sexta-feira, 23 de abril de 2010

CORRUPÇÃO.....e etc...

CRÔNICA

Conheci Marta num avião: eu voltando de visitar uma amiga em Filadelfia, ela saindo de Orlando com os três filhos. Mil pacotes e sacolas na cabine, as crianças cobertas de apetrechos Disney: orelhas, bonês, camisetas e pendurucalhos vários. Muito falante, Marta não hesitou em me passar o entusiasmo, seu e dos meninos, por aquela excursão tão esperada que resultou, finalmente, maravilhosa. Minha poltrona de corredor na fileira do meio do avião, ela sentada ao meu lado e as crianças ocupando o resto dos assentos com fácil saída do outro lado para as indefectíveis debandadas durante o vôo.
Para mim foi difícil fechar o livro de suspense comprado no aeroporto, tanto quanto foi fácil para ela introduzir-se definitivamente no restante das minhas horas de vôo. Só faltou me dizer sua idade: o resto foi tudo. O colégio de renome onde as crianças estavam matriculadas me indicou que morávamos no mesmo bairro. Aí foi impossível deixar de participar da vida deles com muito mais detalhes: a academia da moda para ela, mesmo mais distante de outras excelentes no bairro, a casinha na praia para as férias de verão, o carro que ganhou no Natal, só para ela.
-" Sabe, Oscar é maravilhoso para mim e para os filhos. Tem um pequeno escritório de advocacia só com dois estagiários e trabalha muuuito. Gosta do que faz e faz muito bem. Mas muito bem mesmo! imagine que conseguiu colocar na cadeia um fiscal da prefeitura que estava extorquindo dinheiro da loja da minha mãe só por um pequeno detalhe no alvará".
-" Certo, disse eu, se todos fizessem assim, haveria menos corrupção, não é?"
Fui apresentada ao Oscar, na chegada: engravatado num sábado de manhã, Rolex de aço no pulso, chaveiro de carro rodeando no dedo. Estranhei ele estar perto da esteira da bagagem: é permitido a não viajantes entrar naquele recinto?
A primeira mala da Marta saiu logo; faltavam ainda quatro dela quando chegou a minha, única.
Saí antes de todos, arrastando minha bagagem como uma aeromoça, frasqueira na mão, livro debaixo do braço, com marcador ainda nas primeiras páginas.
Acabei encontrando algumas vezes Marta no supoermercado do bairro, uma única vez na livraria da esquina. Por mais que ela insistisse, evitei aceitar visitar o apartamento recém inaugurado, não longe do meu. Parecia uma família bacana, entretanto, na idade que eu já tinha, um tanto fora do meu circuito habitual. Mas desejo que sejam felizes, pois creio que Marta e Oscar se gostem de verdade.
Ah! Esqueci de contar: eles nunca se casaram. Ela se beneficia da lei que garante às filhas solteiras de militar a perpetuação de sua aposentadoria. O pai dela foi coronel, ela me disse com muito orgulho. Em moeda atual o coronel ainda deve render algo em torno de setemiloitocentos reais por mês.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

BLACK-OUT, Um espetáculo iluminado

RESENHA

Pouco se dá atenção ao teatro amador. Vamos com alguma condescendência incentivar os sonhos dos jovens que ambicionam, um dia, ser profissionais aplaudidos. E tão concentrados nos atores, nossos filhos ou filhos dos nossos amigos, que poucas vezes atentamos aos detalhes e, pior, aos desconhecidos que, atrás dos bastidores, criam o sempre muito necessário para que os atores tenham a atmosfera certa para manter-se nas personagens, para não esquecer as falas, para cumprir com as marcações.
Em BLACK-OUT - apresentado por poucos dias no teatro da Cultura Inglesa de Pinheiros - nada pôde passar desapercebido: o esmerado cuidado dos envolvidos no espetáculo saltou de imediato aos olhos desde a primeira cena.
O dramaturgo escocês Davey Anderson costuma abordar temas politico-sociais mesmo nos textos - que são sua maioria - idealizados e escritos para o teatro e atores infanto-juveniis. O tradutor Marco Aurélio Nunes, nos trouxe com muita propriedade uma adaptação verbal clara e muito congruente com nossa realidade. O idealismo exacerbado dos jovens cria desentendimentos no âmbito familiar, especialmente com as mães.
Ou seriam as diferências pais-filhos que impulsionam os jovens para a aceitação e a prática de idealismos de que mal entendem os conceitos?
Anderson escolheu a reincidência do Hitlerismo como exemplo do que poderia ter sido a visão escocesa dos infindáveis levantes irlandeses; ou o crescimento tardio de um novo peronismo na Argentina, ou o ressurgimento de algum esquerdismo em algum país da america latina.
Ao passo que o mundo se renova, ele também se repete em módulos variados mas reincidentes, diferentes sim, mas novamente perniciosos.
Impecável a direção de Rafael Masini, jovem de olhar maduro, pontuada de movimentação cênica harmoniosa e, ao mesmo tempo impactante; a música de Rafael Zenorini permitiu ao diretor "solfeja-la" com mestria nos momentos mais oportunos e mais sublinhados.
Os atores tem, um bom preparo de expressão corporal e vozes trabalhadas para chegar claramente ao espectador, cuspindo emoções, silenciando medos. Um deles especialmente (Arthur Oliveira) ostenta uma invejável projeção vocal aliada a um agradável tom"redondo" e a uma rara articulação. Muitos atores de carreira, até consagrados, ainda pecam por isso.

Enfim um BLACK-OUT mais que iluminado. Obrigada Benê, por ter-me levado