sábado, 16 de abril de 2011

MUNDANOS

Para ela, eu era uma completa desconhecida, de vez em quando me olhava sem ver-me. Mas ela não era desconhecida para mim: os movimentos macios de sua cabeça a transformá-la em pintura; a mesma maciez de suas mãos a criar luminosidade; seu olhar imperceptivelmente obliquo e estático como na cuidadosa reprodução de uma madonna de Filippino Lippi*. Mas lá estava ela, emitindo serenidade. Fui lá, no fim da reunião, perguntar-lhe o nome. Ela disse e eu esqueci.

Dele nem investiguei o nome: fiquei observando seus dedos apaixonados pela máquina em suas mãos: seus dedos a deflorar imagens, seus meio-sorrisos a cada click. Mas o brilho de seus olhos a defender sua arte, me indicaram a certeza, dele, de que ela, a foto-arte, ainda de fraldas, ainda em idade de balbuciar para o grande público, está sim no bom caminho para ficar. Será que ele já teria uma moça de costas, cabelos e echarpe ao vento, olhando-se numa vitrina sem revelar-lhe o semblante, para ilustrar meu "Brios"?

Camila -moderníssima imagem de poros a jorrar a intensidade irreprimível pelo bebé que criou - sorriu sempre como alguém que, chegado ao pico ventoso, tira gorro e viseira para respirar a paisagem. Fernando Carneiro, de velhos rascunhos relidos - e nem sempre aprovados - com sua pacatez de sábio; um Carlos carioca de contos de amor perdido mas ainda ansiado; um Fábio de positivíssimo olhar quase material, que não era o Martinez (cadê ele...) a criar imagens económicas em sua devastadora simplicidade. Os Escritores Mundanos tem obrigação de ser pra lá de bons para abraçarem-se dentro de um invólucro tão classudo. É para isso que lá está a Tânia, imagem esguia de opulento conteúdo selecionando qualidades. E uma Helga, já implacavelmente à beira de um trampolim entre justiça e dramaturgia.

Até Sandra - tão só convidada quanto eu - esbanjou entusiasmo: mulher-guerreira, veio, generosa, a oferecer suas horas contadas de laser, suas noites brancas de árduo trabalho, suas diárias parêntesis familiares, para mergulhar de cabeça no Mundo Mundano de um mundo idealista e pródigo de planos.

Muitos outros ainda não identificados. Quanto pode-se conhecer em poucas horas de uma primeira anamnése social? No meio de livros, estantes e mesas de manuseios coloridos, de aviõezinhos que, de cima, olham para a ribalta, (quem inventou que livraria deva ter pendurucalhos do teto?...), os holofotes vão se apagando empurrando a companhia do proscênio à plateia, e dela à calçada da rua.

E lá está o Mundo Mundano, transformado, só aparentemente, num mundo menos mundano do que o Mundano de tantos e bons. Só aparentemente: improvável é despir-se dele.

E eu? O que eu estou fazendo aqui, de volta à minha casa, embevecida e hesitante? Embevecida por ter atravessado um rio de murmúrio acolhedor. Hesitante e excitada pela dádiva de um "pertencer" novo.

Sic Transit Gloria Mundi ...Bem-vindos ao meu mundo.


* Filippino Lippi, 1457-1504

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O PRIMEIRO QUE DISSE, Filme

Italia: 2010
Título Original: Mine Vaganti
Diretor: Ferzan Ozpetec

A tradução do título é o grande pecado da distribuidora, ou de quem por ela: fui assistir esperando uma comédia leve, inconsequente, quiçás escrachada como os italianos sabem fazer tão bem. Havia-lhe dado tão pouca importância na ordem dos filmes imperdíveis, que quase o perdi. É filme sério, de um cuidado tão esmerado que até a escolha da cidade onde foi rodado tem significado especial. Lecce é uma cidade relativamente pequena, antiga, provinciana, lá no calcanhar da Itália. Mas linda, cuidadíssima em suas majestosas construções barrocas. Se Florença, do outro lado dos Apeninos quase à beira do Tirreno, é desde sempre e para sempre Renascentista, Lecce, lá onde o Adriático re-distribui suas correntes, é uma Florença Barroca.

