domingo, 19 de dezembro de 2010

A MORTE DO GOURMET

Autor : Muriel Barbery
Título original: Une Gourmandise*
Editora: Companhia das Letras

* Uma iguaria

O livro de Muriel Barbery é exatamente isso: uma "gourmandise" literária!

Crítico gastronômico, temido, aclamado, bajulado e odiado, o Gourmet está morrendo de tanto experimentar, analisar, saborear, criticar, elogiar e...comer, comer, comer os pratos da mais alta cozinha francesa e internacional. Entretanto agora, no leito de morte, tenta obliterar os últimos sabores refinados, em busca do seu paladar original, juvenil, virgem.
Em muitos capítulos ele nos fala dos devaneios, das lembranças, da gama de sensações com uma linguagem máscula, competente, veemente: delicia-se nos aromas, esconde ansiedades e camufla arrependimentos com alguma amargura, algum sarcasmo mas muitos, muitos, muitos sabores.
Logo na página 15 nos deparamos com 14 linhas em que ele parece condensar de uma vez todas as experiências com os ingredientes novos da cozinha asiática, e com outros, para muitos inusitados, para sermos depois brindados nas páginas 34, 35 e 36 com uma verdadeira ode à sardinha. Os relatos que ele faz daquelas sensações tem sabor, aroma e salivação. Em todo o livro os adjetivos que ele encontra para a descrição dos paladares experimentados e relembrados, tem uma coerência específica não somente com cada prato, mas também com cada ingrediente.
Muitas coisas inesperadas continuam aparecendo nessa autora revelação, jovem, surpreendente e eclética: Barbery se investe de muitos autores ao escrever esse livro singular. Ela alterna os capítulos de "autoria" do protagonista, com os de outras pessoas do seu entourage, como fossem depoimentos individuais, tanto que são todos escritos em primeira pessoa. Barbery tem a capacidade de atribuir àquelas pessoas voz própria como se fossem realmente escritos por elas: a autora some em favor de outros autores. Um estilo peculiar a cada personagem - a mulher, a filha, o médico, a empregada, os "chefs", os amigos...
O Gourmet atravessa sua vida, fase por fase, sabor por sabor em busca "daquele". Há um capítulo especial onde retoma as afinidades gastronômica com o cachorro Rhett, em que o "escritor" parece estar construindo uma ante-sala do sabor final que está procurando como seu último desejo; algo tão simples, tão execrado em outras épocas , tão longe da premiada cozinha de um Leclerc, tão democraticamente banal, inconfessavelmente vergonhoso...
Se Barbery nos surpreendeu no seu outro livro ("A elegância do ouriço") ao subverter o "lugar comum" de sua personagem principal, em "Gourmandise" ela nos garante grandes iguarias futuras.
Que a Editora fique de olho para nos servir em baixelas de prata as próximas fornadas.

sábado, 4 de dezembro de 2010

UM ANO NOVO VEM AÍ........


Madeira, ferro batido, flores.
E o silêncio.
Digno de um pátio andalúz.
Mas é só um recanto romântico
escondido numa cidade caótica como São Paulo.
Saiam,
Caminhem,
Descubram...
E tenham todos um ano feliz!

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

RUBENS SABOYA, escultor. Velho amigo



Escultor de deuses e heróis. Bronzes imponentes cujo peso do metal é menor do que a força de suas formas.
Amigo antigo, é sabedor da admiração que lhe tenho. E não só pela qualidade e importância de suas obras, mas principalmente pelo intrínseco que são os sentimentos dele que elas escondem: sensibilidade, contemplação, ascetismo.
Aqui a prova nas poucas linhas que me mandou por e-mail outro dia, assim como vieram:
Oi, Bruna! Você me deixa feliz quando nos falamos. Bom resumo, né? Sou meio troglodita com o pc e web; pra complicar minha conexão anda como um jabutí. Mas vou me virando. Mandei procê um arquivo, igual ao que tem a Rosana. Estou decidido a voltar pro Rio, a despeito daquele calor africano. Ainda tenho dúvidas do que fazer com meu sitio. O fato é que estou apaixonado pelo jardim, e jardim significa também pessegueiro cheio de frutos, filhote de passarinho cantando num ninho em cima da minha janela, pássaros (muitos, de todo tipo, coisa de louco), sapos, borboletas, pirilampos, céu estrelado, sol entrando na cama de manhã com direito a arco iris às trés e meia da tarde. Também o som que faz o bambuzal quando passa o vento: uma criatura de fazer inveja de tão bela e sonora. E o rumor do rio espremido entre as pedras...
Não vou a São Paulo há dez anos, um absurdo. Quando for, iremos nos encontrar e tomar um café num lugar bacana com a Rosana. Tá legal?
Vou mandar também um arquivo com vinte fotos via web prati. Esse "prati", que saiu sozinho por vontade própria, parece Tupy, né? Me avise se receber, pois tenho cá minhas dúvidas...
Muitas saudades, beijos miiiiiiiiiiiiil !
O que eu posso responder a tamanha maravilha? algo simples e talvés lacônico:
no pc e web eu também sou troglodita, mas consegui tudo o que você mandou e tudo o que eu queria do seu curriculum e de seu espirito. O ponto alto do seu texto, além da poética, é a palavra "rumor", que ninguém usa mais e sempre substitue por aquele vazio "barulho" por que ninguém se dá conta de quão altissonante e onomatopáico o "rumor" é!
Até nosso proximo café por aqui. Beijos Bruna.
PS. Quis publicar também uma das fotos do seu sítio no fim de todo esse texto e não consegui!
Vc viu? não é só vc ruim de computação...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

ENFIM, VIDA

Para Cecilia: a serenidade em pessoa...


--Gosto muito de você, Martha, como uma irmã...
--Então, André, por favor, não me dê mais carona quando me vê no ponto do ônibus; não me chame mais para consultar textos de arquitetura; não queira me levar para casa na saída da faculdade...nunca poderia ser sua irmã...

Pé no chão, engolindo em seco. Eu sabia da Júlia, a namorada já de muito tempo do André. Até considerava-me melhor que ela em muitas coisas, mas não tinha por que agredir-me, anular-me, esperar mais.
Havia aprendido com André a amar o mar e a vencer-lhe o medo; havia descoberto nele um homem aplicado, eficiente (...quem consegue trocar linda e limpamente um pneu em poucos minutos e ainda com um sorriso radioso?...); atencioso, sociável, generoso (...distribuir aos colegas de turma, com carinhoso tom de brincadeira, uns ovinhos despretenciosos junto com um abraço e votos de Boa Páscoa...); e quem esbanja na praia tamanho corpaço com tanta simplicidade e modéstica como fosse um atleta invisível?...
Quantas vezes havia-me arrependido de ter cortado o contato para não sofrer. Quantas vezes havia esperado que ele se reaproximasse dando-me uma chance de conquistá-lo... Muitos meses e um sonho a ponto de ser jogado numa gaveta junto com as bijuterias passadas de moda.
Bastou um telefonema.
Aí é que a memória esconde-se nas águas mornas e placidas de um lago tão azul, tão sempre iluminado, que o arco-iris passou a ser paisagem permanente.
Parece uma história tão simples, tão corriqueira. O sonho dourado de todo sonho de amor: conseguir e conquistar para sempre aquele que havíamos considerado inatingível, perdido.

E agora, a caminho de nossa casa de praia, parados na estrada, com meu menorzinho no colo, dou um jeito de acariciar, no banco traseiro, a cabecinha morena de Tomás e, na reconstrução de uma cena longinqua mas ainda viva e vibrante, lhe digo:
"Vai lá Tomasinho, vai ver como um homem bacana como o papai consegue trocar um pneu sorrindo e quase sem sujar as mãos..."
Ele vai e eu fico: a outra metade da família confiante.
À noite estaremos todos em casa, só com o barulho do mar e o chiado da espuma contra o casco do barquinho.
Amanhã é dia de catar conchas, de fazer castelos de areia, de aprender a remar.
De viver.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

PARA FLAVIA........

A NOVA NETINHA DA SANDRA, A QUEM DEDICO ESTE CONTO DE CRIANÇAS, QUE UM DIA A VOVÓ LERÁ PARA ELA E ACABARÁ FALANDO DE MIM....

"O narizinho de Clarinha"
Clarinha está na frente da televisão: já fez a lição de casa e já arrumou os brinquedos no seu quarto. Acaricia o pelo encaracolado de Bilíu, o poodle cor de pêssego, acocorado no seu colo, focinho para cima, olhando para ela.
Clarinha começa a correr os canáis procurando o desenho animado que vê todos os dias naquele horário. Seis anos de pura educação, obediência e tranquilidade.
--"Clarinha, a gente não limpa o nariz com o dedo!"
A mãe entra e sai da sala, arrumando coisas, regando plantas, sempre atarefada.
--"Clarinha tira o dedo do nariz!"
No vídeo, a princesa colhe flores.
--"Clarinha, pelo amor de Deus, você sabe que isto não se faz. Será possível que todos os dias devo repetir dezenas de vezes tira o dedo do nariz? Pare de tirar melecas!"
E Clarinha, enquanto a mãe sai da sala:
--"Mas mãe, Bilíu adora..."

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

"MIOSÓTIS", Tom


"MIOSÓTIS...

