoria .
Mas, mãe, fiquei muito feliz e lisonjeada de ter sido publicada ......
depois, abri o e-mail e meus clientes ingleses anularam a vinda.
Vou deitar , rapidamente , com um livro.
Quem sabe o que o dia de amanhã trará .... apesar de eu " odiar " essa fala da Scarlet OHara.
Beijos pra você. Andrea .

Minha querida...Há muita diferença na intenção entre "quem sabe o que o dia de amanhã trará" e a frase original da Scarlet O'Hara "Tomorrow is another day". Na primeira há dúvida, na segunda, confiança. Você é minha filha: escolha a segunda.

CRONICA NORDESTINA, relato de uma emoção


Pois é . Ainda meio dormindo, como me é peculiar pela manhã, desço do meu quarto , pego o Ralph e vou ver onde está o Edson . Está na horta , aguando ainda no sol fraco , a couve , as berinjelas , a beterraba , a hortelã de folha miúda , o coentro e o manjericão. Logo me diz que encontrou um pelanco de martim pescador à sombra da casa de caseiro, pelo chão. Sorrio e acordo de vez .
Vamos lá ver o bebê que o Edson havia guardado na lavanderia .... por conta da presença felina do Baghera .
Eu nunca cuidei de filhote de passarinho. Ajeitamos o bicho numa caixa e lá vou eu pra internet . O bico já tem uns 5 cm e me preocupo em achar uma vasilha que corresponda a seu bico, de maneira que ele possa beber água. Como nada é por acaso na vida , me lembro da presença em meu freezer de uns peixinhos e umas ovas de peixe que meu afilhado Mickael e seu amigo Caio haviam tirado da água num dia de pescaria em julho, enquanto estavam de férias por aqui. Assim , decido batizar o filhote de Miko . Que é como madrinha chama afilhado....
Beijos a todos e bom dia ! Andrea

PS. Ao receber, faz poucos minutos, esta perola de espontaneidade, ganhei meu dia! E, agradecida, publico para que todos sorriam e arregacem as mangas.....
(Marcelino Freire teria aprovado)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

DIA DOS AMIGOS ON LINE.....quem inventa....

.........não sei, mas sei que recebo mensagens amistosas, carinhosas e, muito frequentemente reveladoras...
A todos os amigos e amigas, que sejam, ou não, on line, meu abraço sincero, ON LIFE

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

CARTA A UMA AMIGA

Querida Karen,
hoje me dei conta de que faz pouco mais de um ano que recebi de presente, de você, o meu blog! E que desde então, já estão lá quase sessenta títulos. Quanto devo a você?
Muuuuuuito, quase tudo. E porquê não tudo?
Por que me aventurei em outras oficinas, obedeci outros raciocínios, quis apanhar com outras críticas, e outros críticos. É como se, inconscientemente, eu estivesse grudando em mi mesma, com cera virgem e à moda de Ícaro, asas de pássaros inauditos, diferentes, vindos de outros continentes.
Se soubesse cantar, eu diria que seria uma vocalista que larga a banda, de quem muito aprendeu , para lançar-se em carreira solo. Mas não é bem assim: ainda tenho um longo caminho a percorrer, antes de me sentir segura para conversar sozinha e sozinha aprovar minha assinatura.
Mas sei que você acompanha meus textos e estou certa de que, mesmo em momentos de crítica atroz, você saberá ouvir minha voz, como agora.
Portanto, obrigada.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

JANTAR COM MIMI

Miniconto

Com deferência, o segurança abre a porta; a vendedora, um sorriso. Mulher classuda aquela: grifes da cabeça aos pés, porte de rainha.
Um “Caleche”, por favor...não, não, extrato...Obrigada! Ah, sim, posso ver o fular da vitrine?” Seda preciosíssima, desenho exclusivo. Mil e quinhentos no cartão. A sacolinha é um luxo.
A caminho de casa, entre mais vitrines convidativas, calcula mentalmente o saldo negativo do banco e dos cartões. Até Augusto, ontem, se mandou de vez...que fazer! Há dias não fala com o filho Antonio em Curitiba. Ele poderia mandar algum...
Agora, em frente à geladeira vazia, um miado e o pelo macio acariciando seu tornozelo. “Vamos fofinha, nosso leite dá para dois”.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

BRIOS -- Microconto

Tarde gelada, halitos visíveis, echarpes ao vento. As pessoas que passam por ela fingem não notá-la. Mas Júlia sabe.
Vê-se refletida na vitrine da confeitaria, cabelos livres, olhar seguro.
Apesar da cicatriz que lhe deforma o rosto numa perene careta de escarnio, sente-se linda: a coragem de ter sido ela a dizer adeus, fizera toda a diferença.

FODA-SE -- Miniconto

“Posso sentar-me à sua mesa?”
Foi assim que se conheceram. Uma química veloz os reúne sempre no mesmo café. Ela, sóbria e elegante, entre entrevistas, a procura de emprego. Ele, esportivo, corrente de prata sobre relógio vistoso, aparentemente sempre a toa.
Ela Marta, ele Domingos. Que nome antiquado, suburbano...mas tem o olhar sempre em busca de uma fresta de decote e um jeito especial de tocar em xícaras e croissant. Mais do que uma vez, Marta sentiu os mamilos, veementes, debaixo da seda.
Indefectível, um dia veio o convite. “Faço um omelete imbatível. Janta comigo?”
Carro um tanto velho mas limpo e incrementado. Estaciona num supermercado: “Um vinhozinho...Me espera um instante?”
No porta-luva aberto uma revista a convida, e lá está seu horoscopo: “Ótimas perspectivas de contratação às quartas. Cautela aos sábados. Domingos perigosos”.
Assustada, hesita. Mas lá vem ele com aquele sorriso. A seda lhe aperta querendo estourar a camisa. Ela, decisa, com uma mão atira a revista ao banco de traz e com a outra, vagarosamente, começa a soltar os primeiros botões num gesto definitivo.

PS- já mudei o título duas vezes: fica este mesmo, que era o original, apesar do espanto de muita gente

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

EPILÉTICO, conto criado para a oficina de Marcelino Freire

-disto se morre?
-Tomando remédios, posso sentar e escrever bastante mesmo depois da lição de casa?
-meus colegas da escola vão ter que saber?
Sentado à escrivaninha, o menino estava angustiado. Na escola percebia que o achavam diferente por preferir estudar do que brincar e zombavam de sua cultura precoce.
O médico havia tentado tranquilizar a mãe que estava apavorada. Mas tinha receitado muitos remédios, e feito mil recomendações. Estar alerta quando começasse a sentir comichões e zumbidos. Seria normal, em hora de crise, ver sumir as cores ao seu redor. E seria bom que tivesse alguém por perto naqueles momentos. Mas também tinha dito que muita gente famosa sofria disto e, “se ficou famosa é porque viveu bastante, não é meu garoto?”
Agora, enquanto a pena continuava tropeçando e espirrando tinta em volta das palavras que lhe surgiam incontroláveis, tentou lembrar os nomes dos escritores que o médico havia mencionado. Será? correu às enciclopédias e, sim, realmente Dostoievski e Flaubert tinham morrido aos sessenta anos. Sessenta anos é uma idade respeitável.
-posso escrever muito até ter sessenta anos!
A pena acelerou suas ranhuras sobre o papel rústico: linhas e mais linhas a criar cenas, personagens, conflitos. Rápido. Pois sabia que a qualquer momento poderia ser interrompido. Foi justo então: o rosto triste da mãe aparecer na porta.
-Venha Joaquim: o almoço está na mesa.

PS ---- Conto surrealista: propositalmente quis induzir o leitor a imaginar tratar-se de Machado de Assis criança, quando isto é impossível: os três escritores foram todos epiléticos mas praticamente coetâneos.
Dostoievski -1821-1881
Flaubert -1821.1880
Machado de Assis - 1839-1908

sábado, 29 de agosto de 2009

O LADO ENSOLARADO DA COLINA

Conto.
Para Lucimar Bello com quem, finalmente, conquistei a liberdade para "inventar" palavras....


