domingo, 21 de outubro de 2012

AUSÊNCIAS

-- Na porta, o olhar mesto. "Voltei".
-- Engoliu a surpresa, descansou as pálpebras e sorriu. "Venha".

Micro-conto inspirado na frase:
"Toda vida só é vida pela osmose da palavra e do fato, 
em que a primeira reveste o segundo de seu traje de gala."
De autoria de Muriel Barbery, em seu livro
"Une gourmandise"

domingo, 14 de outubro de 2012

OSSOS




Em sua já pouca lucidez, ele tenta lembrar alguns nomes.
Mentalmente declama: tarso, metatarso, tíbia, ulna...
Nenhum reage e portanto serão eles que, por mais tempo, provarão a existência daquele homem.
No branco que o envolve, o gotejar silencioso do soro a intervalos precisos.
Nem tem que ficar olhando, supõe-lhes a cadência e o barulho.
Ploct. Ploct.
Na única mão desperta, o indicador permanece imóvel, encapuzado.
Os outros quatro dedos acompanham o ritmo numa imperceptível contração.

Falange, ploct.
Falanginha, ploct.
Falangeta, ploct.
fa..lan... plo..ct,
fal.......pl...

sábado, 6 de outubro de 2012

PLÁGIO? " MINHA VIDA SEM MIM" X " 'TUDO O QUE DESEJAMOS'



Dois filmes realmente marcantes. Sem pieguices pela tragedia que contam. Entre eles, uma distância de oito anos.
Nancy Kincaid, é uma escritora americana que, entre outras obras, escreveu, em 1987, o livro “Pretending the bed is a raft” (Fazendo de conta que a cama é uma jangada) de onde a diretora de cinema Catalã, Isabel Coixet extraiu o tema do filme de 2003, “Minha Vida sem mim” tendo ela mesmo elaborado o roteiro.
Emmanuel Carrére, é um escritor francês, bastante conhecido, que escreveu em 2009, o livro “D'autres vies que la mienne” (Vidas outras que não a minha) de onde ele mesmo elaborou o roteiro do filme “Tudo o que desejamos” dirigido por Philippe Loiret em 2011.
As histórias são idênticas em 95% dos detalhes.
As duas protagonistas são jovens, ambas descobrem ter pouco tempo de vida por uma doença já terminal, ambas recusam o tratamento inútil.
As duas são casadas e tem dois filhos pequenos. As duas tem marido provisoriamente sem emprego. As duas tem uma mãe de difícil relacionamento.
Uma acaba tendo um caso extra-conjugal e adianta-se em procurar outra mulher que possa satisfatoriamente substitui-la tanto com os filhos como com o marido, e sua preocupação maior é deixar fitas gravadas para que as filhas não a esqueçam.
A segunda age exatamente da mesma forma só que sua maior preocupação é conseguir, com a ajuda de um colega também advogado e juiz, ( um rerlacionamento platonicamente amoroso é apenas esboçado) que leis sejam mudadas em defesa do consumidor.
Atenção: Em nenhum dos dois filmes os planos que as protagonistas seguem, nos levam a sentimentalismos baratos, pieguices ou estímulos lagrimais.
Os dois tem muita classe: assinatura autoral de grife.
Coixet, como cineasta, tem um currículo respeitável, tendo nos brindado com filmes do calibre de “Vida secreta das palavras “ em 2005, um capítulo marcante em “Paris Je t'aime” de 2006, e, com “Fatal” de 2009, uma versão arrebatadora da obra de Philip Roth “The dying animal”
Loiret, é um cineasta de boa produção, não sei quantos de seus filmes passaram por aqui, mas só consegui lembrar-me de um que foi realmente inesquecível por ser  curto, simples, carinhoso, mas super bem desenvolvido até visualmente, que se chamou “La lectrice” creio de 1989.
Não sou autoridade em assuntos cinematográficos, nem tenho a possibilidade de ler TODAS as resenhas de todos os filmes que aparecem, mas fiquei surpresa que, em nenhuma das resenhas publicadas a que tive acesso, sobre o merecidamente elogiado “Tudo o que desejamos”, ninguém fez referencia a “Uma vida sem mim”. E portanto a semelhança é brutal em tudo. Até na alta categoria em que os dois filmes foram classificados quando entraram no mercado.
Então?



quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O NUNCA e O AGORA


Nunca havia-me feito a pergunta.
Agora já tenho a resposta.
Devo à História Íntima da Leitura, às outras dezessete pessoas  com que partilhei a aventura do livro, à Editora Vagamundo e, precipuamente, a Fabiana Turci que teve a idéia de registrar os depoimentos de cada autor.