Na penumbra do bar, só a chama da vela. Palavras ao vento, átonas. Um leve deslizar de seus dedos debaixo dos meus e os meus começando a cobrir os dela. A surpresa do contato hermético do dorso de suas mãos na palma das minhas, a súbita irrefreável necessidade de uma aderência total, de peles e pelos, de contornos e de rugas. E de cheiros.
Algo tão forte que não pôde ser negligenciado, nem perdido, nem adiado.
No semitom de sua voz, um curto bemol: meu nome "Tom".
Seu aroma tem encharcado meus dias, por meses. Ana, meu braço direito, minha interprete, meu apoio seguro na lida com jovens estagiários cujas ansiedades profissionais puseram frequentemente em xeque meu equilibrio didático.
Agora minha missão acabou. Volto para casa...
A poltrona do avião, o cinto de segurança, meu próximo destino: o frio de Chicago.
Quero esquecer tudo mas não posso. Foi forte demais, definitivo demais.
E tarde demais.
Hoje de manhã a despedida. O vapor do chuveiro a envolver-nos, a exalar de novo o perfume que já era a própria Ana, e que agora tinha sabor.
"O que é?"
E sua voz abafada no escorrer do meu peito: "Wind".
A sacola do freeshop me queima as mãos: a miniatura vermelha da Ferrari para Rick, a bonequinha em traje típico para Lilly. Mas a caixa dourada do Wind foi um erro.
Ter comprado o perfume para Jenifer foi um erro. Sinto-me aviltado, desprezível, envergonhado...o que faço com isso...
Sempre amei Jenifer, sua flexibilidade de atleta, seus orgasmos sussurrados para que não passassem das paredes, sua tranquilidade, seu rastro de alfazema que incorpora o cheiro dos mil abraços dos meus filhos, das gavetas arrumadas, dos lençois frescos de estampas campestres. E aquele seu "Tom" com um O infinito em dois tons, como se me chamasse sempre de longe...Sou um estúpido, um covarde...Não posso levar o Wind para ela...
O que faço com isso...
Vou largá-lo no avião, esquecido de propósito. Ou talvez o dê à aeromoça que me serve o drinque. Mostro-lhe o papelzinho enrolado que Ana deslizou no bolso de minha camisa no último abraço.
"Conhece esta palavra? morei aqui só poucos meses..."
Um sorriso quase maroto, mas a voz inalterada:
"Miosótis? é uma florzinha azul pequenina, sem cheiro, vocês a chamam forget-me-not..."
Foi como sorver minha última esperança de esquecer.
Aqui, agora, perdido entre duas ausências.

...FADED AWAY", Ana

Ontem, alguém: "Ana e seu sorriso?"
Já passei pela fúria titânica de Medéia.
Já me investi em Parcas a re-fiar e re-tecer sua vida e a minha.
Em Penélope rebordei meus sonhos, aceitando a espera.
As linhas estão perdendo a cor.
Já faz muito tempo.
Tempo demais.

Até já ganhei uma promoção importante pelo tanto que aprendi aqui com você...

E você, Tom, me ligando ainda com seu desespero da ausência.
Parece fazer questão de me trazer sua voz, e com ela nosso suor.
Mas nunca me diz "venha".
E nunca me diz "venho".
A espera - e o esperar - mudam as pessoas.
Se eu fosse, talvez você não fosse mais o mesmo.
Se você viesse, talvez não me reconhecesse.
A ansiedade da espera acaba com a realidade de projetos.
E o tempo acaba com os projetos.
Tenho em você um grande amor vivido.
Não vou esquecer.
Ainda tenho porquê viver.
E quando Athropos cortar meu fio, terei de volta o sonho.
Intácto.

domingo, 12 de setembro de 2010

ALMA DE APETRECHO.....

UM CONTO DE ALGUMA FORMA INSPIRADO NO "TONHA'"
DE MARCELINO FREIRE


Nunca cheguei a saber como nasci, como e quem me fez. Só me dei conta que eu existia quando vi, ao meu lado, numa banca de feira, coisas parecidas comigo. Parecidas sim, mas não iguais. Tinham cabeças arredondadas, maiores ou menores, mas fundas e com cabos bem mais longos do que o meu. Só soube do meu uso depois que alguém me levou para casa, carregando-me em riste como um troféu. Agora eu sei quem sou e estou contente.
Estou aprendendo a distinguir os sabores, os cheiros e o roteiro de minhas intervenções nas panelas desta tal Tônha a quem tanto se dirige a mulher sem nome que me comprou na feira.
Sem nome ou muitos nomes? A criançada vem correndo pela cozinha roubando guloseimas e a chamam mãe, mamãe, manhêee. O único homem que raramente passa por aqui diz "querida" e ela atende. Mas um nome ela deve ter: quando fala com Antônia, Antônia responde sempre "simsenhora"; às vezes diz "Dona..." mas depois do Dona, fala alguma coisa incompreensível como se a própria Antônia não soubesse o que é, pois enrola a lingua e só pronuncia umas últimas letras,....rela...mela...gela, sei lá.
É aquela senhora-querida-mãe-manhêe que passa pela grande vasilha de louça onde eu moro junto com espumadeiras, conchas e peneiras; me tira de lá, me recoloca, cabo adentro, cabeça para fora e reclama:
"Tônha, essa não é uma colher de pau qualquer, é uma espátula de madeira!"
"Simsenhora"
"Tônha, já disse que se você coloca minha espátula com a cabeça para dentro da vasilha, ela nunca vai secar direito e acaba mofando justo na parte que entra na minha comida!"
"Simsenhora - e bufa baixinho- chata".
Mas eu gosto mesmo quando essa Dona-não-sei-o-que me usa para aquele mingau especial que só ela faz.
Me pega com suas mãos leves: um jeito muito especial de me segurar com polegar e indicador na metade do meu cabo, unhas cravadas na palma da mão e os outros três dedos bem enrolado apertadinhos como fossem um tambor, que ele usa para, de vez em quando, dar um impulso mais enérgico ao meu rodopiar dentro da caçarola. E lá vou eu raspando o fundo com minha parte final, reta e mais fina do que o resto daquele retângulo lisinho e chado que forma minha cabeça. É muito quente esse mingau, mas pelo menos não tão irritante quanto o frigir dos refogados da Tônha. As laterais de minhas bordas catam e empurram para o centro o pouco de mingau que começa a grudar nas paredes: sempre no mesmo sentido, da direita para a esquerda até o centro, da direita para a esquerda até o centro e vai, e vai. Só de vez em quando ela inverte o meu caminho, mas só uma vez: é quando as bolhas do mingau crescem, se rompem e, bufando soltam o vapor "pppfffpppfff"..Eu não devo deixar que isso aconteça, e é por isso que me invertem o caminho. Se o vapor sai, o mingau engrossa antes da farinha estar cozida.
É o meu chchctttchchcttt no fundo e chchtttchchttt nas paredes, que achatam as bolhas e as anulam. Eu não consigo ver o rosto daquela senhora-manhêe-querida, mas sei que quando isso acontece ela está feliz.
Outra coisa que me agrada é que nesse mingau não tem sabores nem temperos diferentes: eles vão só naquilo que o meu mingau acompanhará. Assim me sinto mais limpa, inclusive por que a senhora-querida-manhêee, faz questão de me lavar, em muita água corrente: com poquíssimo detergente e uma escovinha macia, ela retira todo o grude e rapidamente esfrega minhas paredes e meus contornos com seus dedos delicados. É quase uma caricia.
Ah, sim, muitas vezes antes de abrir a torneira ela me lambe e estala a língua.
Um dia ela chegou a dizer: "É assim que se faz uma boa polenta".
E tenho certeza que ela estava sorrindo.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

JÚLIO CORTÁZAR E SEU CONTO "AS LINHAS DA MÃO"

É a morte voluntária e sua corriqueira grande insignificância. Uma retrospectiva em que o autor percorre o caminho da vida de um desconhecido, caminho esse que parece ser só um trajeto físico e urbano. Ao mencionar um quadro de Boucher - pintor do século XVI de cenas predominantemente bucólicas - Cortázar confere certa serenidade à decisão final daquele ser anônimo que nos parece sorrir lembrando a mulher amada reclinada num sofá; ou sobressaltado pelo lampejar de raios; ou amargurado pela reminiscência das lindas pernas de uma loira que ele poderia ter abordado mas não o fez.
A posição do autor é isenta, impessoal: respeita a decisão de quem escolheu sair da vida tão totalmente e anonimamente que perpetra o suicídio num navio, fora do núcleo onde viveu. E não importa quem ele fosse: marinheiro, ou amante rejeitado, ou exilado repudiado pelo próprio país. Nem importa a razão de sua decisão: qualquer que ela tenha sido, carta de abandono, aviso de extradição ou vaticínio de cartomante. É assim que o suicida, - que já ouve o apito da partida do navio e que já pode prever a gritaria das gaivotas na espuma da popa - tem certeza que só será achado no alto mar, aquele mar que será sua sepultura. O dito e o não-dito: amarga poesia.
Na metáfora usada pela linha da vida que percorre casas e ruas, o autor apresenta como argumento complementar, a impermeabilidade de uma cidade que, apesar da tragedia em curso, continuará a ser a mesma cidade. Perderá um ser mas, sem emoção, continuará a renovar-se nos quadros das paredes, nas costas de uma mulher, nos tetos cobertos de antenas e para-raios, no trânsito das ruas, na má vontade dos conferentes alfandegários, nos navios chegando e noutros partindo levando seus floridos turistas. E, quem sabe...talvez mais um suicida a bordo.
Júlio Cortázar, considerado pela Enciclopédia Larousse (edição 1977) um escritor que mescla realismo social e político à inspiração fantástica, foi definido, por seu amigo, o cineasta Antonioni, "un comunista all'acqua di rose" (comunista floreado idealista) por seu engajamento político sem todavia ter-se envolvido em luta armada, mas contando unicamente com a força de suas palavras. Apesar de sua tendência ao fantástico, ele frequentemente - como fez agora com Boucher - cita em seus contos, pintores das mais diversas escolas (Tiziano, Holbein, Magritte), comprovando assim estar confortável como pensador de qualquer tendência, do bucólico ao renascentista e do retratismo clássico ao mais ousado surrealismo.
No conto "As linhas da mão", revela-se ao leitor como um autor essencialmente "concretista", de uma concisão muito peculiar e, ao mesmo tempo, com um sentido muito preciso de uma realidade viva sim, mas oculta. Por pesquisa, por instinto ou por sofrida experiência, Cortázar tem um profundo conhecimento do "pathos" humano, tanto de personagens quanto de leitores. A definição de "pathos" não é aqui somente a "paixão" humana, mas a inclusão intencional, e com alguma enfase, das confusões da alma e suas manifestações mais obscuras. Só que Cortázar não as descereve mas as deixa implícitas nas ações de seus personagens. Em seus contos eles são anônimos, sem nacionalidades, sem identidade, frequentemente sem nome. Tanto faz que eles se chamem João, estejam em Roma ou Paris, sejam argentinos, belgas ou escandinavos: eles se comportam como indivíduos sem bagagem histórica e não são afeitos a obediências ancestrais. São indivíduos na mais completa asserção da palavra: seres únicos naquele preciso momento, naquela precisa situação. E sem julgamento.
Cortázar sabe destilar um sarcasmo quase jocoso, como fez no conto "Sábio com buraco na memória": tão forte quanto "As linhas da mão", aquele texto é ainda mais conciso, e torna-se sarcástico e folclórico, misturando casos históricos, citações populares, pequenos provérbios e frases feitas. Talvez justamente um dos textos mais representativos das qualidades que fizeram de Cortázar um dos escritores contemporâneos mais universais entre os autores latino-americanos.
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terça-feira, 24 de agosto de 2010