Caminhava pelas ladeiras aconchegantes, paralelepípedos limpos, telhas de ardosia, floreiras nas janelas. Câmara a tiracolo, Otávio sabia o que queria. Desde que saíra do ônibus de turismo, seu anseio era poder cristalizar de forma arrojada e definitiva a história desta colina. Dois versantes, duas estórias. Duas história.
WEIMAR, que o sol ilumina desde sempre, berço de uma cultura parida, amamentada e ninada por filósofos e pensadores, lá reunidos em volta de gênios como Goethe: o lado ensolarado da colina. Horizontes abertos, o infinito. Um véu de fina seda dourada deixando transparecer os campos verdes do futuro.
Jovens, muitos jovens: estudantes discutindo politica e sociologia nas mesas de calçada das cervejaria; garçonetes, servindo, sorrindo dos gracejos. Todos alegres, confiantes na construção de futuros promissores, anseios de carreiras, sucessos. Mesmo os feios, transpiram beleza.
Perto da igreja, um casal de velhos, bem velhos, está sentado nos degraus, mãos dadas, olhar perdido. Quantos anos? Setenta? Oitenta?
Quando o vêem, quebra-se a harmonia. A velhinha cobre o rosto, o homem estica o braço, planta da mão aberta veementemente na direção de Otávio: é um alto imperioso, e Otávio obedece. Calcula retroativamente os anos e entende.
Eles devem ser dos poucos que sobraram para ter um sentimento penoso de desonra. Porque viram, sim. Devem lembrar as sorrateiras construções do lado obscuro da colina. O outro lado, onde o sol nunca penetra, pois as rochas da cadeia montanhosa são tão rasantes que só deixam passar o vento, o gelo, a desesperança.
Otávio acabara de vir de lá: sinistro museu a céu aberto onde houve por anos, a desolação dos olhares opacos espiando entre as frestas das paredes de madeira. Mesmo supérstite, cada ser ali pisoteado, foi transformado em museu individual e ambulante até a morte, cada um classificado, registrado e arquivado por números tatuados. Em cada ser, os devaneios vagos e improváveis tentando cancelar da memória o que os olhos não conseguiriam obliterar.
BUCHENWALD, o lado tetro da colina.

Sorte temos nós, que ao abrigo de nossa paz, podemos só ter um olhar penoso sobre barbáries de todo tipo. Ver surgir os "Capri", arranhacéus residenciais, irremediáveis e assustadores perante nossas janelas, escondendo segredos, penas, risos, esperanças e medos. Os mesmos segredos, penas, risos, esperanças e medos escondidos nas palafitas dos alagados, nos paus-a-pique dos sertões, nas tristes favelas urbanas onde as vasas serpenteiam entre as barracas e devagarinho descem até nossas calçadas a lembrar-nos, de novo, de nossos próprios segredos, nossas penas, nossos risos, nossas esperanças e nossos medos.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

A CADUQUICE DO MUNDO

.....Obrigada à Hilda Hilst por emprestar-me o título....

Na volta do cemitério, Marta estava cansada. Ao entrar em casa, chutou os sapatos, jogou a bolsa no sofá e foi direto à cozinha. Uma xícara de café e uma fruta seriam o suficiente para encerrar o dia, exaustivo física e emocionalmente. Não é fácil enterrar uma mãe. Bem cuidada numa casa de repouso, continuou até o fim reclamona, agressiva e sarcástica, mas lúcida apesar de centenária.
Sentada agora na sua poltrona preferida, bandeja no colo, Marta ligou a televisão. Quem sabe algo corriqueiro aliviaria o estresse, antes da hora de deitar. Nem se preocupou em procurar um canal específico: ficou olhando as imagens que corriam na sua frente, sem rumo nem sentido. Nem havia-se dado conta que não acionara o som.
De alguma forma sentiu que aquelas imagens a levariam de volta ao momento que, durante todo o dia, havia tentado identificar. Qual foi a primeira lembrança que tinha da sua própria mãe? Como era seu corpo, seu rosto, seu comportamento, sua voz quando Marta era criança? Foi só na adolescência que suas descobertas da vida, seus gostos repentinos e imperativos haviam começado a fazê-la olhar para a mãe como um livro didático que lhe indicava os rumos da vida, de uma vida que não era a que ela, Marta, estava finalmente vendo com seus próprios olhos.
As reproduções das pinturas de Picasso que ela levava para seu quarto, pregando na parede com tachinhas coloridas.
-"Onde já se viu os dois olhos no mesmo lado, parece um linguado! E chamam isto de arte? O mundo está acabando!!"
Enquanto o mundo dela parecia estar caducando, o da Marta era uma revelação diária: a emancipação da mulher, a revolução sexual, o homem na lua!
-"Para que meu Deus, com tanta fome no mundo! pra que gastar tanto dinheiro....Esta gente está louca!"
A progressiva erradicação do racismo, a sempre crescente tolerância ao antigo condenável, o telex que estava virando fax, os supersônicos a cruzarem os céus. E o tampax! a trazer um conforto quase orgástico nos dias mais incômodos.
-"Eu ehn, não é natural andar com um troço aí dentro o dia inteiro. Este mundo está completamente caduco!!"
-"Uma vergonha esses gays por aí!"
-"Já não se pode andar na rua sem ser assaltado!!"
-"Com todos os impostos que pagamos, os caras lá em cima ganham fortunas e ainda roubam!!"
As imagens continuavam correndo no vídeo colorido e Marta, xícara vazia na mão, tinha um nome martelando em seu cérebro, algo reminiscente de seus estudos, um pequeno livro de muitos contos, todos com os mesmos personagens: estórias picarescas de dois jovens foragidos vivendo, observando e participando dos podres de todos, dos ricos, dos pobres, dos vagabundos como eles. Traições, latrocínios, homicídios, adultérios, pedofilia, glutonice, extorsões, avareza, dissipação, desperdício. Todos os exageros e todas as licenciosidades: tudo, tudo estava lá. Tudo já estava lá. Mas onde?
Talvez amanhã, descansada e mais serena, ela procuraria aquele livrinho, se é que ainda o tinha.
Um bom banho, um pijama quente, uma última oração.
Ao apagar a luz, sua mente inesperadamente trouxe-lhe o nome: "Satiricon" escrito por Petrônio no "Ano I - DC".

quinta-feira, 23 de julho de 2009

PRECISO MORRER.....

Preciso?

---Precisou sim, Cristo, na cruz, para ressurgir e redimir os pecados do mundo.
---Precisou sim, Júlio César para que Marco Antônio, ao honrá-lo, levasse de volta o Senado Romano à sua antiga magnificência.
---Precisou sim, Jean D'Arc para instigar a França a livrar-se da invasão inglesa.
---Precisaram sim , milhares de João Ninguém do Dakota à Louisiana e do Nevada ao Massachusetts, para que, aos pés das falésias da Normandia, extirpassem um psicopata da face da terra.
---Precisou sim, um estadista, decadente em moral e popularidade,
para sair da vida e entrar na História.
---Precisou sim, Martin Luther King para ver sua sonhada utopia ser realidade.

PRECISO?
Já escapei mais do que uma vez. Atravessei guerra, continente e oceano, já morri de medo, de fome, de frio, de ciume de tristeza de inveja de pobreza e de riqueza de ternura de ansiedade de pena de vergonha de orgulho de ódio de solidão de raiva de sucessos de fracassos de feridas de derrotas de vitórias.
E de amores e de prazeres e de risos. Muitos risos.
Mas, sem escolha, e como todos, serei um dia mais uma fossa na terra, deixando lágrimas, saudades, anedotas. Quem sabe algum exemplo. E depois, o esquecimento.

PRECISO?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

AGRADECIMENTOS

A qualidade dos mediadores dos cursos e oficinas é, seguramente, o fator primordial para o prazer, o sucesso e o aprendizado dos participantes.
Graças a Gabriela e Livia, "Mascaras, Rostos e Personas" foi uma fonte inesgotável de criatividade.