Foi justo aquele DVD que me deu a resposta antes mesmo que eu tivesse-me perguntado: como será que os outros me vêem? pois me vi como nunca antes havia-me visto. Foi uma descoberta.

Hoje sei que a musculatura do meu rosto tem  trejeitos  instintivos que revelam a intenção de uma palavra ao mesmo tempo em que ela brota dos lábios. Há o olhar malicioso acompanhando uma frase que embute , e só embute, um sarcasmo. Há o bufar real e visível ao calcular rapidamente a quantidade de anos que se passaram. E há o acompanhamento da mão que dá leveza – ou peso – a um conceito já mentalmente presente, cujas palavras ainda estão sendo garimpadas.
Mas também há as rugas, a flacidez, o vagar do olhar pesado pelos anos de buscas, de encantos e prazeres, de emoções e lágrimas, de conquistas e derrotas. E de saudades.
Pura embalagem.
O mais edificante é justamente isso: todo o deletério do visual é só embalagem para um conteúdo que parece-me ainda seguir a lógica do seu fio condutor. Conteúdo que sei ser consciente, vibrante , sincero. E ainda válido.

Afinal esta aparência atual não me magoa nem me incomoda. Tenho até certo orgulho dela. Ela é toda minha, sem subterfúgios. E me lembra do que uma vez Anna Magnani recomendou aos fotógrafos numa de suas últimas entrevistas:
“Não retoquem minha imagem, sobretudo não me tirem as rugas: as consegui a duras penas, as conquistei uma por uma”.
Ela tinha toda razão.
São minhas medalhas.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

VIAGEM NO TEMPO





Meu café está esfriando.
Culpa da moça que acaba de passar por aqui levando na coleira um labrador loiro, com a calma de quem não vai a lugar nenhum a não ser passear seu cachorro. Alpargatas coloridas, camiseta e bermudas, nenhum enfeite, nem bolsinha; nada, só o cachorro.
Passou e não consegui ver-lhe os olhos: o sol diretamente no rosto, pálpebras ligeiramente franzidas, narizinho reto, impertinente.
Fico torcendo para que ela volte pelo mesmo caminho para vê-la contra o sol. Ou será que ela já estava voltando...
Ansiedade estranha essa, que me faz esperar de revê-la. Como se sua passagem tivesse-me desafiado a um duelo de recordações e eu, ao recolher a luva, tivesse-me perdido nelas.
Tomo meu café frio, peço mais um e uma torta de maçã para amenizar a espera; tenho a impressão que a garçonete, agora, me olha de forma diferente.
O que estou fazendo eu, vestida desse jeito... Não trabalho mais, mas saí de casa ao completo: meias, maquiagem, pulseiras, bolsa. Para sentar ao sol no café da esquina!
Nunca fiz isso antes.
Mas algo assim já aconteceu. Naquela noite na estação, via o céu ainda estrelado antes que o trem começasse a correr enfiando-se na neblina. Uma imagem na plataforma, feito epifania, havia ficado na minha retina: a menina com um cachorro, mas era poodle abricó.
Agora tenho a impressão que ela está voltando, mas ainda não quero olhar. Terminada a torta, rapidamente tomo o café e fecho os olhos, cansada.
Ao abri-los me encontro naquela rua arborizada, com uma menininha ao lado que se parece com minha filha. Pode ser ela afinal, antes de crescer e ir-se, longe, onde tornou-se a mulher que eu não vi amadurecer, onde ela não me viu envelhecer.
Mas a moça que agora volta a passar na minha frente, tem olhos claros; casualmente olha para mim e sorri. Sorrio de volta e tenho vontade de perguntar-lhe o nome: sei que reconheceria a voz, mas prefiro não ouvi-la.
Pago a conta e saio andando no sentido contrario.
Agora sou eu quem caminha com o sol nos olhos, mas tenho óculos escuros para me refugiar.