CLARICE LISPECTOR E O SEU "POR ENQUANTO"

No conto "Por Enquanto" Clarice Lispector trata da solidão. E não só a de viver só, mas também a das horas que parecem não passar entre compromissos e afazeres, entre hábitos individuais e sociais, entre uma vontade e outra. O problema é que aqueles "por enquanto" são "entre-atos" que nos obrigam a achar o que fazer, onde colocar as mãos, onde sentar; enquanto esperamos o momento destinado a outras coisas, eles se transformam no perigo de sentir-nos não mais sozinhos, mas inúteis. E é aí que recorremos a coisas sem importância, como comer fora de hora sem necessidade e sem fome, só para tentar achar alguém ao nosso redor, nem que seja a cozinheira.
Os "por enquanto", os "entre-atos" se transformam mais uma vez: em "para que". E os "para que" de Clarice são perigosos demais pois podem levar a respostas que não gostariamos de saber dar. Então ela, corajosamente, esforça-se para substituir os "para que" com os "por enquanto" de antes. O leitor pergunta-se: para que marcou uma visita para as oito horas? Arrependeu-se de te-la aceito? E quem será? E para que aquela visita? Ou a programou somente para que o dia das mães não terminasse com o almoço com o filho? Um filho que tem tão pouco volume na história, que, aguardando a hora de sair de casa para almoçar com a mãe, preenche o tempo indo fazer pipí. Esse filho que não mereceu nenhuma descrição outra que a de, obedientemente, ter deixado de levar presentes. Mas quem é ele, como é? Não sabemos.
Entretanto Clarice passa detalhes do almoço: a carne, o vinho. E mais tarde nos da uma comovedora descrição da cozinheira: seu peso cheio de receitas e de sentimentos conflitantes, sua onipresença, seu rosto liso. Só estes detalhes são quase uma carícia. É ela a "não-solidão" de Clarice. É ela quem contribui a dissipar os seus "por enquanto", os "entre-atos", os "para que".
O argumento complementar é a recusa implícita de admitir que aqueles lapsos de tempo podem acabar sendo tão grandes, tão frequentes e tão contínuos que arriscam de transformar-se em definitivas acomodações, em vácuos rotineiros, em assustadores "para sempre" no aguardo da ação final, passiva mas indefectível, que é a morte.
É esse traço que reencontramos, desta vez bem assumido, no final de "A hora da estrela": Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Eu também?
O estilo do conto "Por enquanto", - seus saltos repentinos de um argumento para outro, as idas e voltas, os interlúdios entre escrever para esperar, comer para esperar, trocar de roupa, ver televisão, tudo para esperar - parece leve, casual, só porquê é o dia-a-dia. Mas só parece. Ele é intencionalmente trabalhado para que suas frases curtas obriguem o leitor a pausas mais frequentes, enfatizando ainda mais a lentidão do passar do tempo, aumentando a angustia do relógio.
Tudo isto distancia o incauto do estilo ofegante que a autora imprimiu à sua anterior "Água viva", onde ela nos atropela com um mar de palavras, adjetivos, e ansiedades: era o desespero da falta de inspiração de um artista. "Agua viva" foi o ante-parto da inspiração criativa de uma obra. Como numa medusa - tentacular mas translúcida -, dá para sentir as contrações quase vaginais de suas bainhas que impulsionam o animalzinho mar acima, em direção à luz, à claridade interior, esperando o surgir da idéia e sua realização. Confirmação e contraste: a inexistência temporária da criatividade artística, com a quase invisibilidade do celenterado.
Mais contraste ainda é a Clarice de "A hora da estrela", pois numa tentativa de eximir-se da autoria do personagem Macabéa, ela inventa um narrador. Ato de modéstia, pois aquele personagem -a autora sabe - é roubado à realidade de mulheres patéticas e temerárias que se aventuram pelas metrópoles e são engolidas por elas.
Esse contraste, entretanto, cai novamente nas últimas linhas daquela pequena obra prima na qual Clarice coloca, na boca do autor fictício, não somente o "me lembrei que a gente morre", mas - como uma reflexão tardia - um daqueles mesmos "por enquanto" tão seus:
"...por enquanto é tempo de morangos"
É a caleidoscópica Clarice, reconhecível ou não. E, quando irreconhecível, será sempre uma grata surpresa redescobri-la.
Encaixa-se perfeitamente no conto "Por enquanto", uma dica de Cortázar, citada na contracapa do livro "Histórias de Cronópios e de Famas":
"Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio,
estão dando um pequeno inferno enfeitado.
Uma corrente de rosas
Um calabouço de ar"

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

SOBRE LIVROS E LEITURAS

Já não me importo de ser criticada por não guardar livros. Considero que ler bem uma boa leitura é como tomar um remédio indispensável e, na maioria das vezes de gosto agradável. O organismo o absorbe e tira todo o proveito dele para sempre. Depois disso já não terá importância se a senhora Bovary se chamava Emma ou se o anti-heroi de Dostojewsky foi Piotr ou Istvan, visto que só me lembro do sobrenome Raskolnikov. Em setenta e seis anos de vida tomei muito remédio eficaz - a prova é que ainda estou viva - e não preciso guardar as embalagens. Mas tenho alguns livros na minha estante sim, muito especiais por alguma razão que frequentemente não lembro.
Tenho, por exemplo, livros escritos ou dados por colegas e amigos:
-"Um traço, um ponto, um poema, um conto" da minha querida Sandra Schamas. Uma confissão corajosa e bem humorada tão cuidadosamente elaborada que prosas e poemas se cruzam quase que dançando entre desenhos também de sua autoria.
-"Poemas errados, dias tranquilos" do André Al.Braga que pouco aparece nos cursos mas cujos escritos são sempre reveladores.
"Mosaico" - uma coletânea poética onde há um poema imperdível (Alfarrábios), do pouco assíduo mas surpreendente colega Luiz Antônio de Britto, poema esse que - vejam só - fala de livros.
-"O cavaleiro inexistente" do Italo Calvino, presente inesperado e comovedor do colega Benedito de Oliveira Santos Jr., excelente escritor cujos textos ainda mistos de filosofia e de abstracionismo às vezes me cansam, ma sempre excitam minhas meninges. E é um livro tão importante para mim, visto que trata das aventuras e conjeturas de cavaleiros que lidam com alguém fechado numa armadura, na realidade, vazia! Metáfora desse invólucro em que escondemos nosso verdadeiro ser. E que tem tudo a ver com minha convicção antiga - que Bené sempre soube e que está aí mesmo ao lado, em letras verdinhas, no "quem sou eu"...- de que nós somos muito mais o que os outros acham que somos, do que aquilo que pensamos ser...
E tenho outros livros de que não abro mão:
-"Mistero Buffo" - Dario Fó (Nobel 97), ensaio definitivo sobre as origens do teatro popular de rua, desde quando foi estimulado pela Igreja Católica para que o povo aceitasse os dogmas sem questioná-los, até quando, pela mesma Igreja foi perseguido e excomungado, e até os tempos modernos em defesa e divulgação de idealismos sob forma de cultura.
-"Centúria, Cem pequenos romances-rio" de Giorgio Manganelli, uma imperdível coletânea de perfis humanos revelados com a sutileza de um grande psicólogo.
-"Homens e ratos" - uma saga de bóias-fria em que Steinbeck nos leva a compreender as mentes perturbadas, além de transformar um golpe de misericórdia em ato de amor.
-"O velho e o mar" - a pequena jóia do Hemingway onde a vitória transcende toda a dor da perda.
É assim que todos os livros vem, batem um papo com os definitivos, e vão para outras estantes. Também leio muitos emprestados que devolvo com o mesmo carinho e a mesma devoção com que os leio.
Ah! ia esquecendo: durante muitos anos serviu-me de estímulo e desafio o "Ulysses" do James Joyce, numa velha edição de 1946, gasta e vinda de um sebo da Inglaterra. Desisti de lê-lo e já está do outro lado da minha estante, junto dos livros de arte. Mas seus "Contos Dublinenses", já se foram há muito tempo: se bem me lembro para a Wendy, uma simpática arquiteta que foi minha colega de curso no MAM, nos idos de 2004. Ela fazia o possível para não dizer que seu nome verdadeiro era o super-irlandês "Gwendolyn" da heroina do Rei Artú!
Olá Wendy, desculpe ter revelado seu segredo! Você por acaso segue meu blog? Apareça! Inté...

LEITE DERRAMADO

Resenha do livro de Chico Buarque, editora Companhia das Letras, 2009

Finalmente um romance em que Buarque deixa de escrever apenas o relato de uma história como aconteceu em seus livros anteriores, para mim quase irrelevantes.
Em "Leite Derramado" nos deparamos com lembranças e raciocínios magistralmente implodidos na mente de um velho senhor já a caminho da esclerose e da senilidade. O protagonista reconstrói em flashes, nem sempre cronológicos, não somente a própria vida, mas a dos antepassados, desde a opulência das grandes fazendas, até a mais completa decadência moral e financeira do presente. Entretanto a saga daquela família nos chega perfeitamente compreensível e clara pelo cuidado com que o autor a enquadra em cada episódio, com a simplicidade impessoal de quem já perdeu a paixão.
De grande importância é o momento em que o personagem vê pela primeira vez Matilde, o grande amor de sua vida. A imagem, que pontua toda a narrativa, é repetida em muitos capítulos como fosse um refrão: refrão recorrente a cada instante em que o velho parece estar escolhendo as recordações melhores para encaminhar-se ao inapelável final. É nesse final que Buarque coloca o personagem, já narrador que é de toda a história, como narrador também da própria morte. E isso não é para qualquer um.
Em nenhum momento da leitura do texto, nos é impôsto o ritmo angustiante de uma "Construção" nem a monotonia rotineira do "Quotidiano". Buarque parece ter reencontrado sua linguagem poética com a releitura do seu poder de compositor. Afinal as boas canções não deixam de ser grandes monólogos, melhor, solilóquios musicados, e eis aí o Chico de volta como exímio letrista.
E se é verdade que a poética de Chico Buarque transcende a poesia romântica dos Vinícius e dos Jobins, nesse livro ele a entrega ao leitor com condescendência, deixando que cada um arpeje os próprios acordes conforme o ponto em que se encontra sua trajetória de vida.
Daremos aqui ao Chico Buarque de Hollanda as boas vindas ao rol dos Escritores.