MINHA CASA-MEU QUARTO-MEU ESPAÇO-MEU MUNDO

....o mundo muda mais a gente do que a gente muda o mundo (Maria Telles Ribeiro)

E o mundo nunca é como queriamos que ele fosse... Mas o meu é.
Meu mundo é anti-convencional porquê não tenho que respeitar as convenções de ninguém já que meu espaço é só para mim e toda minha casa é como se fosse só meu quarto e meu quarto é como se fosse toda minha casa, e tudo isto é meu mundo. Quem entra nele aceita minhas convenções.
Sim, sim: pode entrar! Não faz mal, entre, pode entrar, sim, pode pisar sim, assim mesmo! Está chovendo?
Não tem importância, entre assim mesmo! Entre, vamos, use esta porta pois é a única da casa! Não tenho portas a não ser a da entrada.
Ah, não, desculpe: há a da cozinha. A da cozinha só está lá para que eu, ao acordar, não tenha a visão prosáica de uma geladeira. E la na cozinha, tudo é tão prático que, na mesma posição, uso o fogão com a mão esquerda, pia e geladeira com a direita e vários armários no alto; uma ligeira torção do tronco e tenho a despensa ao meu alcance.
Venha, venha para a sala, pode pisar, insisto, já disse que não tem importância; olhe: esta é minha mesa de jardim, este meu sofazinho, aquela gama toda de cores alinhada nos braços, são as que brotam das minhas mãos quando me dá na telha.
Minha estante de livros é pequena, não é? Eu guardo pucos livros, mas...Ah! meus livros...
Você pouco vê das paredes, não é? Mas meus quadros...Ah! meus quadros...
E minhas esculturas pelo chão...Ah! minhas esculturas...
Mas a estória toda não devia ser meu quarto como a Maria Telles Ribeiro mandou?
Pois então,você já está lá! Continue andando, pisando, sim pode, claro que pode, deve!
Uma guinadinha para a esquerda e lá está minha cama branca e o resto é a continuação do resto: meus quadros e minhas esculturas e meus objetos...Ah! meus objetos...
E, sim: há também meus girassois...Ah! meus girassois...
E meu tamancos...Ah! meus tamancos brancos...
Eles podem estar em qualquer lugar, a qualquer hora, meus tamancos brancos...
É verdade,eles também são brancos, como as paredes que quase não se vêm, assim como todo, todo o chão em que você está pisando...
Acabou o espaço: você está saindo e levando, dentro dos seus olhos, todo aquele branco em que você, indo para a sua casa, reverá todas as cores da minha.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

HOMBRIDADE

conto

“A oferta da emissora do Rio, ainda está de pé?”
A resposta foi um alívio. De improviso, uma pergunta do outro lado da linha leva Augusto a outra realidade.
“Você tem certeza de que quer trocar o teatro pela televisão? Pense bem: a longo prazo pode ganhar mais, ter popularidade, mas televisão é televisão e teatro é aquilo que você sempre quis e onde você já é alguém. Quer pensar mais uns dias?”
Qualquer atraso em sua decisão poderia custar-lhe mais do que a carreira.
“Não,tudo bem. Preciso mudar de vida, ficar longe de arrependimentos. Tudo bem, mande os contratos que eu assino”.
La fora, pela janela, apesar do transito, do barulho, do caos de sempre, vê um dia parado, amorfo, como se não tivesse data, nem hora. Ombro apoiado à vidraça, vê a poluição aproximar-se, velozmente, a envolvê-lo em nuvens escuras, ameaçadoras e inadiáveis.
Nem procurando entre as falas mais retóricas e batidas dos personagens que já viveu, acha algo decente para usar como trincheira. Esconder-se atrás de literatura: não é assim que se faz, não é seu estilo. Ele quer ser sincero, só sincero. A vista daquela janela que conhece as horas que ali dividiu com Júlia, começa a escurecer, as luzes pipocam aqui e ali.
Tem que ser hoje.
É hoje. Amanhã a noticia pode ter se espalhado.
É agora.
A ida a pé até o teatro infundiu-lhe coragem. Agora, em frente ao espelho do seu camarim, durante a transformação física para a personagem do palco, ele não consegue disfarçar sua angústia.
Já à porta da Júlia, um suspiro, um curto golpe e lá está o sorriso dela, um cílio postiço no dedo, um gesto para que ele entre. Ao voltar para a bancada, ela mostra o puf onde frequentemente estica as pernas entre atos e ele senta, joelhos no queixo.
Um silêncio rápido e a voz finalmente sai:
-Júlia, não sei o que você pretende fazer, mas.....
-Ainda não sei......-
É a Júlia, objetiva, pé no chão, segura. Jovem demais, mas madura.
-Eu ajudo em tudo, prometo Júlia, naquilo que você decidir...-
Silêncio pesado, o cílio no lugar.
-Eu não posso Júlia.......-
Ele quer ouvir claramente sua própria voz, antes de continuar:
-Na verdade, Júlia..eu não quero..
O arrastar-se da cadeira e a Júlia de pé. Tira o roupão, entra pelos pés no costume da Leila, caminha até Augusto e junta as pontas do decote, virando de costas:
-Por favor...
O sibilar do zíper, um encolher de ombros à mordida do fecho em sua carne.
Ao virar-se de novo para ele, Júlia coloca as duas mãos naqueles grandes braços agora relaxados. De repente ele parece mais baixo mas, apesar de mesto, seu olhar conserva a dignidade de sempre.
- Eu sei, Augusto. Eu sei. Sem rancor...”

quinta-feira, 28 de maio de 2009

VENUSES ou BOTTICELLI x WARHAOL

A Vénus colorida, cabelos ao vento, mesto olhar para o infinito, imagem repetida, e repetida, e repetida através dos espelhos que também refletem a luz, muita luz, todas as luzes feéricas do salão. Numa única parede, uma só Vénus: a de fundo violeta que realça o mecheado quase invisível tão na moda desde as “luzes” de Vidal Sassoon. Aquele violeta pastoso que combina – melhor do que a Vénus de fundo azul claro - com o turquesa das poltronas giratórias, com o verde água dos aventais das manicures, com o laqueado ocre das bancadas.
Como são despojados esses modernos: não tem mais os dourados nem os veludos da época em que me penduravam, casta, branca, ascética e intocável, nos salões onde minha nudez acariciada por minhas próprias mãos, contrastava com as lingeries pretas detrás dos biombos, escondendo volúpias e transgressões.
Aqui, nem pareço eu. Essas mulheres com madeixas arrumadas, são mais magras, usam roupas, tem cabelinhos curtos feito franjas irregulares sobre os olhos; será fácil afastá-los com um sopro do canto da boca? E olha essa mulher estonteante que entra agora, esguia, altera, cheia de si, émula de rainhas, dona completa do espaço.
Não aguarda recepcionista, senta na frente de um espelho, relaxada: sabe que Alexandre correrá até ela. E ele vem, olha para ela no espelho e, sorriso afetado, investiga:
--É hoje o grande dia?
--É.
--Que roupa vai usar?
--A roupa não tem nenhuma importância, o cabelo sim.
Silenciosa surpresa.
--É, é o cabelo: quero solto, desorganizado, emaranhado, muito.....assim como se eu acabasse de
sair de uma cama depois de umas horas de amor bem louco.
Alexandre agora suspira, escova em riste, mão deslumbrada:
--Meu bem, você vai a um casamento, não a uma sessão de fotos!
É aí que Verônica monta um sorriso modesto, mas com saboroso olhar de cumplicidade arremata:
--Quem sabe assim alguém vai perceber com quem o noivo passa certas tardes...
Há um empalidecimento progressivo do violeta nas refrações repetidas nos espelhos, mas
Verônica sabe que é impossível um poster piscar.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

BLASÉE

Miniconto inspirado no microconto de Adriana Falcão:
"Alí deitada, divagou:
se fosse eu,
teria escolhido lírios

Adorada, sim.
Roupas espalhadas pelo chão, estojo Tiffany numa mesinha de cabeceira; garrafa de champagne brut emborcada no balde de gelo; uma taça intacta num criado mudo, a segunda no chão, junto do escarpin de seda molhada, numa poça espumosa sobre o carpete marfim.
Ele, num ronco suave, deitado sobre um ombro, a mão sobre o mamilo dela ainda rijo.
E aquele mundaréu de rosas, duzias e duzias, em dezenas de vasos espalhados pelo quarto apagado.
Adorada, sim.
Seu corpo nu reage a um inesperado calafrio: narinas tremulas, bochechas ligeiramente infladas a soprar o excesso daquele aroma invasivo, tingido de carmim.
No teto branco, única claridade visível, busca uma imagem de sua infância: flores brancas, pétalas recortadas desvendando pistilos amarelados, no altar da santa a quem, vez por outra, dedicava suas comunhões.