quarta-feira, 18 de julho de 2012

PARA ROMA COM AMOR





Título original:           To Rome with Love
Produção:                   USA/Itália/Espanha 2012
Direção:                     Woody Allen
Cast:                           Woody Allen, Judy Davis, Ellen Page, Penelope Cruz, Alec Baldwin, Jesse Isenberg

O filme, nos mesmos padrões de “Meia noite em Paris”, cria uma comédia que surge juntando turistas estrangeiros e italianos a moradores da cidade, com a adição de algumas idéias estapafúrdias, tudo temperado por lugares comuns, tanto em diálogos, - menos, naturalmente, os ditos por ele mesmo – como em situações já vistas. Flagrantes de traição, troca de esposas, ingenuidade da recém casada que cai na lábia de um velho ator famoso, tudo em torno de uma Roma como realmente ela é no viço de uma primavera luxuriante.
Mas ando meio cansada de ver Woody Allen idiotizando-se só para soltar alguma frases de sarcasmo inteligente. Alguns dos seus filmes realmente geniais já estão sendo exumados em festivais dedicados a esse diretor agora em pleno Sunset Boulevard. E assim seja, contanto que saiba manter a faculdade excepcional de saber, como soube nesse filme, escolher uma Judy Davis para o papel da própria mulher e da fantástica Ellen Page para ser uma Monica inigualável.
Amem.

sábado, 30 de junho de 2012

VIOLETA FOI PARA O CÉU



Título Original: Violeta se fue a los Cielos
Diretor: Andrés Wood
Produção: Chile/Brasil/Argentina 2011
Cast: Francisca Gavilán


Violeta Parra ainda é grande nome da arte latino-americana e finalmente esse filme, baseado no livro escrito por seu filho Angel, nos traz informações bem mais amplas sobre a vida e a múltipla obra dessa emblemática mulher cuja história nos chegou – durante os últimos anos de sua vida – provavelmente deturpada pelas lentes castradoras do momento político do nosso país e do dela.
Cantora, compositora, pintora e escultora e, antes de mais nada, quintessencia de “povo”. Povo chileno, qualquer povo limitado por séculos à condição de colonizado, privado de oportunidades sociais, cujas únicas fontes de cultura foram as herdadas da tradição verbal andina.
Filha de uma índia com um branco, professor de uma escola miserável numa aldeia miserável, menina de rosto marcado por cicatrizes de varíola, Violeta cresceu entre guitarras arrebentadas pelas bebedeiras do pai, guardando seus sons dentro do peito numa ansiedade criativa. Foi andando de casa em casa, entre os núcleos mais longínquos, registrando histórias, sons e canções dos mais velhos, que começou a coletar o material necessário para tirar de dentro de si mesma, os primeiros acordes. Suas primeiras canções e baladas não podiam deixar de ser o que foram: lamentos e esperanças de vida melhor, revoltas e brados de protesto inexoravelmente a caminho de um ideal proletário facilmente transformado em engajamento marxista.
É justo de países comunistas que vem seus primeiros sucessos musicais, suas primeiras viagens ao exterior, para as quais até deixa seus filhos ainda pequenos aos cuidados dos maiorzinhos. É a simplicidade de seus versos, a profundidade das imagens aparentes só bucólicas e infantis, que despertam a admiração lá fora, onde a vida é sempre mais fácil, onde as oportunidades estão ao alcance de muitos ou quase todos . Seguindo um jovem suíço por quem se apaixona, é que em Paris, começa a pintar quadros e a bordar painéis, recriando cenas dos povos andinos, suas cores e suas misérias, obras que merecem a atenção de um dos setores de divulgação temporária do Louvre. A notoriedade internacional consegue que o prefeito da zona onde vive no Chile, conceda um espaço para que construa uma tenda que ela chega a chamar faculdade/escola, onde viverá criando um palco permanente da cultura indígena através de suas canções e de seus painéis. Será a perda daquele suíço, bem mais jovem do que ela, que transformará sua vida do abandono de suas próprias aspirações, até o suicídio.
A grande interpretação de Francisca Gravilán leva ao espectador uma Violeta de densidade emocional vibrante e magnética. O filme não pretende tornar Violeta Parra uma heroína, mas deixa dela, sim, a força de uma mulher do povo que “é” sua própria terra e que sempre viveu dela e nela “como el musguito en la piedra”...