PS- Fui investigada por alguns que me cobraram o que, afinal, esse livro significou para mim. Basicamente me indicou o caminho para reavaliar minha opinião sobre o Chico romancista.
Existe também o alerta - mas não acredito tenha sido esta a intenção do autor - de que as doenças do corpo se anunciam por sintomas, até mesmo sem dor, ou por restrições e limitações físicas. A falência da mente é inesperada, silenciosa, indolor; mas não elimina as dores das outras doenças próprias da idade avançada, nem elimina as veleidades e os desejos que nos acompanham durante a vida toda. Só as reveste de maior ansiedade e frequentemente de agressividade, o que é imperceptível ao paciente e deletério para seu entourage.
Estou tranquila: se acontecer comigo, não vou perceber, mas também não vou poder, lamentavelmente, compadecer os que convivem ao meu redor, do que desde já me penitencio.
E seja o que Deus quiser...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A LINHA AMARELA

.......afinal, como é que ela é.....


Um bebé aos primeiros pasos. Um único trecho. Imperdível.
Foi já à sua entrada, na Rua da Consolação, que minhas antenas se aguçaram. Estava às portas de uma descoberta monumental: saguão belíssimo na sua simplicidade, amplo, claro, concreto a vista, revestimentos de qualidade, aços reluzentes, tudo imponente. Perfeito. Um pé direito altíssimo, detalhes inesperados em alturas aparentemente inúteis, sugerem previsão para ulterioridades.
Um jovem guarda vem ao meu encontro, atencioso de minha canície. Gentilmente recuso o elevador a que ele quer me acompanhar: estou alí para conhecer, perambular. Ele insiste em me apontar, pelo menos, um parapeito no centro do saguão de onde se descortinam os pisos inferiores e depois me mostra o caminho para a descida. Cinco lances de escadas rolantes, bilhetes registrados eletronicamente, vidros temperados que se separam para abrir-me o passo.
Observo detalhes da engenharia arquitetonicamente alçada a obra de arte. Minimalista sim, mas impactante.
Durante a descida, a todos os níveis, posso observar as tubulações de sustentação que, pela posição e acabamento, por suas porcas, parafusos e roscas sextavadas, sugerem à minha ignorância que sirvam também como conduítes para fiações diversas. Talvez.
Ao chegar à plataforma, poucas pessoas à espera, o que facilita a observação dos revestimentos das paredes e de parte dos túneis, com a mesma qualidade e o mesmo bom gosto.
Quase de surpresa e sem estardalhaço, chega o trem. Ao entrar descubro, no vidro de suas portas, minha expressão de contentamento: o inesperado - ah! tão bonito - está desfilando à minha frente. O meu olhar se perde num vagão imenso, longo, ininterrupto e articulado que serpenteia sobre os trilhos com um ruído quase imperceptível. O desenho panorâmico das janelas, o branco leitoso dos bancos que parecem jorrar de tiras de aço escovado como pasta dental de uma bisnaga; os tecidos de revestimento dos assentos com suas cores amalgamadas num tweed de textura acolhedora mas sólida; o suave cinza dos biombos de vidro; um toque de amarelo vibrante aqui e ali. Lindo.
Na tranquilidade do curto trajeto em fase experimental, poucas pessoas, muito espaço vazio para observações minuciosas. Esse longo vagão inteiriço é mais alto e mais largo do que os corriqueiros; vai facilitar a movimentação interna; vai eliminar, pelo menos visualmente, o aperto das horas do rush.
E, lindo como é, vai inspirar o povo ao respeito. É interessante observar como, já nas outras linhas de metrô, as mesmas pessoas que jogariam pelas calçadas e pelas ruas os papeis dos sorvetes que acabam de sugar, o maço de cigarro vazio, as migalhas de biscoitos que roeram a caminho do trabalho, dentro do metrô, guardam aqueles detritos no bolso ou em sacolinhas para depositar nas lixeiras disponíveis às saídas. E é isto que faz com que o metrô paulista esteja entre os mais limpos do mundo! Se os nossos trens, de todas as outras linhas já inspiram os usuários ao comportamento desejável em todos os lugares públicos como se fossem suas próprias casas, seguramente a linha amarela contribuirá ainda mais a abrir o caminho definitivo para o civismo coletivo.
Minha ida e volta Paulista-Faria Lima-Paulista, pareceu rápida demais. Ao sair de novo na Rua da Consolação, mas do outro lado da rua, o barulho da vida me engoliu. Fui para casa a pé, ansiosa por chegar e colocar essa experiência gratificante no papel e no blog. Mas durante o trajeto continuei tão invadida por avalanches de sensações que elas também foram parar aí mesmo, em baixo deste texto, com o título "O OCASO".


PS: enquanto a linha amarela está assim,
com um único trecho para conhecer,
vale lembrar o horário de funcionamento:
das 9 às 15, e só em dias de semana...
......e obrigada ao meu amigo Bené,
por ter-me falado dela,
instigando-me a conhecê-la

sábado, 7 de agosto de 2010

O OCASO

ou

O CAMINHO DE VOLTA DA LINHA AMARELA
PARA A MINHA CASA ......


Não é grande distância, assim mesmo uma avalanche de sensações andaram invadindo minha mente.
Foi assim também quando, mais de trinta anos atrás, entrei pela primeira vez no recém inaugurado terminal de Roissy. Aquelas escadas rolantes embutidas em túneis transparentes subiam e desciam entrelaçando-se no ar, verdadeiro espaço aéreo interno num pé direiro estratosférico. Naquela ocasião estranhei que eu não estivesse vestida à maneira de Barbarella, heroína cinematográfica que, em 1968, Roger Vadim colocou no século 41 de forma futurista-quase-erótica. As roupinhas incrivelmente bem comportadas, em termos de hoje, que Paco Rabanne criara para o filme, acabaram popularizadas nas mulheres do mundo inteiro, contanto que esbeltas e dinâmicas. E Roissy foi, naquela época, o "non-plus-ultra" da inovação em aeroportos.
Foi assim também quando, naquela mesma época, sai de um cinema atordoada com espaçonaves que dançavam no firmamento ao som das valsas de Strauss, enquanto seus problemas internos, técnicos e humanos, venciam o suspense nas notas dramáticas de Khatchatourian. Quantas vezes depois daquele dia me reprometi investigar se Stanley Kubrick selecionou a suíte sinfônica quando idealizou o filme em 1968, ou se a encomendou ao musico russo especialmente para servir de fundo ao seu "2001: Uma odisséia no espaço". Nunca o fiz, mas sei que nenhum outro tema poderia substituir o som devastador de "Assim falou Zarathoustra". Se Zoroastro, como é mais conhecido aquele personagem mitológico, séculos antes de Cristo, conseguiu constituir a base religiosa do seu povo, ninguém melhor do que sua "voz" para trazer de volta à realidade, e à terra, uma aventura espacial do século XXI, como imaginada em 1968.
Quem manda ruminar tantas coisas ao mesmo tempo...
A minha cabeça agitada por tantos lampejos, num misto de passado e presente-imediato, de repente me forneceu um dado surpreendente: Kubrick, quando idealizou o filme em 1968, adiantou em 33 anos a realização de uma odisséia espacial de 2001. Trinta e três anos! Como a idade de Cristo!
E isso tem importância? Certamente que não! Assim mesmo o raciocinio surgiu e de nada adiantou eu saber que Kubrick era judeu...
E por que todos esses turbilhões...Por que tantas lembranças afloraram junto a sensações, raciocínios e reações surpreendentemente atualizadas, mas baseadas em recordações vindas de tão longe?
Culpa da "Linha Amarela"!
Foi desde minha primeira entrada naquela novíssima estação de metrô, que minhas antenas se aguçaram. E, à minha saída, sabia com certeza que tecnologia, criatividade, ousadia, arrojo e bom gosto haviam desfilado perante meus olhos. E eu estava feliz por mais essa surpresa na minha vida.
Novamente a fantástica demonstração de que ela, a minha vida tão venturosa, sempre caminhou ao longo de descobertas, invenções e criações que, em sua trajetória, atravessando guerras e crises, escreveram o roteiro do futuro.
Mas nenhum roteiro é definitivo: novos horizontes, novas soluções...mais descobertas, mais invenções...novas surpresas, novas criações...novas idéias...
Novos futuros ainda virão. Tudo inaudito, inesperado, incrível, prodigioso...

Deus meu, por que já tenho setenta e seis anos...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

PROSAS, POEMAS, POESIAS E TENDÊNCIAS SURPREENDENTES

curto ensaio sobre um assunto que pretendo aprofundar.....um dia.

Pois é, Fabiana...
Como falei para quem quisesse ouvir: não estou na sua oficina na Casa das Rosas para aprender a escrever poemas, mas para ver se crio o habito de lê-los. Por coincidência, as poucas aulas que já tivemos me levaram de volta a uns oito anos atrás quando assisti no MAM a uma rápida oficina ministrada por Jorge Montesino, membro de um grupo que apresentou como "Poetas Fronteiriços".
Já ouviu falar?