"FORMANTE INICIAL" (Galáxias de Haroldo de Campos) e a INTERTEXTUALIDADE

Considerações pessoais

No texto abordado a intertextualidade revela-se em facetas diferentes: na constante perseguição das palavras, no entrelaçamento de sílabas criando outras palavras, no alcançar novas palavras, e novos significados, por associação de idéias. É a intertextualidade cerebral, teórica, prática, literária mas também matemática e mecânica. Quase um exercício acrobático que, como toda acrobacia requer ritmo, cálculo, precisão e concentração impecáveis.
Uma formula inteligente, criativa, rebuscada e ao mesmo tempo lúdica, divertida. E trabalhosa, muito trabalhosa. Quase tão trabalhosa quanto a leitura do texto que, se feita com paciência e dedicação, faz sentido e revela consistência. Poderia ser um compacto de estórias diferentes cuja ligação vem da faceta “associação de idéias”.
A formula, mais do que prosa, corre paralela, mas bem rente, à poesia pelo compasso e pela volatilidade, que são mais próprias, mais frequêntes e até mais aceitas no gênero poético. Pareceu-me um ensaio, um estudo inovador de construções literárias e poéticas; assim mesmo, um ensaio. Apesar de arrojado, não creio que Haroldo de Campos, viesse a adotar esse estilo de forma permanente e contínua, mesmo que ele não substituísse nem renegasse o de sua obra anterior.
Alias é possível que essa formula pertença a uma fase mundial de renovação, um movimento novo mas não definitivo e nem substitutivo, assim como houve o "descontrucionismo" na pintura, escultura e arquitetura que, porém, não obliterou a existência, com louvor, dos estilos tradicionais anteriores. Mas nada foi como antes.
É certo, porém, que do movimento que Haroldo de Campos fundou na nossa literatura, nasceram questionamentos viscerais e alterações poéticas ainda em progresso.
A estrutura do texto, por uma questão de ousadia, de riqueza de palavras, de alusões, sinônimos e antônimos, remeteu-me àquilo que considero uma obra prima da musica brasileira, erudita ou não – mas nesse caso específico considero fortemente erudita – que é a “Construção”, de Chico Buarque de Holanda. Não somente as imagens descritas, palavras e versos tem intertextualidade entre si, mas elas interagem com a composição musical que, por sua orquestração primorosa no ritmo de mercado persa, nos empurra à realidade do caos, do trânsito, dos ecos, da vida – e da morte – das metrópoles.

terça-feira, 5 de maio de 2009

DIREITOS E ABUSOS. E O BOM SENSO? ...

CRÔNICA


Nunca foi tão fácil comprar. Cheques, cheque especial, cartões de crédito, internet, débito automático; mil e umas prestações, mil e umas facilidades. A propaganda direta é tão bem praticada que candidatos a alguma coisa se instalam em nossos computadores, e até em nossos telefones, de tal maneira que enquanto não terminarem a mensagem não adianta nem desligar, pois a linha fica presa. Ligamos a televisão e recebemos dentro de nossa casa dezenas de aliciamentos. Atendemos ao telefone e sempre tem alguém querendo nos vender alguma coisa. Comprem, comprem, comprem.
Já há algum tempo precisava comprar uma impressora para o meu “laptop”, mas não havia como dispensar certas despesas fixas, importantes, inadiáveis. Ontem finalmente, após mil contas e verificações, abracadabra: posso dar-me esse luxo!
Entrei na loja disposta e voltar para casa carregando a caixa de papelão: não tenho mais carro mas da loja até minha casa seria um passeio prazeroso trazer para minha prateleira, finalmente, a comodidade que me permitiria eliminar minhas idas à mais próxima “lan-house'', carregando meu “pen-drive” para imprimir meus trabalhos. Levei algum tempo para escolher algo que estivesse dentro de minha disponibilidade financeira, e que eu fosse capaz de operar com alguma facilidade visto que seria minha primeira impressora. Na minha idade não tenho a habilidade dos garotos de 8, 10 anos que sabem fazer isso antes de saber declinar corretamente o verbo “assoar”. Já repararam quantos adultos ainda não sabem?...
O rapaz que me atendeu e meu ajudou na escolha: um amor de atencioso, prestativo, competente. Acompanhou-me até um dos caixas carregando a finalmente MINHA IMPRESSORA. Sorridente, abro a bolsa e tiro meu talão de cheques: pagamento à vista com um pequeno desconto de 2%.
Enquanto a moça coloca habilmente o volume em uma enorme sacola (ela aprendeu não colocar a “coisa” na sacola, mas a sacola na “coisa”, como fosse um capuz), sorri para mim e, com a naturalidade de quem o faz centenas de vezes por dia, há meses e- quem sabe – há anos, recita:
--Identidade, cpf, comprovante de residência.
Pensei não ter entendido direito:
-- Identidade, cpf e o quê?
A resposta confirma que, apesar de minha surdez, meus aparelhos auditivos ainda funcionam bem:
--Comprovante de residência.
Tive que segurar meu queixo com a palma da mão: um absurdo! Mandei chamar o gerente.
--Por favor, qual a lei que lhe permite exigir um comprovante de residência,além
dos documentos regulamentares?
--A Senhora tem que entender que...
--Desculpe: não quero entender as suas razões por exigir-me comprovante de residência;
mas saber qual é a lei, o regulamento, ou portaria que lhe autoriza fazer-me essa exigência.
--Não sei se tem tudo disso, mas eu estou cumprindo ordens da firma.
--Quer dizer que a próxima vez que vier fazer compras aqui, eu devo supor que, quem sabe, o senhor poderá exigir-me o original da escritura de compra do meu apartamento?
Silêncio. Insisto:
--Quando o senhor sai de casa costuma carregar consigo uma conta da Eletropaulo, da
Congas ou da Telefonica?
Surpresa no olhar do moço enquanto balbucia:
--Não senhora.

Saio feliz SEM a impressora, convencida de que outras lojas seguramente aceitariam – como aceitaram - o cheque (modestos duzentos reais) de uma velha senhora apenas mediante as identificações de praxe.
À noite convidei uma amiga para festejar minha aquisição. O gerente do restaurante, veio ao nosso encontro, sugeriu a melhor mesa disponível; na hora de pagar a conta, preenchi meu cheque e quando quis apresentar minha identidade, com um gesto elegante e um sorriso, ele a dispensou. Se meu cheque resultasse sem fundos, ninguém mais poderia confiscar os pratos de alta gastronomia, e muito menos os dois “Kir Royale”, consumidos como aperitivo.
Mas minha impressora está aqui, em perfeito estado, à disposição de quem tivesse que exigi-la legalmente por inadimplência.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

.....E LÁ SE FOI MAIS UM MÓDULO....