A PRIMEIRA COISA BELA


Titulo original: La prima cosa bella
Produção: Italia 2010
Direção: Paolo Virzí
Cast: Stefania Sandrelli, Valerio Mastandrea, Claudia Pandolfi, Michaela Ramazotti


Na verdade, a primeira coisa bela desse filme é justamente a acertadissima criação de uma personagem feminina: uma moça que, apesar de volúvel, questionável e até de comportamento deplorável, é crível, admirável e cativante. Jovem mãe de duas crianças, escolhida apesar de si mesma como “Miss mãe” num evento suburbano de verão, vê-se de improviso atraída pela fatuidade da fama, crê em todas as promessas recebidas, e descamba por uma vida incontrolável. Ama ternamente seus filhos, e luta incansavelmente para não perde-las, sem todavia abandonar o que seria seu mau caminho.
O que faz o milagre? É uma direção carinhosa, tão cuidadosa que em nenhum momento coloca o espectador em dúvida entre as épocas que alterna para contar a história. É a interpretação sincera e espontânea da já sessentona Stefania Sandrelli que recapitula na própria imagem todas as imagens das outras atrizes que a interpretam nas demais idades: uma mulher cativante, e estranhamente admirável contrariando todo julgamento, mantendo tanto em seu interior como à flor da pele, uma pureza inabalada. Melhor ainda: sua inocência.
Uma personagem. Uma mulher, cujo comportamento envergonhou seu filho desde a infância até a idade adulta, consegue aglutinar o carinho e a admiração de todos até no leito de morte onde, in extremis casa-se com seu último velho amante.
Dramalhão? Nada! Um relato intercalado de pequenos sorrisos, e até de algumas ótimas risadas nos diálogos dos filhos pequenos. Uma história que nos leva a repensar quantas vezes criticamos e pré-julgamos pessoas sem conhecer suas verdadeiras índoles.
Com uma mão tão feliz para reger um filme simples e ao mesmo tempo primoroso, que venha mais vezes esse Virzí, cujo currículo é salpicado de prêmios internacionais mas raramente trazido às nossas telonas.
Prazer em conhecer.

terça-feira, 19 de junho de 2012

DEUS DA CARNEFICINA - Resenha de Filme

Título original: Carnage ---
 Produção: França/Alemanha/Polônia/Espanha 2011 ---
Direção: Roman Polanski sobre peça de Yasmina Reza---
Cast: Jodie Foster, John Reilly,Kate Winslet e Christopher Waltz

Yasmina Reza, dramaturga francesa de origem iraniana, é especialista em discussões e bate-bocas. Assisti sua primeira peça “Arte” em Paris há muito anos e voltei entusiasmada pela agilidade dos diálogos, o sarcasmo das argumentações e a habilidade com que ela consegue que uma frase revele o caráter da personagem. Quando a peça foi montada em São Paulo, carreguei um grupo de amigos com entusiasmo. Pode ter sido por tradução, produção, direção, cenografia ou interpretações, não sei, mas acabamos vendo uma peça desastrosa e desastrada apesar de bons nomes em cena. Toda a sagacidade do texto havia sumido.
Quando li o nome do Polanski na adaptação para o cinema de outra peça teatral da Yasmina Reza, corri para assistir. E saí feliz.
Sou fã incondicional do Polanski desde sua “Faca na água”, tentei nunca perder um filme seu, e sempre considerei “Rosemary's Baby” sua obra menor apesar do estrondoso sucesso. Aqui em “Deus da Carneficina” existe um matrimonio definitivo entre texto e direção. Raro de acontecer. Ao entrar no cinema ainda tinha na memória a construção visual arrebatadora de seu filme anterior,  “Ghostwriter”: as nuances dos seus cinzas, o sopro daquele vento que invadia de folhas a tela inteira, as enormes paredes de concreto nu de uma casa pra lá de futurista e obras de arte cujas cores gritavam por aplausos.
Em “Carneficina” aqueles espaços a perder de vista encolheram: tudo concentrou-se em quatro paredes como manda o bom teatro. Mas o fluir das paixões, todas as paixões, as recolhidas e as vomitadas, as contidas e as gritadas, as “sorridas” e as “choradas”, invadiram cada canto da cena, voando janelas afora até atingirem em cheio as faces da plateia.
Não preciso contar detalhes, nem relatar razões para tantas digladiações.
É filme para se ver, com atenção, com tensão mesmo. Não vai ficar muito tempo em cartaz, pois o publico não gosta de ser esbofeteado.