Os poemas escritos por diversos autores que cresceram e vivem nas fronteiras onde se encontram de muito perto o Portugues, o Espanhol e o Guarani, se pontuam pelo uso livre dos três idiomas. Não lembro muito bem dos textos que lá foram apresentados, mas ficou bem gravada na memória a força que percebi neles, mesmo não tendo nenhuma familiaridade com a lingua indígena. Durante muito anos privei do convivio de diversos amigos argentinos, uruguaios e paraguaios. Aprendi com eles as peculiaridades dos sons, dos significados nem sempre idênticos de palavras idênticas, e de como a substituição de palavras de um idioma por outro pode enriquecer as imagens que se pretende transmitir. Daí o interesse que ficou não tanto no âmbito da poesia, mas no da poética.
Não é de se estranhar portanto que a experiência daqueles poucos encontros no Ibirapuera tenha-me trazido a musicalidade, o ritmo e a sensação de que aquele novo filão literário estava longe de ser uma pesquisa em andamento, mas resultado instintivo de uma cultura que nasceu e se aprofundou com anos e anos de convívio diário dos povos fronteiriços.
Durante as leituras que Montesino fez naquela ocasião, e depois delas, ruminando ainda os sons, as vezes largos, outras insistentes como máquinas, tive certeza de que qualquer um de nós, mesmo conhecendo academicamente os dois ou mesmo os três idiomas envolvidos, não teria a "cultura" necessária para se atrever a escrever um texto como aqueles que ouvi pelos "Poetas Fronteiriços". Aqueles textos não tinham nada de "macarrônico", pois o termo soa como pejorativo. O Koogan-Larousse define a palavra como:

"gênero irônico em que à lingua original se adicionam, na tentativa de parecer douto, palavras latinas ou de outros idiomas. Diz-se também de qualquer idioma escrito ou falado erroneamente na tentativa de fazer-se entender, ou burlescamente, para ironizar".

O que eu ouvi do poeta Montesino, foi literatura de qualidade onde se percebe que a escolha de uma palavra num idioma - comandada por um verbo de outro ou viceversa- é instintiva e provém de um convivio tão profundo e regular que garante ao autor, sem vacilar, a eficácia mais segura e mais vívida. O fronteiriço lida da manhã até a noite não só com as demais culturas, mas com sons de outros seres, de sua música, de sua expressão corporal, de seu gesticular; inclusive das reações a certas coisas que ele vê nos "outros", para as quais ele, o fronteiriço, reage de outra maneira ou não reage de todo. O fronteiriço incorpora até os cheiros e paladares de outras culinária, fazendo com que haverá momentos em que, estando em outro lugar, lhes farão falta certos sabores e certos temperos. Isto lhe traz a cultura alheia que ele fez sua; a intimidade do sentido de cada palavra fará com que - instintivamente - ele possa escolher o termo que melhor comunicará aos outros, e que seja mais apropriada para expressar-se até na propria língua.
Ao final da oficina tive que elaborar um exercício em forma de poema, que intitulei "Saudades Fronteiriças". Sei que ele é uma fraude: os sentimentos que me levaram a relembrar meus amigos -a maior parte artistas com cujas obras convivo ainda - são legitimos e sinceros, mas a forma de meu texto é rebuscada do momento que tive que procurar, estudar, remanejar os "onde" e os "quando" misturar idiomas. Sem contar que não pude incluir o guarani de que não tenho realmente noção alguma.
Para dar um exemplo, somente consegui usar a palavra "saudade" no título. O poeta fronteiriço saberia quando usar a palavra "saudade", abstrata mas tão doce e tocante; porém ela exige de quatro a cinco outras palavras para formar a frase que a expresse; eu recorri ao simples e incisivo "estrañar", mais dramático, visceral e seguramente mais compácto. A palavra saudade interromperia o ritmo que estava jorrando das minhas saudades românticas para as do papel. Por ser uma fraude, minha "Saudades Fronteiriças" é, sim, um texto macarrônico e se o achasse (sò Deus sabe que fim levou, pois ainda estou a procura daquela página...) e o mostrasse, todos perceberiam isto facilmente. Qualquer um adivinharia onde deixei uma palavra em portugues e onde a transformei em espanhol. Assim mesmo tive a coragem de ler na classe o meu "poema" (e eu que estava certa de nunca ter escrito poemas...) e Montesino seguramente me perdoou, pois até fez um "cafunê" no meu cabelo bem menos branco do que agora, e sorriu.
Nunca mais ouvi falar dos poetas fronteiriços e, sob o ponto de vista cultural, lamento que eles não tenham tido uma divulgação mais ampla.
É provável que ao longo dos tempos venha realmente a ser criado um idioma comum àqueles três, e adotado em toda a América Latina. Foi dessa maneira que criou-se - por exemplo - o Papeamento, língua oficial das Antilhas Holandesas, baseada no Holandês, Espanhol, Portugues e Inglês. Tem gramática e regras próprias, é ensinada, escrita e falada por cerca de um milhão de habitantes das Ilhas Bonaire, Curaçao, Aruba e até do pequeno arquipélago das Ilhas de Roque, recentemente transferido geográfica e politicamente à Venezuela, onde não sei se agora o novo idioma permanecerá. Em Oranjestaad (Aruba) e Willemstaad (Curaçao) existem bilbiotecas em formação para abrigar a produção literária em Papeamento, ainda pequena por ser idioma tão recente.
Papeamento não é o único exemplo de idioma "fronteiriço" originado da fusão de outros. A Suissa tem quatro idiomas oficiais: alemão, frances, italiano e romanche, mas em todos os Cantões fala-se correntemente o Switzerdutch, que incorporou os quatro. Na África do Sul, o Africaans nasceu da fusão do Holandês, Inglês e diversas linguas tribais. O Africaans e o Inglês são hoje linguas oficiais: o ensino é feito nas duas e a programação de rádio e televisão é transmitida alternadamente.
Tudo isto já está acontecendo no mundo sem que quase se perceba. Com a globalização, e a evolução do sistema de comunicação e locomoção pelo mundo, mais e mais vezes estes exemplos se multiplicarão. O Continente Americano é solo fértil para isto: a latinidade, a sempre crescente miscigenação até no hemisfério norte, o convívio harmônico com os remanescentes povos indigenas, o estreitamento das relações comerciais e culturais agora em andamento; tudo isto solidificará a criação de uma proximidade linguística mais forte e - um dia - definitiva.
O que vi, ouvi e apreciei de Jorge Montesino é o começo consciente, portanto instintivo e espontâneo, daquilo que poderá vir a ser uma realidade. Para ser aceito no mundo literário universal, deverá cair, como está começando a cair, a rigidez das fronteiras, fazendo com que os povos sejam amalgamados numa harmonia que um dia possamos chamar paz.
Utopia?

segunda-feira, 31 de maio de 2010

TOMATES SENTADOS

HOJE HELGA JANTA COMIGO.
Esse texto de 2008 entra pela primeira vez no

meu blog em homenagem a ela. É o prato que vou
fazer para ela experimentar e ela tem os mesmos
27 anos que minha filha tinha quando eu exumei
a receita de meus arquivos sensoriais. As duas,
Helga e minha filha Andrea, são pessoas muito especiais.

Ohiyo é uma japonesa dos seus cinquenta anos, cuja banca de feira frequento há muito tempo. Ela traz sempre pouca quantidade de cada tipo de verduras, só verduras, mas tudo é fresquinho, limpo e bem arrumado. Como bonus entre as várias tonalidades de verde, seu sorriso acolhedor. Quando me vê, sua primeira pergunta é sempre a mesma: "Hoje vai querer tomates sentados?" Tudo isto desde quando notou que -nem sempre mas bastante frequentemente - eu selecionava os tomates colocando-os, um de cada vez, na palma bem esticada de minha mão. Até o dia em que ela não aguentou e perguntou a razão. Expliquei:
"Quando compro tomates para fazê-los recheados eles precisam ser maduros mas firmes e, o mais importante, é que eles devem poder ficar bem sentados".
Ela perdeu o sorriso e arregalou os olhos:
"Como é?"
Descrevi:
"Quando os coloco na assadeira, eles devem sentar bem, estar bem equilibrados se não o recheio cai durante o cozimento. Por isso eles devem ser redondos mas com a parte inferior ligeiramente achatada. Aqueles ovais nunca ficam em pé: só servem para saladas ou molhos".
Agora ela sempre tem uma meia duzia que guarda para mim e nunca fica chateada se, justo naquele dia, eu não preciso de tomate nenhum. Mas quase sempre os compro, mesmo se para outros fins, e ela sempre agradece sorrindo, sem desconfiar.
Voltando para casa com minha cestinha cheia fico calculando se fazer os tomates recheados só para mim ou convidar alguém. Se fizer só para mim penso feliz que não precisarei fazer almoço por dois dias pois esse prato, mesmo frio, sempre aguça minha gulodice; se quero convidar alguém preciso escolher quem: ou quem já conheça e aprecie, ou quem possa ser apresentado com sucesso a esse prato que é único em todos os sentidos. Único por dispensar carnes, peixes e outras proteinas - mas frio serve maravilhosamente bem, no verão, para acompanhar rosbifes - e único por não comparecer nos menus de restaurantes de nenhum tipo, cinco estrela, cantina, trattoria, buffet ou "peso".
Para a crônica: após tê-la esquecido durante muito tempo, desenterrei a receita de minha memória por ocasião do festejo de um aniversário muito especial: o meu é por volta de duas semanas antes do de minha filha e, naquele ano, quando ela completaria 27 anos eu estaria com exatamente o dobro da idade dela e ela com a metade da minha. Um aniversário único na vida das duas. Os "tomates sentados" foram muito festejados no meio de saladas estranhas como a de champignon crus com maionese de mango chutney, a de laranja fatiada com azeitonas pretas e a de folhas verdes temperada com um molho quente de bacon frito e crocante. Por muito tempo havia acreditado que fosse uma receita de família muito exclusiva, mas nas minhas andanças pelo mundo andei descobrindo a presença dos "tomates sentados" em praticamente todos os paises mediterrâneos, principalmente nas aldeias a beira mar, e como comida essencialmente caseira. Sempre porém com pequenas substituições de tempero: na Italia, orégano; na Grécia, açafrão; na Turquia e Libano zátar; no Marrocos, endro; na Espanha, raspa de limão; na França o "pistou" que nada mais é que manjericão. Até em Malta, que por quase duzentos anos amargou a influência da insossa cozinha inglesa, descobri uma bodega em que os proprietários espanhois tinham o prato como especialidade da casa.
"Tomates sentados" é o nome que surgiu de minhas conversas com Ohiyo, mas na minha familia sempre foi "Pomodori Ripieni" ou seja, puros e simples tomades recheados. Quando se especifica o "do que" é que as pessoas se assustam pois ninguém acredita que arroz CRU possa cozinhar dentro do tomate, no forno.
Para fazer o prato para o jantar de hoje, ontem tive que ir à feira onde Ohiyo tem banca em outra rua da que normalmente frequento. Ela me olhou assustada.
"Oh, hoje não trouxe os tomades sentados".
Sorri:
"Não faz mal, eu mesma escolho. Mas você pode escolher para mim a melhor rúcula precoce e os espinafres mais tenros".
Ainda bastante triste ela insistiu: "Ah, se eu soubesse....." e surpreendentemente acrescentou:
"O que eu não faço para uma freguesa como você?"
Não sei o que deu em mim, mas me ouvi retrucar:
"Você faz tudo por mim, mas sempre se recusa a vender-me as ramas do nabo, sem o nabo".
Ela abaixou a cabeça, olhos envergonhados:
"Desculpe, já expliquei. Se corto as folhas, ninguém vai comprar o nabo nu".
Quase caí na gargalhada: ainda não tinha descoberto que ela tinha sentido de humor.
Ohiyo sabe que nabos sem ramas amargam em pouco tempo. E sabe que seis nabos são muita coisa mesmo para uma família grande. Mas não tem idéia que as ramas de seis nabos dão um prato fabuloso só suficiente para duas pessoas gulosas como eu.

