sexta-feira, 21 de maio de 2010

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO, RESENHA DO LIVRO

Autor: Muriel Barbery
Título Original: L'Élégance du hérisson
Edição: Companhia das Letras 2008
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar

A autora Muriel Barbery nasceu em Bayeux, pequena cidade medieval da Normandia, de origem galo-românica, que conserva, e cultua, marcos de grande valor histórico, arquitetônico e artístico. Não é de se estranhar que Barbery tenha desenvolvido lá a virtude - e o vicio - da observação profunda a que foi estimulada desde seu nascimento. Uma catedral de 900 anos, os majestosos "remparts", o ferro batido nos portões, nas janelas, nos pequenos palácios e castelos ainda existentes; tudo deve ter aguçado e gravado em seus olhos o material riquíssimo que lhe permitiu identificar os clichês que personagens, hábitos e peculiaridades ainda identificam a França.
Mas Barbery escolheu subverter aqueles clichês numa história repleta de casos e atitudes que, no começo, parecem inusitadas ao leitor, mas que ao longo do livro, resultam na reconstrução harmônica e otimista de personagens, hábitos e peculiaridades, sem tirar-lhes nem minimizar-lhes as raízes.
Rénée, "concierge" (zeladora),de um elegante, classudo e super-clássico edificio residencial de Paris, não é bronca, metida, bisbilhoteira e nem fofoqueira como a tradição manda. Ao contrário, ela pensa e respira clássicos da música e da literatura como se tivesse-se formado na Sorbonne;
exteriormente, entretanto, se comporta como esperam dela os moradores, esnobes e exigentes.
E a pequena Paloma, há doze anos caçula de uma família vip, não é -apesar dos esforços de todos os membros- nem mimada nem consumista, ao contrário: é crítica do mundo que a sustenta e, para sair dele, rumina as mil maneira com que poderá, sem causar danos materiais à propria casa e à dos vizinhos, suicidar-se quando cumprir treze anos.
O interessante da construção do livro está também no cuidado com que a autora escreve em primeira pessoa o que sai da cabeça das duas personagens principais. Ela utiliza caracteres gráficos bem distintos para cada uma. Rénée chega-nos em capítulos com titulos pertinentes aos acontecimentos, impressos em letras normais. Já a pequena e inquieta Paloma nos vem em negrito, e com capítulos intitulados "pensamentos profundos" numerados. Parece ter sido intenção de Burbery chamar a atenção para a profunda diferência de dois cérebros (um maduro e outro em formação) para que o leitor possa, a cada capítulo quase sempre alternados, compara-los transportando-se na personagem da vez.
Tanto Rénée como Paloma estão "mal a l'aise" no mundo onde vivem: Rénée disfarça adotando o clichê - só aparente - que é devido à sua profissão. Paloma assume sua intolerância não com rebeldia mas com apatia. Até o nome Paloma que lhe foi imposto ao nascer, parece obrigá-la a um comportamento modernoso, sofisticado e dispendioso adotado pelo resto da família onde o pai, alto funcionário público que a menina desconfia corrupto, vive no mundo dos políticos, a irmã é uma consumista a espera de um marido rico e a mãe -apesar da escolaridade elitista - tem, no fundo no fundo, a bisbilhotice de uma "concierge".
Tudo corre paralelamente: as duas vidas entremeadas de pequenos acontecimentos nos outros apartamentos, pontuados pela passagem sistemática de uma Manuela, faxineira portuguesa, ela também clichê do dia a dia parisiense. Ela trabalha, um ou dois dias por semana, na casa de quase todos os moradores e acaba, no fim da tarde, parando na da Rénée para tomar chá.
Uma faxineira estrangeira tomando chá, de xicara e de sabedoria, com uma zeladora inusitada.
Não bastasse a escapadela de Paloma em refugiar-se na cultura japonesa - popular ou não -, no meio do livro aparece um novo proprietário e morador: Kakuro Ozu. Seu olho de tradição milenar parece identificar de imediato que Rénée não é o que parece e que a pequena Paloma e sua melhor amiga nigeriana são personalidades inquitantes para um maduro senhor japonês que ostenta uma vastíssima cultura internacional mas depara-se coma a adolescência ocidental interessada na oriental antes mesmo de conhecê-lo.
Aí está um cruzamento de olhares, cada personagem debruçando-se e identifcando-se com os outros: encontros para chá, curiosidades inesperadas, afinidades a flor da pele e finalmente uma provável esperança amorosa entre os dois seres que, finalmente, descartadas as barreiras sociais, poderiam compartilhar prazerosamente suas velhices.
Mas Barbery não se atreve ao final feliz: a reconstrução interior de uma adolescente que aprende com dois adultos estranhos a amar a vida, é o final feliz do livro. E o do leitor: ao vencer as estreanhezas que lhe causam os capítulos iniciais, o leitor é empurrado a conjeturas curiosas e frequentemente bem humoradas: ...se as pessoas que conheço não fossem aquilo que elas aparentam, quanto mais caloroso poderia ser nosso convívio...]
E aí está um desconcertante e lindo romance filosófico.
Bayeux, a pequena cidade da autora, ostenta, entre seus marcos históricos, a famosa tapeçaria da Rainha Mathilde**, do século XI, em que algumas das figuras são tão estilizadas e naif que parecem modernas: descobri lá um grupo de quatro cavaleiros com silhuetas, atitudes e posturas que remetem - pasmem - aos "The Beatles". E se não fossem eles soldados, mas músicos ou saltimbancos no séquito das tropas de Guilherme I a caminho da conquista da Inglaterra?
Barbery, ao criar o livro, manteve presente no inconsciente aquela sequência do bordado com todas as dúvidas que ele carrega: pessoas e coisas abrigam e acalentam as mais raras, surpreendentes e maravilhosas surpresas.

** A tapeçaria representa Guilherme I de Aquitânia (Duca de Normandia, dito inicialmente "O Bastardo" e depois "O Conquistador") com seu exército, a caminho da Inglaterra que ele conquistou em 1006 AD.
O bordado de lã sobre lã crua, é atribuida à sua esposa Mathilde de Flandres e teria sido iniciada quando as tropas sairam para a guerra, ilustrando as etapas que os mensageiros traziam à rainha. Estudiosos pretendem que ela tenha sido executada numa oficina artesanal por encomenda de um primo de Guilherme I, bispo de Bayeux, o que não lhe tira a importância histórica.
Recentemente pesquisadores consideraram que essa tapeçaria (58 cenas em 70 métros de cumprimento por 0.50 de altura) é obra precursora da "Banda Desenhada", hoje dita "Histórias em Quadrinhos".

3 comentários:

Tânia Tiburzio (TT) disse...

Preciso ler esse livro. Adorei a resenha. Beijos.

Unknown disse...

gostei muito também. já tinha lido o livro, mas faz muito tempo e como vou discutí-lo daqui a uns dias com alguns amigos (estamos começando um "clube do livro", resolvi refrescar a memória e ver algo sobre o livro. Valeu! Gostei também do texto sobre escrever, como diz uma amiga, "escrever para não enlouquecer"!
Abraços, obrigada

Blog da Bruna disse...

Caro Unknown! No "escrever para não enlouquecer" sua amiga citou o título de um dos livros de Bukowski!!!