MEDITERRÂNEO

Na Toscana meridional, entre as colinas que escalam suavemente os Apeninos, perto de uma localidade chamada Poggio alle Mura foi descoberto o maior e mais antigo fóssil de baleia encontrado na Itália. Os paleontólogos ainda festejam. O lugar, à distância de mais de trinta quilômetros do mar, nos reporta a um pensamento extraordinário: que lá, em Poggio le Mura” o fundo marinho de mais de cinco milhões de anos atrás, era o habitat natural de baleias e hoje é terreno ideal para uvas de qualidade invejável.

Andando por aquelas redondezas há pouco mais de um mês, lembrei de uma entrevista em que um jornalista eslavo - cuja nome complicadíssimo, não conseguiria lembrar, nem sob tortura,- citou o Mediterrâneo como - e espero reconstituir a frase corretamente, “um mar que não é oceano, mas um mar, pequeno mar nosso, no meio de terras”. Pelo detalhe do “pequeno mar nosso” foi que imediatamente lhe atribui, levando também em consideração a difícil grafia do seu nome, uma nacionalidade banhada pelo Adriático, braço alongado e intimista do “Mare Nostrum.”

E ele, este Mediterrâneo maravilhoso e perfumado, realmente está no meio de terras, seu espírito infiltra-se terras adentro, não importa a quem pertençam. Um mar que não é só lugar geográfico, mas lugar de alma. Aqui se encontram dezenas de povos, milhares de ilhas e milhões de seres humanos. Um mar que, para os justos, une , para os imorais separa.

O Mediterrâneo, - e o esqueleto da baleia provou - invade as terras, todas as terras. Dele emerge um sabor inconfundível de sal e vento, que sopra através dos pinheiros marítimos, infiltra-se pelas praias, pelas curvas das falésias, por botes, barquinhos, lanchas, canoas e pelas balsas que unem margens, aldeias, povoados, cidades. E leva por toda parte o perfume da menta, do orégano, alecrim, lavanda. E do manjericão.

Cada um vê e sente seu próprio Mediterrâneo, mesmo sem ver as praias, mesmo sem estar em suas margens.Eu já estava em Roma e o mar estava presente, no garrir das gaivotas em cima do Tibre, na infinidade de altos e esguios pinheiros marítimos. Como se a cidade estivesse a beira mar. Desse meu sentimento mediterrâneo, e na profundidade do meu próprio ser, voltou a emergir aquela sensação infantil do cheiro dos plátanos, dos ciprestes, dos pinheiros.

As Fontes e os Pinheiros de Roma. Respighi inebriou-se deles, os imortalizou em suítes eloquentes, levando seu perfume junto ao cristalino das fontes que, perpétuas, jorram água sobre mármores poidos a enriquecer-lhes a candura.

Nas paredes de minha mais remota memória voltam a criar-se paisagens: afrescos, lavados a chuva e briza, que ficam arquivados na mente e no paladar, como fossem vinhos saboreados ao por do sol, num imenso terraço que contempla e transpira o horizonte. Horizonte: aquele fiapinho de linha que mar e céu disputam sempre. E jamais conquistam.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

PRIMAVERAS


---margaridinhas salpicam os gramados, folhagens desabrocham viçosas, laranjeiras ainda conservam uns velhos frutos mas já se ornam de milhares de botões brancos exalando seu perfume.
É também assim que as pessoas sabem que a Primavera está chegando.
As ervas daninhas que um dia se infiltraram nas rachaduras dos velhos muros, a procura de uns grãos de terra, agora estão dando florzinhas rosadas. Aquelas ervas inúteis, desconhecidas, tem esse habito de invadirem os vãos entre pedras, surripiadamente, como os dedos de um batedor de carteira nos bolsos de sua vítima: ficam, se instalam, florescem, crescem e se coram ao sol para soltar suas pétalas enrugadas só no outono.
A estranha atmosfera inunda as avenidas, as ruas, os parques, as janelas. Aquele terraço, lá em cima no quarto andar vomita ramas e ramas de folhagens a emoldurar cachos e cachos de glicínias azuladas. É essa existência nova, renovada, quase virtual que reveste o ar como um tecido efêmero, de duas face, para vesti-lo de roupa apta ao mimetismo da nova estação.
As estações parecem não ser mais como antigamente, mas ainda fazem seu trabalho.No despertar da primavera, as gemas ainda comparecem nos ramos, as flores florecem e nos lembramos de ter um corpo ainda capaz de reconhecer os sinais do renascer.
Num rocambolesco correr, está aqui o passado.
O mês adolescente.
A dúvida entre a manga longa e a curta.
Os frutos já despontando, mas ainda estão verdes.
Os peitinhos em botão, ainda não florido.
O primeiro batom ainda claro com sabor de atrevimento.
O começo de tudo aquilo que o verão nos trará, sem grandes promessas mas com grandes esperanças.
Eu estive lá, na nova velha primavera.
O momento em que podemos dar-nos conta de que os filhos já cresceram, que os amigos envelheceram, exatamente como nos, e que de repente descobrimos como seria bom ver este Maio, esta Primavera, sempre, pela janela de nossa casa.