Bem, mas isso já seria outra receita.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

NÃO POR ACASO, Resenha do Filme

Brasil 2007
Diretor: Philippe Barcinski
Atores: Leonardo Medeiros, Rodrigo Santoro, Rita Batata,
Blanca Messina, Letícia Sabatella

Recentemente descobri que Kely Cristina S.Felicio, comentou no meu blog, que o meu conto "O Espelho" lá publicado, teria-lhe lembrado o filme "Não por acaso". Já havia visto esse filme, havia gostado muito e, apesar de não ver muita atinência entre ele e minha estória, e justamente por isso, fiz questão de voltar a vê-lo. Continuo não conseguindo seguir o raciocínio da Kely (tão gentil e carinhosa...) mas o filme me impressionou mais ainda. Lembrei de, na ápoca, ter achado estranho que um filme tão bom tivesse ficado tão pouco tempo em cartaz. Agora, num ímpeto publicitário (!), faço questão de divulgar minha resenha para que, quem sabe, alguém se interese em exuma-lo...


Eis aí um filme pra lá de minimalista. Personagens enxutas, ações simples, instintivas, lógicas dentro da logica de cada personagem, diálogos econômicos, tomadas de exteriores de grande impacto visual. Tudo privilegia o aflorar de sentimentos sem que ninguém os mencione. Cada ação é uma descoberta, cada reação é reveladora, cada pequena decisão repentina parece ser o obvio sem sê-lo. Tudo com muita parcimônia, muita delicadeza, sem pieguice.
Num acidente de trânsito morrem duas mulheres que não se conhecem e esta tragedia atinge dois homens que, também, não se conhecem, não se encontrarão jamais e não tem, nem terão, nada em comum.
O filme acompanha as reações e a evolução dos temperamentos dos dois homens cujo comportamento e atitude - e só comportamento e atitude - revelam ao espectador o caráter e o perfil deles. Nenhum deles fala de si mesmo para ninguém, não há dialogos que adiantem pistas nem acontecimentos surpreendentes que lhes arranque "identidade" reveladora.
É uma história simples: a ex-mulher de um solitário controlador de trânsito atropela uma moça matando as duas.
A morte propiciará ao ex-marido a aproximação com a filha adolescente. O namorado da moça atropelada, continuará a excercer suas atividades de artesão de mesas de sinuca, com a mesma paixão tranquila, com o sentimentalismo romântico que lhe é intrínseco e, eventualmente, transferindo tudo isso para uma nova mulher, não à procura de uma substituição, não por ela ser algo novo e especial, (que ela realmente é), mas para dar continuidade àquilo que ele é e sempre será.
O elo importantíssimo das duas estória é a cidade de São Paulo, pictoricamente lindíssima, mas analiticamente fria. Seus viadutos, seus cruzamentos, seus pontos nevralgicos, assustadores.
A ausência do contato entre as personagens das duas estórias pareceu-nos o grande "achado" de Barcinski que teve uma fuga saudável da "coincidência" cinematografica que entrelaça estórias paralelas. Se em "Crash" foi usada magistralmente, por outro lado prejudicou o resultado de "Babel" apesar do excelente Iñarritu. Já não era sem tempo que alguém se despisse daquela formula já bastante gasta e, de qualquer forma, muito difícil de não parecer forçada.
Rodrigo Santoro tem um desempenho primoroso: seu contido comportamento perante a tragedia que o abalou, transcende as parcas lágrimas que ele derrama silenciosamente sobre a madeira que trabalha com expressivo carinho e leveza apesar das mãos pesadas de calos e colas. Sua naturalidade em repetir, para com outra mulher, os gestos e movimentos habituais no trato da namorada morta, trasborda a simplicidade que moldou sua vida desde sempre e deixa aflorar a dedicação humana que será sempre o "leitmotiv" de sua vida. O roteirista deu à sua personagem um final surpreendente cuja força, aí sim reveladora, dá enfase ao gesto que o ator consegue magistralmente demonstrar espontâneo: na frente da porta do apartamento da nova mulher, ele ajeita no chão, com toalinha e tudo, o café da manhã que falhou em preparar quando ela o pedira. Uma pena a escolha de Leticia Sabatella no papel. A câmara e o som na televisão são mais complacentes e menos delatores do que no cinema.
Agradável surpresa foi a maturidade da jovem Rita Batata no papel da filha do controlador de trânsito, um Leonardo Medeiros convincente. De solidão dilacerante, sua descoberta em poder dividí-la com uma filha que mal conhece, transforma-se em determinação. O final, no passeio de bicicleta a dois no viaduto liberado para o lazer nos fins de semana, resgata a humanidade de uma cidade árida que, a partir daí, passará a ser vista por ele, até no seu caótico monitor, com olhos de uma nova esperança.
Há muito não se via no cinema nacional um filme tão despretencioso, tão singelo e tão sincero.
Justamente por isso tão significativo.

MACABÉA - A hora da estrela

RESENHA DO FILME

Sorte minha: anteontem passou na televisão e o re-vi com muito interesse pois, fazia algum tempo, vinha pensando nesse filme já velho de quase vinte anos (ou mais?) . Já não tenho na memória grandes detalhes da ficha técnica, mas a maioria de minhas reações e daquilo que mais me marcou, havia ficado.
O filme não envelheceu. Eu, público, amadureci. A fotografia, bem escolhida nas tomadas, continua de má qualidade. O acompanhamento musical, continua lamentável: o silêncio tera sido mais eloquente, já que o filme realmente é um gritante grande silêncio ...
Mas hoje posso aceitar que o filme seja tão primário quanto sua personagem título. E se esta primariedade, como a vejo agora e como espero tenha sido concebida, foi intencional, aplausos para Suzana Amaral.
Primeiro, por que a diretora soube de imediato que Marcélia Cataxo já nascera Macabéa. Marcélia é a insignificância personificada: rosto, corpo, mãos de joão-ninguém, tudo nela é impessoal. Lembra os atores do neo-realismo italiano, todos desconhecidos, todos intérpretes de um filme só. Se Cataxo seguiu sua carreira de atriz depois de Macabéa, não sei. Se sim, espero que tenha-se transformado radicalmente e que hoje ninguém mais reconheça nela a eterna Macabéa.
Segundo por que Suzana Amaral fez dela a personagem padrão com todos os requintes pictóricos exteriores e interiores, ao gosto de sua inefável criadora, Clarice Lispector.
Macabéa é feiosa, desengonçada, constrangedoramente tímida, e ao mesmo tempo cheia de sonhos imediatistas: ao sentir-se observada, já imagina ter feito uma conquista. Simplória e ignorante é ao mesmo tempo sedenta de um "conhecer" de que ela desconhece o significado.
Emigrante numa São Paulo periférica e cinzenta, deslumbra-se com o mêtro, com os elevados e até com jardins decadentes onde fotógrafos ambulantes fornecem roupas a seus clientes para que sejam retradados "decentemente vestidos". Clientes esses, todos Macabeos e Macabéas como ela.
Uma Macabéa que consegue emprego num depósito onde gatos saboreiam os ratos ao mesmo tempo que ela roe seu cachorro quente, lambusando seu trabalho de datilografia.
É lá onde aprende de uma colega para lá de desinibida a mentir em próprio benefício mas entra
sempre com um eterno pedido de desculpas por qualquer coisa que peça, faça ou consiga.
Sua lista de palávras difíceis que ouve na Rádio-relógio, é fonte de perguntas que coloca a um Olímpicus, smplório, desengonçado e ignorante como ela, que porém se posiciona num patamar de "já evoluido", vislumbrando riqueza na política. O discurso dele ao pé de uma estátua do Ipiranga é a sintese das ambições de muitos, haja visto a aprovação da única espectadora alí presente, outra velha Macabéa.
Uma das perguntas mais patéticas e tocantes : "Ser feliz, serve pra que?"
Ela descobre a resposta nas predições mentirosas e ilusórias de uma vidente oportunista, que a levam à transformação exterior, num vestido azul, ricamente chinfrim, cabelo solto, e seu primeiro sorriso. Correr à procura de um hipotético principe azul, em ruas repentinamente arborizadas, em bairros que nunca conhecerá, é sua despedida da vida.
Atropelada, no chão de uma esquina, numa posição, minha cara Suzana Amaral, pouquíssimo plausível e para lá de improvável.