....e, para a turma do fundão, lá vai o meu "ATÉ MAIO"!!!!

quarta-feira, 8 de abril de 2009

PEDRO E A ZIBELINA

PARA PEDRO 'CLASH' A QUEM, EM CLASSE, NÃO CONSEGUI DIZER O ABAIXO:

Animalzinho melindroso das florestas russas, a Zibelina começou a ser usado como ornamento de vestimentas desde a época carolíngia. Carnívoro, sua composição física, pernas curtas e corpo alongado, já sugere seu andar quase rastejante para não ser visto por predadores maiores, e para surpreender os menores, de que se alimenta.
Parece estranho Zibelina representar o “ser imaginário” de alguém como Pedro?
Os textos de Pedro sempre me surpreendem. Não deveriam, pois já conheço de alguns módulos de “escrevivendo” a lucidês do seu raciocínio, sua capacidade de enquadrar idéias com distinção e força apesar da simplicidade com que as coloca. E meu primeiro pensamento ao ouví-lo ler seu texto foi o último item de minha própria lista inicial de seres imaginários, que, porém, não me atrevi a desenvolver: Deus.
O fato de Zibelina ser “ausência” reforça ainda mais sua presença. A onipotência de Deus, um dos atributos mais cantados, enquadra outro que pouco mencionamos para não soar como uma ameaça. Não é, mas é tão real que nunca o percebemos: Sua “oni-presença”.
A Zibelina de Pedro tem os dois.
Se Zibelina chega sorrateiramente e se instala nos momentos de crises, qualquer crise, é porquê nosso inconsciente a percebe e a ela apela como quem necessita de um calor macio em volta de seus ombros e sua alma. O depoimento de Pedro é até um alerta contra a ingratidão. Resolvido o problema, Zibelina se vá. Devíamos nós, agora, acarinhá-la, acalentá-la em nosso colo, alimentar-lhe a alma com a nossa. Só os realmente religiosos – de qualquer religião – os ascetas, os penitentes, os místicos lhe dedicam constante homenagem.
Zibelina resolve, mas some: sua ausência dá vida à consciência do necessitado que, com sua própria força e ajuda espiritual, tem capacidade, sim, de resolver suas crises e as aceita, por que elas fazem parte de nosso saber e não-saber.
O texto do Pedro mereceria um fundo musical. Eu não sei compor mas poderia sorver da composição de Prokofiev, os sons didáticos e descritivos que usou para sua fabula de Pedro e o Lobo. Talvez com a adição de algumas discretíssima colunas de órgão, ou, quem sabe, melhor um saxofone barítono a acariciar-lhe o pelo macio que já não abastece os régios ornamentos, mas só aquece os recursos íntimos dos seres humanos.

terça-feira, 7 de abril de 2009

HOMENAGEM A PHILIP ROTH E A SEU OLHAR LÚCIDO SOBRE A JUVENTUDE / VELHICE E VIDA/MORTE

TRECHO SELECIONADO DO SEU LIVRO "THE DYING ANIMAL"
(tradução de Paulo Henriques Britto)

Você pode imaginar o que é velhice? É claro que não. Eu não podia. Nunca consegui. Não fazia idéia do que era. Não tinha nem mesmo uma imagem falsa, não tinha imagem nenhuma... Ninguém quer encarar a velhice antes de ser obrigado a encará-la...Por motivos óbvios, é impossível imaginar uma etapa de vida posterior àquela em que estamos. Às vezes já chegamos na metade da fase seguinte quando nos damos conta de que já estamos nela. Além disso, as primeiras etapas da velhice tém lá suas vantagens.
Mesmo assim, as intermediárias são ameaçadoras para muita gente. Mas e a etapa final? Curioso: é a primeira vez na vida que você consegue ficar completamente por fora da situação que você está vivendo. Observar a decadência do próprio corpo de um ponto de vista externo, permite que a gente se sinta, graças à vitalidade que continua a ter, a uma distância razoável dessa decadência - às vezes dá até para sentir-se orgulhosamente independente dela...
É importante traçar uma distinção entre morrer e a morte. O morrer não é um processo ininterrupto. Se a gente tem saúde e se sente bem, é um processo invisível. O final, que é uma certeza, nem sempre se anuncia de maneira espalhafatosa. Não você não consegue entender. A única coisa que você entende a respeito dos velhos quando você não é velho, é que eles foram marcados pelo tempo. Mas compreender isso só tem o efeito de fixá-los no tempo deles, e assim você não compreende nada.
Para aqueles que ainda não são velhos, ser velho significa TER SIDO. Porém ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo. Esse ter sido ainda está cheio de vida. Você continua sendo, e a consciência de continuar sendo é tão avassaladora quanto a consciência de ter sido.
Eis uma maneira de encarar a velhice: é a época da vida em que a consciência de que sua vida está em jogo é apenas um fato cotidiano. É impossível não saber o fim que o aguarda em breve. O silêncio em que você vai mergulhar para sempre. Fora isso, tudo é tal como antes. Fora isso, você continua sendo imortal enquante vive.

segunda-feira, 23 de março de 2009

....e mais SERES IMAGINÁRIOS

CONTO
Carol Samuelson era minha grande amiga: íamos sempre juntas à praia, ao cinema, às festinhas – os arrastapés, como eram chamados, na época, os bailinhos de tarde na casa de alguém da turma, onde as moças levavam salgadinhos e os rapazes, o rum e as coca-colas. A casa dela era a mais frequentemente usada. Grande, espaçosa, os pais acolhedores mas presentes demais. Uma família linda: escandinavos loiros, lindos, olhos azuis ou verdes, altos e esbeltos. Carol, uma verdadeira sílfide, como diria Littré, era a mais moça das três irmãs e do Sven, o irmão mais velho que já era oficial instrutor da marinha.
“Você deveria conhecer Sven, Bruna, é uma pena que suas licenças são curtíssimas e imprevisíveis. Ele é tão diferente de todos nós que Você nunca iria maginar, nem de longe, que ele é meu irmão. Você iria gostar muito dele e ele iria amá-la. Vocês são almas gémeas.”
Carol ganhou uma bolsa de estudos e lá foi-se ela numa tarde de sábado, num navio da McCormack, em direção aos Estados Unidos.
“Venha à despedida no cais, até Sven prometeu ir. Eu falo tanto em você que ele sempre me pergunta e quer conhecê-la.”
Fui. Sven não apareceu e todos choramos muito, abanando lenços e beijos.
Por muito muito tempo, não vi mais Carol. Conseguiu estender sua bolsa de estudos e acabou ficando na Faculdade de Seattle até se formar. Nisso, eu me casei, mudei-me para São Paulo e recebia noticias dela pelo telefone dos pais. Quando voltou começou a escrever-me cartas cada vez mais frequentes. Estava apaixonadíssima por um Ronaldo no inicio de uma brilhante carreira diplomática, já à beira de um posto no exterior. Eu estava feliz por ela.
Ao voltar de uma longa viagem de negócios, achei o convite do casamento já celebrado há duas semanas. Liguei angustiada; sua irmã Christa, explicou-me que os noivos já haviam embarcado para o Peru, seu primeiro posto como segundo secretário de Consulado. E, assim, começou nossa correspondência de muitos anos. Carol, cada vez mais apaixonada pelo seu Ronaldo, andara por Colômbia, Chile, Guatemala e, na Grécia, ele já era Adido Cultural da Embaixada. Sempre que pensava nela, eu a imaginava lindíssima como sempre foi, ao braço de um Ronaldo moreno (pelo sobrenome devia ser bem brasileiro) e sarado como os rapazes que admirávamos juntas na praia.
Em cada carta, falava de seu imenso amor por esse marido, para mim desconhecido, mas que seguramente merecia aquela Carol maravilhosa que eu sempre admirara. Acompanhei de longe sua primeira gravidez, o nascimento de Sofia, seu batizado, suas dificuldades em mudar de idioma e de escola a cada dois ou três anos. Suas cartas continuavam alimentando minha idealização de um casal de beleza incomum circulando entre os mais refinados e exclusivos ambientes internacionais: seguramente o mais bonito casal diplomático da década.
Um dia, o toque do telefone e a voz inconfundível de Carol:
“Bruna, estamos por poucos dias no Rio. Sofia vai fazer a primeira comunhão depois de amanhã, e não posso admitir que isto aconteça sem sua presença. Vire-se mas venha, não vou aceitar desculpas nem problemas. Quero que você conheça o meu Ronaldo. Estamos cada dia mais apaixonados e depois de tantos anos agora eu sei, com certeza, que ele é, e será sempre, o homem da minha vida. Ah! E venha sim, pois finalmente Sven também estará aqui.”
Minha vida a galope. Minha filha em colégio interno na França. Meu casamento em frangalhos. Nem sei como consegui conciliar tudo. Cheguei no salão da festa horas depois da comunhão. Ao descer os degraus do salão, onde dezenas de mesas acolhiam os convidados, percebi que um telão estava projetando fotos de Sofia, e só de Sofia, desde o nascimento até o momento da hóstia sagrada.
Fiquei na escadaria aguardando que terminasse e logo percebi um homem chegar lentamente até a mim. Pequeno, olhos mornos, um imperceptível estrabismo, grande orelhas, calvície para lá de avançada e um sorriso aberto, branquíssimo, quase uma gargalhada repreendida. Num ligeiro inclinar do rosto, pegou minhas duas mãos nas suas: “Você é a Bruna, sim?”
Desci os últimos dois degraus para diminuir mais um pouco nossa diferença de altura e abri meu sorriso prazeroso, numa súbita adivinhação: “Sven?”
O barulho dos saltos de Carol destolheu minha atenção e lá veio ela, arrastando Sofia, no seu vestido longo e branco, que corria segurando com a mão livre a tiara de margaridinhas nos cachos loiros.
Carol me abraça com tanta força que fiquei torta, numa posição estranha, com o tronco entre os braços dela, minhas mãos nas mãos de Sven, e a beira do meu vestido puxado pela mão de Sofia. “Você veio, você veio!” Livre das torções físicas daquele abraço maravilhoso, mal percebi Sofia infiltrar-se entre eu e o Sven, perguntando surpresa: “Papai, nem você conhecia a Bruna?”
Não consigo lembrar minha reação nem qualquer coisa que tenha feito ou dito na meia hora seguinte, tamanho foi meu embaraço. Quando fui, finalmente, apresentada ao Sven deparei-me com um gigante rubicundo, uma vasta cabeleira ruiva encobrindo as orelhas, enormes mãos segurando um cachimbo apagado, mas seu sorriso sim era o sorriso da família mais bonita que eu jamais conheci.
Seres imaginários?
Sim, foram dois, e completamente errados.