sexta-feira, 6 de abril de 2012

ESTOU INDO...

Estou indo. Para aquela Primavera.
Aquela das glicinias,
das cerejeira em flor,
das papoulas no meio do trigo,
das margaridinhas nos gramados.
A minha Primavera.
Aquela que já não tenho mais,
nem aqui nem lá...

Deixo beijos a todos.

terça-feira, 6 de março de 2012

REFLEXOS DE " AS CANÇÕES", Documentário de Eduardo Coutinho

Não levou que alguns segundos. Arremessar o pneu direito contra o meio fio, engatar a marcha a ré, desligar o motor.
E lá estava eu, no trecho mais íngreme da Haddock Lobo, assombrada, conturbada, de repente pequena e insignificante. Poderosa, superior mas insignificante, pequena, envergonhada. Uma dondoca de merda trancada num carro, com mil amostras de madeira, cartelas de cores, tramas e urdiduras artesanais transformadas em tecidos preciosos, exclusivos, caríssimos. Tudo ao meu alcance para decorar um apartamento novo, num país onde o dinheiro corria a rodo apesar de uma ditadura acachapante, onde operários morriam nas obras sem que ninguém notasse.
“A Construção” estava alí nos meus ouvidos, aos meus pés, socando a boca do meu estômago com seu arranjo repetitivo, angustiante, agressivo. Me vi colocada num mercado persa onde ninguém se entende, onde as mercadorias valem mais do que os seres humanos. Num circo onde tudo é estupefação, onde tudo é fácil ver, receber, divertir-se, só por um pequeno tributo na entrada, onde o extenuante suor dos artistas é camuflado no sorriso, no riso, no milagre da alegria.
Vão repetir a música, pensei, têm que repetir, têm que repetir. Fiquei alí até conseguir outra estação de rádio de onde ela, "A Construção" cresceu de novo, com sua atmosfera veemente, seus ruídos de rua, seu galope dirigido a um indefectível destino trágico.
Não era só uma canção: era roteiro, palco, cinema, pintura, arquitetura, projeção fantástica. E sinfonia.
Os refrões, verdadeiros estribilhos, repetiam-se ao mesmo tempo em que as palavras vinham sendo substituídas por outras; em que verbos vinham sendo alterados por outros, conseguindo, com isso, ampliar, enriquecer, transformar o personagem de humano para máquina, de material para etéreo, de ingenuo para divino. Da modéstia inicial, ei-lo enobrecido, mesmo no seu final de pacote bêbado.
A indiferença do transito, dos transeuntes, dos motoristas que continuavam - como eu - ignaros do fato que uma vida é mais do que uma simples construção.
“A Banda” aquela marchinha simples, um tanto sentimentalóide e que muitos anos antes eu mesma havia considerado um pecadilho do autor, de repente, agora, junto com "A Construção", adquiria um significado especial, como se fosse uma toada para acompanhar o destino final daquele ser comum, operário.
Eu provara, quase vinte anos antes, a mesma sensação de humildade perdida ao ouvir os versos premonitórios do samba “Lata d' água”. A sociedade canta mas não se conscientiza.
Obrigada, Coutinho, por oferecer-me a cadeira. Mas não me sentarei nela. Não sei cantar, e prefiro ceder meu lugar para o Chico Buarque com seu olhar azul e seu meio sorriso carnudo: a quintessencia da humanidade, cujas canções, - versos e músicas - não parecem encontrar par no cancioneiro do mundo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O RETORNO