Que bom que vi de novo. E fiquei, mais uma vez comovida. Tem em DVD?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO, RESENHA DO LIVRO

Autor: Muriel Barbery
Título Original: L'Élégance du hérisson
Edição: Companhia das Letras 2008
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar

A autora Muriel Barbery nasceu em Bayeux, pequena cidade medieval da Normandia, de origem galo-românica, que conserva, e cultua, marcos de grande valor histórico, arquitetônico e artístico. Não é de se estranhar que Barbery tenha desenvolvido lá a virtude - e o vicio - da observação profunda a que foi estimulada desde seu nascimento. Uma catedral de 900 anos, os majestosos "remparts", o ferro batido nos portões, nas janelas, nos pequenos palácios e castelos ainda existentes; tudo deve ter aguçado e gravado em seus olhos o material riquíssimo que lhe permitiu identificar os clichês que personagens, hábitos e peculiaridades ainda identificam a França.
Mas Barbery escolheu subverter aqueles clichês numa história repleta de casos e atitudes que, no começo, parecem inusitadas ao leitor, mas que ao longo do livro, resultam na reconstrução harmônica e otimista de personagens, hábitos e peculiaridades, sem tirar-lhes nem minimizar-lhes as raízes.
Rénée, "concierge" (zeladora),de um elegante, classudo e super-clássico edificio residencial de Paris, não é bronca, metida, bisbilhoteira e nem fofoqueira como a tradição manda. Ao contrário, ela pensa e respira clássicos da música e da literatura como se tivesse-se formado na Sorbonne;
exteriormente, entretanto, se comporta como esperam dela os moradores, esnobes e exigentes.
E a pequena Paloma, há doze anos caçula de uma família vip, não é -apesar dos esforços de todos os membros- nem mimada nem consumista, ao contrário: é crítica do mundo que a sustenta e, para sair dele, rumina as mil maneira com que poderá, sem causar danos materiais à propria casa e à dos vizinhos, suicidar-se quando cumprir treze anos.
O interessante da construção do livro está também no cuidado com que a autora escreve em primeira pessoa o que sai da cabeça das duas personagens principais. Ela utiliza caracteres gráficos bem distintos para cada uma. Rénée chega-nos em capítulos com titulos pertinentes aos acontecimentos, impressos em letras normais. Já a pequena e inquieta Paloma nos vem em negrito, e com capítulos intitulados "pensamentos profundos" numerados. Parece ter sido intenção de Burbery chamar a atenção para a profunda diferência de dois cérebros (um maduro e outro em formação) para que o leitor possa, a cada capítulo quase sempre alternados, compara-los transportando-se na personagem da vez.
Tanto Rénée como Paloma estão "mal a l'aise" no mundo onde vivem: Rénée disfarça adotando o clichê - só aparente - que é devido à sua profissão. Paloma assume sua intolerância não com rebeldia mas com apatia. Até o nome Paloma que lhe foi imposto ao nascer, parece obrigá-la a um comportamento modernoso, sofisticado e dispendioso adotado pelo resto da família onde o pai, alto funcionário público que a menina desconfia corrupto, vive no mundo dos políticos, a irmã é uma consumista a espera de um marido rico e a mãe -apesar da escolaridade elitista - tem, no fundo no fundo, a bisbilhotice de uma "concierge".
Tudo corre paralelamente: as duas vidas entremeadas de pequenos acontecimentos nos outros apartamentos, pontuados pela passagem sistemática de uma Manuela, faxineira portuguesa, ela também clichê do dia a dia parisiense. Ela trabalha, um ou dois dias por semana, na casa de quase todos os moradores e acaba, no fim da tarde, parando na da Rénée para tomar chá.
Uma faxineira estrangeira tomando chá, de xicara e de sabedoria, com uma zeladora inusitada.
Não bastasse a escapadela de Paloma em refugiar-se na cultura japonesa - popular ou não -, no meio do livro aparece um novo proprietário e morador: Kakuro Ozu. Seu olho de tradição milenar parece identificar de imediato que Rénée não é o que parece e que a pequena Paloma e sua melhor amiga nigeriana são personalidades inquitantes para um maduro senhor japonês que ostenta uma vastíssima cultura internacional mas depara-se coma a adolescência ocidental interessada na oriental antes mesmo de conhecê-lo.
Aí está um cruzamento de olhares, cada personagem debruçando-se e identifcando-se com os outros: encontros para chá, curiosidades inesperadas, afinidades a flor da pele e finalmente uma provável esperança amorosa entre os dois seres que, finalmente, descartadas as barreiras sociais, poderiam compartilhar prazerosamente suas velhices.
Mas Barbery não se atreve ao final feliz: a reconstrução interior de uma adolescente que aprende com dois adultos estranhos a amar a vida, é o final feliz do livro. E o do leitor: ao vencer as estreanhezas que lhe causam os capítulos iniciais, o leitor é empurrado a conjeturas curiosas e frequentemente bem humoradas: ...se as pessoas que conheço não fossem aquilo que elas aparentam, quanto mais caloroso poderia ser nosso convívio...]
E aí está um desconcertante e lindo romance filosófico.
Bayeux, a pequena cidade da autora, ostenta, entre seus marcos históricos, a famosa tapeçaria da Rainha Mathilde**, do século XI, em que algumas das figuras são tão estilizadas e naif que parecem modernas: descobri lá um grupo de quatro cavaleiros com silhuetas, atitudes e posturas que remetem - pasmem - aos "The Beatles". E se não fossem eles soldados, mas músicos ou saltimbancos no séquito das tropas de Guilherme I a caminho da conquista da Inglaterra?
Barbery, ao criar o livro, manteve presente no inconsciente aquela sequência do bordado com todas as dúvidas que ele carrega: pessoas e coisas abrigam e acalentam as mais raras, surpreendentes e maravilhosas surpresas.

** A tapeçaria representa Guilherme I de Aquitânia (Duca de Normandia, dito inicialmente "O Bastardo" e depois "O Conquistador") com seu exército, a caminho da Inglaterra que ele conquistou em 1006 AD.
O bordado de lã sobre lã crua, é atribuida à sua esposa Mathilde de Flandres e teria sido iniciada quando as tropas sairam para a guerra, ilustrando as etapas que os mensageiros traziam à rainha. Estudiosos pretendem que ela tenha sido executada numa oficina artesanal por encomenda de um primo de Guilherme I, bispo de Bayeux, o que não lhe tira a importância histórica.
Recentemente pesquisadores consideraram que essa tapeçaria (58 cenas em 70 métros de cumprimento por 0.50 de altura) é obra precursora da "Banda Desenhada", hoje dita "Histórias em Quadrinhos".

sexta-feira, 14 de maio de 2010

SEDA

Mal abro a gaveta, ela imanta-se ao meu corpo. Transforma-se na penugem invisível de minha pele. É quente, macia, natural. E é animal: nasceu de outro ser.

E ela tem perfume. Não sei se é o dela ou é o meu que ela nina feliz.

Sei que algo dela está sempre comigo. É a feminilidade que minha idade não descartou. É a sensação de que, da mesma forma em que ela nasceu, ela me envolve num casulo que me protege, me acarinha, que não me deixa esquecer o gostoso farfalhar de seu toque.

Pobres dos homens que, quando muito, a tem debaixo de um colarinho, em cima de uma camisa.
Busquem, achem, provem aquela sensação de convite, de aconchego e de delirio que ela sussurra do outro lado de outra pele.

Os homens de minha vida, sabem.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

CORRUPÇÃO.....e etc...

CRÔNICA

Conheci Marta num avião: eu voltando de visitar uma amiga em Filadelfia, ela saindo de Orlando com os três filhos. Mil pacotes e sacolas na cabine, as crianças cobertas de apetrechos Disney: orelhas, bonês, camisetas e pendurucalhos vários. Muito falante, Marta não hesitou em me passar o entusiasmo, seu e dos meninos, por aquela excursão tão esperada que resultou, finalmente, maravilhosa. Minha poltrona de corredor na fileira do meio do avião, ela sentada ao meu lado e as crianças ocupando o resto dos assentos com fácil saída do outro lado para as indefectíveis debandadas durante o vôo.
Para mim foi difícil fechar o livro de suspense comprado no aeroporto, tanto quanto foi fácil para ela introduzir-se definitivamente no restante das minhas horas de vôo. Só faltou me dizer sua idade: o resto foi tudo. O colégio de renome onde as crianças estavam matriculadas me indicou que morávamos no mesmo bairro. Aí foi impossível deixar de participar da vida deles com muito mais detalhes: a academia da moda para ela, mesmo mais distante de outras excelentes no bairro, a casinha na praia para as férias de verão, o carro que ganhou no Natal, só para ela.
-" Sabe, Oscar é maravilhoso para mim e para os filhos. Tem um pequeno escritório de advocacia só com dois estagiários e trabalha muuuito. Gosta do que faz e faz muito bem. Mas muito bem mesmo! imagine que conseguiu colocar na cadeia um fiscal da prefeitura que estava extorquindo dinheiro da loja da minha mãe só por um pequeno detalhe no alvará".
-" Certo, disse eu, se todos fizessem assim, haveria menos corrupção, não é?"
Fui apresentada ao Oscar, na chegada: engravatado num sábado de manhã, Rolex de aço no pulso, chaveiro de carro rodeando no dedo. Estranhei ele estar perto da esteira da bagagem: é permitido a não viajantes entrar naquele recinto?
A primeira mala da Marta saiu logo; faltavam ainda quatro dela quando chegou a minha, única.
Saí antes de todos, arrastando minha bagagem como uma aeromoça, frasqueira na mão, livro debaixo do braço, com marcador ainda nas primeiras páginas.
Acabei encontrando algumas vezes Marta no supoermercado do bairro, uma única vez na livraria da esquina. Por mais que ela insistisse, evitei aceitar visitar o apartamento recém inaugurado, não longe do meu. Parecia uma família bacana, entretanto, na idade que eu já tinha, um tanto fora do meu circuito habitual. Mas desejo que sejam felizes, pois creio que Marta e Oscar se gostem de verdade.
Ah! Esqueci de contar: eles nunca se casaram. Ela se beneficia da lei que garante às filhas solteiras de militar a perpetuação de sua aposentadoria. O pai dela foi coronel, ela me disse com muito orgulho. Em moeda atual o coronel ainda deve render algo em torno de setemiloitocentos reais por mês.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