terça-feira, 10 de março de 2009

SERES IMAGINÁRIOS: NÃO, NÃO É IDÉIA FIXA, NEM MANÍA, NEM PSICOSE! É TEMA DE CURSO (março/abril2009) NA CASA DAS ROSAS...

É lá que nos reunimos para conhecer alguns dos seres imaginários criados por mitos, religões, fábulas, contos de fada, escritores, cineastas, pintores e até por nós mesmos. Os seres imaginários não são somente aqueles que quase toda criança inventa para ter com quem conversar e brincar escondido, a quem confiar seus segredinhos. Não são somente os que vemos em revistas em quadrinhos, filmes de horror ou ficção científica, nem os que sobram de nossos pesadêlos. E nem sempre são esdrúxulos, feios ou apavorantes, pois quase sempre o que imaginamos é estritamente ligado aos nossos desejos, mesmo que ainda não captados. Muito dos personagens de livros sérios e importantes, foram frutos da imaginação de seus autores; certas vezes eles correspondem a algum ser humano de características interessantes que passou pela vida do romancista, mas ao construir-lhe uma história, forçosamente aparecerão outros seres ao seu redor que serão imaginários.
Cada um dos participantes do curso pode ter seu ser imaginário a apresentar, a discutir, a defender, a proteger e - se for de todo necessário - a sepultar em ocultas memórias.
É bom, é gratificante, especialmente quando descobrimos, com ou sem surpresas, quão mais geniais e criativos são os nossos colegas...

SER OU NÃO SER -- TER OU NÃO TER SERES IMAGINÁRIOS

Eu sei que ele existe, mas não consigo imaginá-lo. É o ser que vive a espreita, em algum canto de minha vida. Houve tempos em que eu me perguntava: a espreita do que? Será que a presença dele me serve para alguma coisa como serviu-me o ser imaginário que criei anteriormente e que, acoplado ao de uma colega, acabou resultando numa quase parábola com moral e tudo?
Sem precisar, passei a fechar a porta do banheiro, pois sua presença é tão real como se houvesse uma pessoa de carne e osso na minha frente. Ela não está, mas ele sim, esse ser inconsistente, ao mesmo tempo pesado e agitado. Me pergunto como é possível que ele não faça barulho.
De uns tempos para cá, noto instantes específicos - especialmente durante as refeições, em casa ou fora, quando é maior minha descontração e tranquilidade - em que parece que até os aromas e os sabores são desviados para ele como se esse ser invasivo quisesse refastelar-se como eles. Será que ele tem boca, lingua, dentes, quem nem nós? Se sim, porquê não dar-lhe um nome? Mas como dar nome a alguém que não tem forma nem rosto...
Recentemente passei a perceber que sua presença, no fim da tarde e no começo da noite, começa a esvanecer, a parecer-me um pouco mais alheia, menos interessada. Na noite passada acordei de sobressalto com a revelação: tinha certeza de que ele estaria lá fora deitado à minha porta, aguardando o dia chegar e o meu acordar. É isto: ele existe para sugar meus dias, todos os dias, um de cada vez; ele espera que eu os viva para engulir minha energia, minhas atividades em movimento, para alimentar-se delas, apropriar-se delas, deglutí-las, saboreá-las, digerí-las.
Essa espreita que tanto me incomodava, transformou-se em algo positivo: tenho todo o interesse em alimentá-lo esse ser imaginário: quanto mais energia eu produza, quando mais ações, mais movimentos, mais realizações ele consumir, mais dias terei eu para voltar a produzi-los para que eu mesma possa saborear minhas novas vitórias.
Contra a inutilidade de que eu o acusava e a invasão de privacidade que lhe atribuia, agora me beneficio de sua presença: é mais um desafio contra o tempo e a favor daquelas minhas parcas, mas sempre muito minhas realizações.
Bem-vindo seja.

CASOS IMAGINÁRIOS, SERES IMAGINÁRIOS E...AFINS

Hollywood tem por habito apreciar, divulgar, promover e -frequentemente- premiar o inaudito, o inusitado, o inimaginável, e sempre levando alguma "fabula" ao sucesso de crítica, de público e de bilheteria. Aconteceu há mil anos com "Harvey", em que Jimmy Steward, magro, alto e desengonçado, contracenava com Harvey, coelho do seu mesmo tamanho, como se fosse seu alter-ego que controlava, para melhor, suas ações e sentimentos que o personagem real, por modéstia, timidez e insegurança, tinha dificuldade em administrar. Foi grande sucesso mas não sei se premiado. Aconteceu em "Staircase to paradise" (circa 1950) em que um piloto, avião abatido no mar, após sua chegada ao paraíso é submetido a provas que, superadas a contento do julganento angelical, ganha o direito a não morrer mas naufragar numa linda praia ensolarada. Só faltaram as hawaianas a recebê-lo com colares coloridos. Na mesma linha vieram "O céu pode esperar", "Cidade dos Anjos", "O advogado do diabo", todos filmes curiosos, alguns românticos, outros focados em comportamentos sociais, mas, honra seja feita, com um pouco mais de consistência. Anos atrás, foi a vez de "Forrest Gump", aplauditíssimo e premiadíssimo, incompreensivel homenagem a um personagem sem atrativo a não ser sua infantilidade, não fosse a habilidade do diretor Zamekis de enfiar sua imagem ao lado de notórias personalidades em documentários históricos de diversas épocas políticas do país. E agora. eis "O estranho caso de Benjamin Button", com astronômicas indicações para o Oscar de 2009. Não ganhou nem a metade do almejado, mas se em linhas gerais pareceu-me um bom filme, ainda estou um tanto perplexa justamente pelo inaudito, o inusitado, o inimaginável. Pareceu-me desperdicio procurar razões, soluções e ensinamentos inúteis para situações vãs. Para que servir ao público em bandeja de prata maciça (deve ter custado uma nota só em cachês..) um problema tão improvável quando existem no mundo outros: raros, intrigantes, difíceis, interessantíssimos, mas REAIS, de inestimavel valor educativo e emocional, como - por exemplo - o do filme " O Lutador", de qualidades cinematográficas irrepreensíveis que, apesar de algumas cenas violentas, é a tocante sublimação do mea-culpa e da humildade.
Antes de sentar e escrever sobre Benjamin Buton, eu deveria ter começado por pesquisar o texto original de Scott Fitzgerad, autor da estória que inspirou o filme, mesmo que, como esclarecem as sinópsias, de forma bastante livre. Americano nascido e crescido num interior quase desolado de Minnesota, Fitzgerald sempre acariciou em seus romances o desencantos da juventude de sua época que ele mesmo e seus coetâneos chamaram de "geração perdida". Com pouco menos de trinta anos conheceu o sucesso com "Gastby", seguido por "O Último Nababo", algo como uma reflexão tardia sobre o primeiro. Dificil conceber que daquele seu estilo pudesse nascer o inusitado Benjamin Button. O que levou aquele extraordinário escritor a criar um ser imaginário tão inimaginável ? Algo na vida dele o instigou a pesquisar outras formas ou outras sequências do desenvolvimento (ou envolvimento) humano, a tentar observar, examinar e -quem sabe com certo sadismo- saborear as reações da sociedade perante uma aberração ou uma anomalia quase circense? Sem condições agora de ler e analisar o texto original, tenho certeza de que muitos espectadores nem cogitariam fazê-lo: estamos falando de filme como lazer e não de literatura.
Já diversas pessoas aludiram ao filme como uma metáfora. Esta é uma palavra de que não sou muito amiga: demasiadas vezes é usada para camuflar o incomprensível ou, pior ainda, valer-se dela para tentar valorizar a obra. O que me intriga em Benjamin é a falta de indicios de memórias e, menos ainda, de experiências. Esse elo é o que me parece faltar para que o filme seja, além de aceitável como estória, também aceitável como alerta aos que imaginariam que, ao inverter as coisas, os resultados seriam diferentes, o que dizem ser a famosa metáfora do filme. Em algum momento Benjamin deveria ter demonstrado algo a mais do que os seres que vivem aos seu redor e que tiveram um nascimeno e uma evolução absolutamente normais. Ou ele teve e eu não conseguir ver?
Se não tivermos a veleidade de confrontar o texto de Fitzgerald com o filme para desvendar esses e outros tipos de dúvidas, então de que forma dirimí-las? Quais foram as intenções do escritor? Esta simples pergunta poderia provocar um debate extremamente interessante que prescindisse das qualidades intrínseca do filme: por mais bem dirigido e interpretado que ele tenha sido, poderiamos chegar a conclusões bem elucidativas. Quem sabe até do por que ele foi preterido em favor de outra fábula, a que enquadra sonhos e ansiedades verídicas de jovens indianos em busca de uma riqueza e de uma felicidade constantemente em mãos alheias.