Ao entrar no saguão do aeroporto, um deslizar suave e a porta fecha-se às suas costas. Com ela, todas as outras. Check-in rápido, sala de embarque superlotada. Nos janelões sobre um céu de chumbo, a chuva, vagarosa, continua caindo. Deve ser por isso que anunciaram o atraso de uma hora para o vôo. Lá dentro, o calor obriga Silvia a despir o casaco; até a curta suéter de algodão sobre a camisa de seda é demais; anda em círculo pelas paredes, beirando as vitrines. Jornaleiro, bombonniére, boutiques, últimos redutos para compras e souvenires. Se pelo menos achasse uma poltrona livre para descarregar suas coisas.
O pouco que tirou do corpo agora parece muito pesado para carregar. Como se, tudo de uma vez, lhe tivessem jogado em cima os lençóis esverdeados, a coberta de fustão, os fios, o oxigênio; e a televisão lá no alto, em frente à cama. Tudo a apertar-lhe os braços, a lacerar-lhe a carne, e a alma. O zunido de aviões lá fora, lhe traz de novo o barulho do rodar desconexo das macas, o assobio das chamadas, as luzinhas vermelhas a piscar. De novo a escuridão em que a mergulharam para cancelar-lhe a dor. E o remorso. Naquele escuro vazio, sua boca urrava em silêncio, seu corpo não estava mais consigo, seus braços não alcançavam o sumiço daquele ser que se ia. Havia acordado enquanto ainda corria atrás de suas entranhas que com uma mão recolhia e com a outra recolocava no ventre rasgado, agora vazio. Seu corpo todo voltou a doer.
De novo fazia calor, muito calor.
Ouve chamar seu vôo e lá está Silvia, em direção à fila. Voltar para casa. A viagem havia sido uma boa solução. Marcos nunca saberia, mas estaria à sua chegada com o sorriso e a segurança de sempre, com os mais ardorosos detalhes do projeto que, em breve, os levaria a outro continente para a gravação de sua nova sinfonia no mais prestigioso selo do planeta.
Na porta do embarque, a boneca no colo de uma menina ao seu lado, olha fixamente para Silvia. No rostinho de plástico, o sorriso é pintado como para não sair do lugar. Os olhos também: sem nuances de luz, fixos. Como aqueles da sua única boneca, quando ela lhes havia fincado um lápis para ver o que os fazia mexer, abrir e fechar. Não devia tê-la abandonado entre os escombros da casa onde nunca mais voltaria a morar. Deveria tê-la resgatado, lá mesmo, depois do desmoronamento, semi-nua, quase morta com os braços esmagados debaixo das pedras ensanguentadas que escondiam outros corpos, pernas e rostos desconhecidos.
Chovia naquele dia também: a mesma chuva branda, chuva de enterros. Como os de hoje, na desolação de uma viagem, agora, sem volta.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