BLACK-OUT, Um espetáculo iluminado

RESENHA

Pouco se dá atenção ao teatro amador. Vamos com alguma condescendência incentivar os sonhos dos jovens que ambicionam, um dia, ser profissionais aplaudidos. E tão concentrados nos atores, nossos filhos ou filhos dos nossos amigos, que poucas vezes atentamos aos detalhes e, pior, aos desconhecidos que, atrás dos bastidores, criam o sempre muito necessário para que os atores tenham a atmosfera certa para manter-se nas personagens, para não esquecer as falas, para cumprir com as marcações.
Em BLACK-OUT - apresentado por poucos dias no teatro da Cultura Inglesa de Pinheiros - nada pôde passar desapercebido: o esmerado cuidado dos envolvidos no espetáculo saltou de imediato aos olhos desde a primeira cena.
O dramaturgo escocês Davey Anderson costuma abordar temas politico-sociais mesmo nos textos - que são sua maioria - idealizados e escritos para o teatro e atores infanto-juveniis. O tradutor Marco Aurélio Nunes, nos trouxe com muita propriedade uma adaptação verbal clara e muito congruente com nossa realidade. O idealismo exacerbado dos jovens cria desentendimentos no âmbito familiar, especialmente com as mães.
Ou seriam as diferências pais-filhos que impulsionam os jovens para a aceitação e a prática de idealismos de que mal entendem os conceitos?
Anderson escolheu a reincidência do Hitlerismo como exemplo do que poderia ter sido a visão escocesa dos infindáveis levantes irlandeses; ou o crescimento tardio de um novo peronismo na Argentina, ou o ressurgimento de algum esquerdismo em algum país da america latina.
Ao passo que o mundo se renova, ele também se repete em módulos variados mas reincidentes, diferentes sim, mas novamente perniciosos.
Impecável a direção de Rafael Masini, jovem de olhar maduro, pontuada de movimentação cênica harmoniosa e, ao mesmo tempo impactante; a música de Rafael Zenorini permitiu ao diretor "solfeja-la" com mestria nos momentos mais oportunos e mais sublinhados.
Os atores tem, um bom preparo de expressão corporal e vozes trabalhadas para chegar claramente ao espectador, cuspindo emoções, silenciando medos. Um deles especialmente (Arthur Oliveira) ostenta uma invejável projeção vocal aliada a um agradável tom"redondo" e a uma rara articulação. Muitos atores de carreira, até consagrados, ainda pecam por isso.

Enfim um BLACK-OUT mais que iluminado. Obrigada Benê, por ter-me levado

segunda-feira, 22 de março de 2010

MANGANELLI E EU


*** Hoje levei meu amigo Giorgio Manganelli a um passeio pela cidade e, no fim da tarde, ao cinema assistir "Fogo e Paixão" dos arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. Giorgio não conhece suficientemente a cidade para apreciar o filme, mas me agradeceu: conhecia um dos panoramas.

É perigoso caminhar pelo elevado, além de proibido. Mas o castelinho está lá. Feio e ruim de proporções, como se saído só de lembranças infantis. Continua lá, desde sempre. O homem não sabe há quantos anos o viu pela primeira vez, mas ainda sente o ímpeto de cancelar de seus olhos aquela construção horripilante.
Impossível: ele não só o vê, ele o olha! Do alto do viaduto, descobre mais um detalhe de decadência, mais um requadro de vidro trincado no janelão que abre sobre o terraço; mais sujeira de pombos no parapeito, mais lácrimas empretecidas pela fuligem, escorridas pelas paredes externas já sem cor, entre labirintos de mofo. Continua cenário de fábula, de conto de fadas gasto, regasto, rançoso, embalsamado...
Seus olhos recebem a untuosidade do tempo e as narinas as lembranças de pratos abandonados na mesa, com ossos escalpelados, talheres cruzados, guardanapos amassados. Ainda lê neles as espectativas não alcançadas.
Ele sabe por que acaba voltando. Já não quer surpreender-se com o aparecimento da moça, quase uma fada ...-ou seria a Branca de Neve...- que saisse ao balcão procurando-o com olhos, sorriso e mãos de arpista. Mas acaba voltando e olhando. Agora a figura da mulher, que atravessou o tempo e as esperanças, não mais passa pela porta-janela para alcançar o parapeito. Ele só veria suas rugas, o olhar parado, pálpebras caidas como os seios dentro do decote, sua roupagem de conto de fadas, desbotada e enrugada, a gola branca engomada em arco a emoldurar o penteado rebuscado, gasto, regasto, embalsamado...
E o homem volta, olha e contempla. Começa a tirar disso sua paz. É pouco o que lhe sobrou, mas é sólido, pois cada vez que sobe ao viaduto, debruçado no elevado, arranca, e recolhe, uma pedra, um caco, uma trave. Até o dia em que finalmente, dará por encerradas aquelas tolas aspirações idas, gastas, regastas, rançosas, embalsamadas...
Continua indo para tocar só com os olhos, a certeza de ter conseguido fugir a tempo da ilusão. Uma ratoeira. Uma trapaça. Como a arquitetura do castelinho, como a mulher do parapeito, como as fendas dos muros erguidos sobre aquele nada, irremediavelmente cinzento.
Hoje, quase apaziguado, duvidou: seria o castelinho uma real construção de um mau arquiteto, ou só a miragem de um horizonte gasto, regasto, rançoso, embalsamado......
Negrito

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

AVENIDA HIGIENÓPOLIS - UM BAIRRO, QUASE UM PARQUE



Crônica

Depois de cinquenta anos - e elas só florescem a cada cinquenta anos - as palmeiras de Burle Marx floresceram no aterro do Flamengo. Burle Marx sabia o que estava fazendo e plantou o que tinha certeza que vingaria para sempre.
Não há raridades intencionais nos parques de São Paulo mas a exuberância do verde perene da vegetação tropical está em toda parte.
Aquela Avenida Higienópolis – provavelmente uma das mais bonitas da cidade – é um exemplo. Com sua gama compacta de árvores que se encontram no ar ela é o túnel que protege do sol, onde o verde atravessa as estações.
A avenida vai fluindo lentamente até debruçar-se sobre o vale do Pacaembu admirando os tetos dos casarões antigos transformados em showroom. No inverno aspira o multicolorido das azaléias como se elas exalassem aroma e conversa com as casas que escalaram, atrevidas, as encostas de Perdizes. Em dia de jogo, observa benévola as hordas que desfilam, rítmicas, como exércitos de saúvas.
Mas sinto falta, depois de alguns anos que mudei de bairro, daquelas enormes vértebras de aço, soldadas uma em cima da outra, a retratar a espinha dorsal que o escultor Caciporé Torres , criou para definir o porte e a alma da Avenida Higienópolis. Estavam em frente de uma antiga casa que durante muitos anos abrigou um Banco de cujo nome já não lembro. A elegante senhora a quem perguntei sobre o paradeiro de banco e escultura, respondeu que também não sabia, enquanto seu poodle se atirava à arvore mais próxima.
Todos esquecemos rapidamente. Mas é um pouco adiante da avenida que meu pisar crocante sobre folhas palmadas e enrugadas me leva a lembranças mais distantes ainda. Não foi Burle Marx que plantou – só Deus sabe há quanta gerações – aqueles plátanos, de tronco em manchas cinzentas, estranhos ao clima da cidade. Ele saberia que a longo prazo acabariam abastardados, quase irreconhecíveis. Ainda assim, aqueles plátanos descolorem suas folhas no outono, e as perdem no inverno; as repõem na primavera e criam seus frutos no verão: pequenas bolas espinhosas, mas vazias. Plátanos são castanhos selvagens e, mesmo sem frutos, ainda estão lá no trecho que leva a dois colégios. Frondes, barulhos e caminhos: tudo idêntico ao que eu, criança, pisava ao ir à minha escola, em outro continente.
Não há esquecimentos em São Paulo sem frestas de lembranças: a cidade está cheia delas.
Já houve choupos plantados inutilmente na inauguração da 23 de Maio. Não duraram seis meses. E já houve um carvalho em frente à escadaria do “Les Oiseaux” na Rua Caio Prado. Não voltei depois que o colégio foi desativado. O seu terreno já virou mil coisas: de circo a estacionamento e agora vai ser mais um parque para os pulmões e as crianças da cidade. Provavelmente aquela árvore inusitada não estará mais lá.
Tudo continua porém na memória dos que escolheram fazer do bairro - e da cidade - sua casa acolhedora, guardando no sótão um baú de recordações. Pieguice.....

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O PRIMEIRO BAILE

CONTO

O primeiro vestido de baile, o primeiro discretíssimo perfume, a primeira maquillage suave, os primeiros dezesseis anos de vida, cheios de ansiedades. O salão cheio de sedas e tules: branco, rosa, algum amarelo. O de Clara, o único verde. Muitas flores, flores e mais flores, nas mesas, em volta da pista, nas cinturas, nos decotes. Uma margarida branca numa fita dourada em volta do pescoço, sem jóias. Clara não tinha. E as danças, nos braços do mesmo jovem, sem trégua.

Não me deixe sentar, não quero dançar com outro....
Ele não tem namorada. Ele convidou a mim para seu baile de formatura.
Ele é o irmão mais velho de minha melhor amiga.
Em breve irá à França estudar arqueologia.
.......Será ele meu primeiro namorado.....
.......Dele meu primeiro beijo.....

Clara vinha sonhando com ele, desde o dia em que foram em bando ao cinema, onde ele fizera questão de sentar ao lado dela, segurando-lhe a mão.
Era bom dançar com ele, seguro, bonito mesmo

Quase tão bonito como papai.

Um vinho branco suave, coqueteis de frutas, tortas pequeninas, salgadas e doces, em pratos com um escudo pintado num canto, como escudo de uma realeza. Porque não? Ela sentia-se mesmo uma rainha, merecia tudo o que estava acontecendo.
Foi aí, na volta da festa, no portão entreaberto da casa de Clara: as duas mão em concha a levantar-lhe o queixo e um beijo nos lábios. Ela tinha estado esperando aquele momento....Meu Deus, e agora?...

....Vou emporcarlhá-lo com o meu batom!
E se manchar também a lapela do summer jacket?
Mas é tão doce, tão novo, tão emocionante, mais do que beijo normal.
A saliva dele tem gosto de vinho branco.
E a minha será que tem o do coquetel de morango?
Como tenho tanto tempo para pensar em tudo isso?
Um beijo é assim mesmo, dura tanto?

Devagar, estão entrando portão adentro, como para esconder-se de quem por acaso passasse, e, de súbito, impulsivo, ele se afasta enrijecido, como alguém que, de repente, está com medo. De que?
"É tarde. Amanhã te ligo e venho te buscar para ir à praia" -um curto silêncio, quase envergonhado, olhos baixos - e depois:" Eu gosto muito de você, muito mesmo, sabia?"
E sem esperar resposta, com a mão na maçaneta, ele puxou-a para si e a porta fechou-se, calada, sobre o silêncio de Clara