MEU MAIS RECENTE SER IMAGINÁRIO

Tenho especial carinho pelo conto "CRIANÇAS" cujo protagonista é meu mais recente ser imaginário, visto que foi baseado na vaga reminiscência de um menino que vi algumas vezes pescando no outro lado do rio na região onde passei parte de minha infância. Nunca soube seu nome, nunca ouvi sua voz. Foi só uma imagem: um garotinho loiro e seu caniço cujas iscas pareciam abrir as águas do torrente em duas pequeninas fitas espumosas que desciam entre as pedras.
A imagem andou ressurgindo na minha vida a intervalos variados e imprevistos: passar por uma ponte, sentir barulho de água, ver linguados em bancas de feira ou, inesperadamente, uma cabecinha loira virar a esquina. Enquanto eu crescia, a lembrança do menino era sempre a mesma, a mesma idade, a mesma loirice. Um dia, atraída pela foto de uma menina que não é nem parecida com a criança que eu fui, repentinamente pensei que aquele garoto também havia crescido, construido uma vida e envelhecido e em algum momento (quem sabe quando, como e se) minha própria imagem de mil anos atrás poderia ter ressurgido nele. E tive vontade de dar vida ao pequeno pescador: uma vida, um perfil, uma história. Aquele ser imaginário, hoje completa minhas lembranças infantis e gostei de ter semeado nele a vontade de transformar a garotinha daquela foto em seu ser imaginário. Quiça um dia tropeçarei num texto que me faça descobri que ele também tenha criado para mim uma vida, um perfil, uma história.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

LUIZ ANTONIO DE BRITO- POETA E AMIGO

Ele é colega de turma na Casa das Rosas há muitos "escrevivendos".
Se define: Insensato, sonhador, eterno menino carente,
pé no chão, careta, troglodida urbano, pseudo poeta.
Para mim: amigo, comunicativo, exemplo de atenção e carinho com todos.
Extrovertido, prega e esbanja sinceridade por todos os poros. Publicou
recentemente alguns poemas, no "Mosaico", e o que transcrevo aqui
é de longe o melhor do livro inteiro. Veja você como deixou para traz aquele
pseudo.....
"ALFARRÁBIOS"
Nuvens broncas passeiam no círculo
almas habitam estantes e prateleiras
milhões de palavras e pensamentos
desvirginando páginas encadernadas
penetrando tímpanos divididos
corroendo veias entupidas de letras
olhos curiosos procuram títulos tortos
verticalmente opostos
mãos ávidas passam folhas
de desenhos sórdidos
líricos científicos ou pornográficos
ficam rodando perdidos
de repente a luz
o tesouro finalmente encontrado
no mar filosófico
não precisa embrulhar
vou começar minha viagem agora.


Aliás, Luiz Antonio:você não é pseudo em nada!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

BREVE RESENHA DO LIVRO "THE DYING ANIMAL" - ANIMAL AGONIZANTE

E DO FILME "FATAL". Adaptação, roteiro e direção: ISABEL COIXET
O livro de Philip Roth, na esmerada tradução de Paulo Henriques Britto resultou num metafórico tratado sobre a vida. O protagonista, David, é um atleta sexual, sexagenário e esteta. O livro não é uma estória , apesar de contar uma: é um monólogo sobre a morte e o morrer. Sobre a vida, a juventude, a velhice: de como os jovens encaram, olham e classificam os velhos. De como os velhos encaram, olham e classificam os jovens. David vive tentando convencer os outros - amigos "velhos" como ele, e "jovens" como seu filho e sua própria amante Consuela - a viver o dia a dia, assim como ele vive: em cada conquista , em cada novo corpo como se o melhor fosse sempre o próximo. Durante o livro inteiro ele passa longe do amor , como se fosse uma degradação do belo. E, como para reafirmar seu propósito de vida, ele renega a realidade até o fim do livro: a de ter sido levado ao amor, por Consuela. Mas o amor a que é levado atravessa o livro como uma lança de cuja haste ele quer camuflar, cancelar, fraudar suas digitais. É a agonia dele , David , antes e mais do que a de Consuela.


A roteirista e diretora do filme "Fatal", baseado nesta pequena obra-prima filosófica de Roth, acertou em trazer a tona o nome de Goya no lugar do Brancusi e Velásquez que David menciona no livro: a atriz Penélope Cruz o provocou para isso, pela forma como ela - uma Maya inspiradissima numa sequencia quase timida mas avassaladora - despe os seios e procura a pose ideal para dar-lhe s o formato mais perfeito. Gestos lentos , às vezes inseguros , outras decisivos; seu rosto entre o orgulho e a humildade, seus olhos prescrutando as formas em despedida. Aliás o grande trunfo do filme é esta atriz jovem e talentosa que desfila sua extraordinária maturidade artística, ao lado, e em igualdade total, do já consagrado Ben Kinsley: impossível imaginar outra atriz em seu lugar que não viesse a ser tragada por ele; em inúmeras sequencias ela mostra sua capacidade de expressar-se com um simples olhar, com o esboço de um sorriso, ou um leve movimento de qualquer parte de seu corpo. Sua inflexões vocais transmitem irrepreensivelmente as intenções: que nunca sejam dubladas!... De novo o roteirista modificou alguns detalhes do filme - por exemplo, o filho de David, médico e não restaurador - e foi bastante seguro em dar um final bem definido, quando no livro ele ficará ao bel prazer do leitor. Não foi questão de bilheteria, nem de pieguismo, pois a diretora seguramente o teria evitado, como o evitou, mas uma questão de entendimento e de aceitação. O que é solução para o leitor , não o é para o público que admira - e está pronto a perdoar - quem admite seus erros, quem se oferece para dar o braço a torcer, quem cumpre com o pregado por qualquer religião: "expiar". Dificilmente qualquer espectador aceitari a o distanciamento por preservação ou por respeito a si mesmo. O livro continua sendo um livro de filosofia antes de ser sobre sexo, amor ou comportamento, mas esses últimos ingredientes completam sua missão em levar o leitor a um exame de suas mais íntimas reflexões. Em qualquer idade.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