UANÁ- UM CURUMIM ENTRE MUITAS LENDAS

RESENHA DE LIVRO INFANTO-JUVENIL

Autor: Alexandra Pericão
Ilustrações: Claudia Cascarelli
Editora do Brasil 2011


O encontro de personagens do folclore brasileiro - abrangendo o País inteiro de norte a sul – num livro dedicado à pré-adolescência, pode não ser uma grande novidade, mas nesse caso, o primeiro grande feito é que nossos mitos foram trazidos ao momento atual. Há até a utilização, num momento à procura alguém, em que a chamada é feita em ponto-com! E não são só personagens de fábulas, mas eles conhecem e interagem com mitos de outros países, mesmo de outros continentes, de outras culturas. Bem presente em “Uaná” - a figura principal da história - o atualíssimo Harry Potter e suas aventuras, sem contar que até Pinocchio, (apesar de não mencionar-se seu nome) aparece espreitando nas entre-linhas.
O livro transita entre a aventura e o ensinamento sem que esse último seja nem imposto nem impositivo, mas alcança os leitores jovens por uma dedução SEMPRE facilitada e nunca esplícita. Entram aí ensinamentos sobre o respeito à natureza, ao próximo, à amizade, à benevolência, aos defeitos físicos, à transigência sem agressões. Há um momento delicadissimo em que reconhecem-se ensinamentos aceitos por casualidade, mas antes negligenciados por terem sido ministrados pelos pais. Há ensinamentos para a sobrevivência quando longe do próprio habitat; para a apreciação dos costumes e comportamentos de outras tribos; para a defesa dos próprios direitos e dos do próximo .
Tudo isso em páginas de beiras ornamentadas por suavíssimos desenhos quase tribais - um decorrente do outro, um transformando-se em novo, um simplificando-se e quase sumindo; páginas salpicadas de desenhos cujos traços e cores nos remetem aos traços e cores de um inteiro continente, onde a reminiscência de culturas andinas funde-se com os hábitos que no fundo no fundo mal conhecemos a não ser por aquilo que nos foi transmitido verbalmente e tradicionalmente e que aceitamos desde sempre como verdadeiros em nosso imaginário.
Um encarte estimula o educador - ou um familiar - a fazer com que o jovem leitor, mediante respostas simples e alegres, se pronuncie sobre assuntos que são do seu dia-a-dia familiar, social e escolar. Inteligentemente elaboradas e acompanhadas de ilustrações simplificadas mas bem atrativas, as três páginas-tarefa, serão extremamente elucidantes para acompanhar a evolução “literária” e “absortiva” do jovem leitor, visto que até curtas menções de colonizações vizinhas enriquecem os momentos históricos do Pais.
Edificante ainda a sugestão de uma eventual continuação do livro não somente pelo autor mas pela instigante idéia de que ela possa vir do próprio leitor.
Eis aí uma Escritora profundamente dedicada e uma Editora de grande visão.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A GUERRA ESTÁ DECLARADA - Resenha

Título original: La Guerre Est Déclarée
França 2011
Diretor: Valérie Donzelli

Um filme realista, minimalista, sincero. E poético.

Surpreendente e, creio, inédita sua façanha: a história real é levada às telas pela diretora e pelo roteirista que a viveram juntos, e de que também interpretam as personagens.
Valérie Donzelli e Jérémie Elkaïm se depararam na vida real com uma guerra que, ao ser declarada, teve que ser ganha a cada instante, a cada dia, a cada noite, a cada semana, a cada mês, a cada ano.
A metáfora do título é integrada ao diálogo num momento em que, por mais difícil que possa ter sido, foi repensada e enfrentada por um caminho de humor que, começando no amargo mais profundo, transforma-se em esperança e em quase serenidade.
Pieguice: em nenhum momento. É o ritmo da filmagem que, eliminando a maior parte dos detalhes, leva à ofegância do espectador que participa da ansiedade, da preocupação, da esperança, sem jamais perder os momentos poéticos. É bem verdade que o fundo musical ajuda o público a preparar-se para uma abertura emocional que o distancia da tragédia e o eleva à admiração técnica que lhe é servida numa bandeja de pura capacidade pictórica simplificada.
Não vai diminuir o interesse do leitor saber desde já que trata-se de um casal destinado a acompanhar, lutar e desgastar-se no combate contra uma gravíssima doença de seu filho. O importante é digerir sem lágrimas esse combate, intercalado de pequeníssimos toques, com uma indulgência super bem medida, em que a vida é vivida, deve ser vivida e deve continuar a ser vivida, pois é dessa obstinação que surge a força da sobrevivência.
A simplicidade com que os pais - a revelia dos médicos, e antes da cirurgia - levam o menino para ver o mar pela primeira vez, nos traz uma comunhão, melhor, uma cumplicidade quase infantil dos dois adultos. O mar invernal, revolto e batido contra as falésias de Marselha enfatiza a ousadia, e é nela que se concentra a determinação da fragilidade já descartada.
Mais uma vez a imagem do mar volta na cena final do filme. Desde os primórdios do cinema realista francês, o mar tem sido usado como a imagem reveladora da libertação. Foi assim no “Os incompreendidos” de Trouffaut (não a toa ele iniciou-se ao lado de Rossellini e admirava Fellini que também usou o estratagema em seu “O Sheik branco”); foi assim no “O demônio das onze horas” de Goddard e, em clara homenagem aos mestres anteriores, assim foi no “Abril despedaçado!” de Walter Salles, que coloca o rapaz perante uma bifurcação escolhendo o caminho do mar.
Valérie Donzelli termina colocando seus personagens numa praia agora mais tranquila apesar de ainda não ensolarada: o armistício promissor numa guerra bem enfrentada, onde o título desse filme imperdível reaparece na sua última imagem sem ser pronunciado e justifica plenamente sua escolha.