Não consegui chegar às origens da construção artística de uma cidade que, sendo ela basicamente produtora de tabaco, possam ter deixado um marco tão importante e duradouro de uma arquitetura que, justamente naquele canto do mundo, revelou-se a mais refinada do barroco por ser mais despojada. E é la que o modernismo de uma fábrica de massa, de renome internacional, convive com o provincianismo de seus proprietários e de seus habitantes. Tudo escorre entre carros de luxo sobre paralelepípedos. Tudo sobrevive orgulhosamente em mansões históricas onde uma matriarca divide vida, acomodações suntuosas, empregadas, conforto e mexericos com o filho mais velho que assumiu o comando material e moral da família. Tudo em cima de uma coleção de "Mine Vaganti" que podem explodir a qualquer momento, por qualquer descuido, numa fala, num mencionar. Num olhar. Por isso tudo é diagramado como exemplar, perfeito e respeitabilíssimo numa cidade onde todos se conhecem. E todos sabem. Ou todos crêem que todos sabem.

Aquelas minas móveis, aquelas que todos sabem existir, enterradas e camufladas, mas ninguém sabe exatamente onde e quando - e por quem - irão pelos ares. A introdução de personagens e cenas divertidas, suaviza o diálogo entre autor e espectadores, de forma a preparar a plateia, de braços abertos, à condescendência. Uma reconstrução cuidadosa de como se vive na perfeição sem tê-la e de como - e a que custo - será possível começar a abrir-lhe brechas, rachadura, remendos. Sem perder a unidade. A escolha de um jovem ator, Riccardo Scamarcio, que não precisa abrir a boca para transmitir sentimentos, é um dos grandes trunfos do diretor. Todos os outros interpretes vestiram sua personagem de forma tão subcutânea que será impossível imaginá-los em outros papeis. Sei que uma resenha implicaria numa apresentação da história, mesmo que de forma superficial. Então que essa não seja uma resenha, mas só uma convocação. É filme para ser visto, ser examinado de perto, concentrando-se nos pequenos detalhes: na sombra a mais do canto do jardim, no reflexo obliquo de um espelho. E nos movimentos delicados, mas eloquentes, das mãos da mocinha que convidam qualquer escultor a sair voando para comprar um metro cúbico de travertino.

terça-feira, 5 de abril de 2011

UMA CARTA DE AMOR


Augusto, meu bem.

Gosto desse nosso sexo ao despertar. Hoje, porém, não te acompanhei correndo ao chuveiro. Estou imóvel, joelhos quase no queixo, olhos fechados. O cheiro azulado da tua loção passou por mim e teu dedo indicador percorreu o desenho de minhas sobrancelhas a caminho da saída do nosso quarto. Fiquei entre os lençois, ainda úmida de você, numa posição estranha e aconchegante, com a sensação de um calor desconhecido, renovado. Sim, por que foi um gesto novo. Uma coisa tão insignificante...sempre foi assim oufoi só hoje que notei? Tenho ainda teu polegar apertando a base do meu ombro esquerdo, enquanto minha axila abriga a curvatura do indicador, teus outros dedos esparramados às minhas costas. Me dei conta desse novo toque num momento em que, surpreendentemente, me senti arrastada para dentro de você, como se você estivesse me engolindo para sempre. Quando você sai de mim, você também sente que está me levando dentro do seu corpo?

Hoje eu mesma vou fazer a cama: não saberia como esquivar-me do olhar da Rosa perante tantas evidências. E as crianças?Ainda vão me ver se eu fui embora dentro de você? Como vou ajudá-las a fazer a lição de casa sem inserir nos seus cadernos as frases molhadas desta carta que não vou escrever... Queria muito que você, à noite, me perguntasse o que eu fiz o dia inteiro. Responderia que passei o dia fazendo mil coisas enquanto te escrevia essa carta que não vou escrever. Pois para mim é difícil falar, dizer em viva voz, tudo que eu sei escrever tão bem, quando não escrevo...