OBAMA E EU

OU...EU E OBAMA?...
Tenho um amigo nos Estados Unidos que adivinha meus pensamentos : no fim de semana recebi, via e-mail, o texto integral do discurso de posse do novo Presidente. Primeira reação: correr para reler a frase que tanto havia-me tocado.
Li uma vez, duas vezes. Não achei.
Confusa, apreensiva , intrigada, li mais uma vez. Nada. Teria Obama saído do roteiro e inserido a frase surgida por ímpeto em sua mente?
Epifania?... Criei eu, na minha mente e no meu coração absorvidos por aquele evento, a frase que caberia perfeitamente naquele discurso, mas não estava? Com qual cuidado - e critério - escolhi, brotadas inconscientemente de meu ser, as palavras que emocionaram a mim e àquela irlandesa em lágrimas? Com qual transformação verbal elas chegaram pela boca de Obama aos ouvidos daquela ruiva no meio da multidão? E em que momento e em qual frase efetivamente pronunciada, a irlandesa se emocionaou e eu "desinterpretei"?
Não sei.
Uma Epifania... Banquei - ilegalmente e sem nenhum direito - o James Joyce que adotou e divulgou a palavra Epifania como "momento" literário. Tão confiante naquilo que eu havia "escutado", que corri para papel e lápis para não perder os detalhes da frase e tê-la como imagem definitiva de grande valor para todos os cidadãos, emigrantes, desbravadores, colonizadores. Talvez por ser eu mesma emigrante, mesmo que minha família não tenha sido lavradora?...
Uma Epifania: não sei se pedir desculpas por ela ou sentir-me orgulhosa de ter recebido de um orador uma aparição que, afinal, não foi inusitada: ela poderia perfeitamente ter feito parte daquele texto e teria feito todo sentido naquele Pais e em todo o Continente.
Já decidi: não vou pedir desculpas.
Minha Epifania está para mim como mais um voto para Obama.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

OBAMA - AGAIN

Não resisti a dar uma continuação ao meu "Habemos Obama" anterior.
Um dia depois de sua posse, ainda estou surpresa, admirada e, porquê não, comovida. Surpresa do mar de pessoas que o festejaram na rua. Admirada pela impecável organização do evento. Comovida pelo reconhecimento que senti dentro de mim daquilo que não se consegue explicar só com palavras: Democracia e Patriotismo.
Seu discurso sem leitura, prova o preparo intelectual de um homem que segue uma linha de pensamento intrínseca em seu cerebro, abrindo e fechando paréntesis, sem perder o fio da meada.
Uma frase do seu discurso me tocou especialmente e lamento que não consegui (nem teria como) gravar a imagem imediatamente depois de pronunciada, de uma jovem, característica cara de irlandesa, no meio de tantos (milhar, milhões, quantos?) rostos afro-americanos, cujas lágrimas escrorreram por traz dos espessos óculos de grau: Eis ela aqui, a frase, diretamente ligada à menção da crise:
"Efetuaremos a colheita, sob o sol, mesmo no vento, na chuva e na neve
como fizeram nossos ancestrais que araram nossos primeiros
campos".
Uma imagem tão forte que deve ter atingido profundamente aquela raça, pois agora os americanos são uma Raça, que veio de todos os cantos do mundo, para fazer daquela terra um país agora, sem dúvida, pronto a provar ser a terra da igualdade para todos e da justiça - esta também - igual para todos.
Sendo quem ainda sou, europea, ariana, caucasiana, septuagenária, e tudo mais, não tenho pudor de ter me sentido surpresa, admirada e comovida. Que bom que ainda estou viva.
God Bless America, quem sabe um dia como Continente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

ADEUS 2008 - PRIMEIRA MENSAGEM DE 2009 PARA OS ESCREVIVENTES

A Casa das Rosas reabre as portas com uma série de novos cursos que começam amanhã dia 8 de Janeiro. Ainda não tenho a listagem completa: Se somente tiver cursos sobre poesias terei alguma dificuldade em dicidir se fazê-los ou não. Não é minha praia, mas, quem sabe acabo descubrindo que até poderei ser boa em rimas....
Estou torcendo para prosa, ou quem sabe, artes!
Em todo caso, a grande expectativa que me pressiona é reencontrar voces todos.
E que todos estejam de novo por lá! Se algum precisar sumir, me deixará saudosa,
mas sempre com o carinho e os agradecimentos por sua contribuição à minha produção do ano anterior, por que de todos voces arranquei imaginação e espírito criativo.

"AMOR E DESAMOR" - Conto

"Há quem ama, quem ama muito, que ama mais.
E quem ama melhor"
Jean Cocteau (1889-1963?), poeta, escritor, cineasta,
dramaturgo e cenarista. Para Jean Marais, ator

Foi como uma tempestade, poucos minutos de um frenético agitar de corpos, de curtos suspiros projetados ao teto, numa procura quase raivosa de alcançar o nada. Depois, o silêncio. Ela, imóvel, olhos fechados na penumbra do quarto. Ele acaricia os pesados cachos morenos da mulher e volta a chegar-se a ela num susurro: " Você vê? Nós nos amamos, ainda nos amamos."
Sua mão desce pela face e sua palma descança no travesseiro dela. Está úmido. Seus dedos correm de novo para o rosto dela e agora ele sabe. Num súbito apoiar-se no cotovelo, volta a olhá-la diretamente, face a face: "Você está chorando..."
Olhos fechados, no abandono dos ombros, a resposta dela se perde antes de alcançar o silêncio.
Ele insiste: "Por quê? Por quê?..." e quase não reconhece a voz que lhe diz: "É só isto que nos resta..."
Calmamente ela alcança a beira da colcha que recolhe em volta dos ombros, lentos passos na direção da lareira; o esperma que lhe desce pelas pernas nunca havia-lhe encomodado: cheiro de terra molhada por chuva de verão, cheiro de semeadura, sempre o sentiu assim. Como as outras mulheres o identificam? Hoje ela esqueceu.
Sentou-se no tapete, testa sobre os joelhos, o resto do corpo dentro da escuridão da coberta: os olhos, agora abertos, mal percebem o contorno de seu corpo nu encolhido em si mesmo. Sentia as faiscas da lareira soltar pequenos estampidos quebrando o silêncio, pesado, aterrador. Levantou o rosto. Percebeu a chegada do homem, agora sentado bem em frente a ela, de costas para aquela janela retangular, sem cortinas, que se projetava para dentro do jardim. Nu, pés planta contra planta, joelhos afastados, pênis deitado no tapete, ombros tremendo.
Ela continua olhando, bem acima do rosto dele, a nevasca que silenciosamente esbranquiça as vidraças.
"Você sabe, faltam só duas semanas para terminar a gravação, mais uns poucos dias para o lançamento do disco e depois vamos para casa. Prometo."
Aquele tremor dos ombros: era sempre assim quando ele sentia mágoa, incerteza, dúvidas; gesto incontido, como uma perguna dirigida diretamente a ela "o que é que eu faço agora...."
Ela volta a esconder o rosto dentro da coberta. Sabe que as mãos dele estarão desenhando no ar, como dirigindo a orquestra, todos os argumentos e suas paixões, todas as promessas e suas paixões; todas as reivindicações e suas paixões...
"Quando voltarmos vou pedir emprestado o barco de meu irmão e vamos passar uns dias na ilha. Que tal?".
Uma pausa.
"Podemos até casar, quer? Afinal, depois de tanto tempo... quer casar?..."
Só o crepitar do resto da lenha entre as cinzas rosadas.
"Mas por quê? Por que, o que foi? O que acabou? Não pode ser..."
Ela tem toda a munição para aquele adeus, mas prefere ser desarmada. Sentada ainda ao lado da lareira, olhos fixos nos arbustos do jardim, sente seu ombro e seu braço congelarem contra as vidraças, como se ela realmente estivesse encostada lá procurando os rododendros azulados que só voltariam a brotar na primavera.
O que dizer, como dizer?...Como fazê-lo entender?...O silêncio basta?
O sótão. As malas no sótão.
Amanhã.
Terei coragem amanhã?...