quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A HOMENAGEM DE UMA NADADORA

Em Maio desse ano publiquei um texto "NADAR" escrito por Fabienne Guttin. Hoje a mesma publicou em
http://www.abmn.org.br/mural.php
uma homenagem à propria mãe, falecida há poucos dias, dedicando-lhe o campionato de que estará participando.
Sei que quem apreciou o primeiro texto se comoverá ao abrir o novo.
Fabienne é uma mulher muito especial, assim como era sua mãe, minha irmã.

domingo, 30 de outubro de 2011

CONSIDERAÇÕES SOBRE O "SÃO JERÓNIMO", DO ANTONELLO DA MESSINA

O que mais chama atenção na pintura "São Jerônimo" (circa 1475) de Antonello da Messina (1430-1479), é o equilibrio do fundo da tela: sua perspectiva e profundidade tem os dois lados, direito e esquerdo, com peso e volumes visuais perfeitamente distribuídos. Embora isso fosse uma das características da pintura da época, o requinte das arcadas em linhas oblíquas aumentou a área de pintura do tema propriamente dito, levando o observador a caminhar desde a área interior para uma vasta paisagem além dos vitrais.
Se é verdade que o mesmo equilibrio foi respeitado por seu contemporâneo Leonardo da Vinci (1452-1519) no retrato de Monnalisa, este criou uma paisagem de montanhas e colinas que obedecem, sim, as regras pictóricas mas não desviam o interesse do observador.
Antonello da Messina, na tela que estamos analisando, antes mesmo de homenagear o Santo, deu uma demonstração de conhecimento arquitetônico. Pareceu-me evidente que houve um Mecenas que encomendou a pintura em louvor do estudioso Jerónimo, e que o pintor aproveitou-se dela para esbanjar técnica!
Lá o Jerónimo escritor, tradutor e estudioso de idiomas arcáicos, estava cumprindo sua tarefa para a divulgação da sabedoria entre religiosos e dignatários.
Eu, que deixei há poucos anos de escrever aquilo que me era exigido nas minhas inúmeras atividades profissionais, virei-me para dentro e agora só escrevo o que me dá na telha, para relembrar as sensações que vivi, os testemunos que presenciei e, às vezes, os devaneios que minha vida ainda irradia.
Disso tudo surgem os contos sobre personagens que não conheci mas que nascem e vem ao meu encontro, assim, só por que me habitam, gostam de minha companhia e eu gosto da deles.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

NOSSAS CONQUISTAS - Crônica

Vivemos em mundos sem fronteiras, ricos, ampliados, e até virtuais. Já estamos providos de vídeos, teclados, fios auriculares, apetrechos que nos acompanham sempre, em casa, no trabalho, nas ruas, em restaurantes; somos afinal esplendidamente modernos, civilizados, equipados, democráticos, conectados. Usamos palavras tão grandes quanto o universo:globalização, integração, cooperação, meio-ambiente, igualdade, multimídia.
Aprendemos a arte de entender, analisar, explicar, defender, justificar. Sentimo-nos todos bonitos, lavados, passados, etiquetados na última moda, publicidade ambulante que somos das grifes – mesmo as falsificadas. Somos bons, generosos, gentis, compreensivos, abertos, muito adiantados, alcançamos o máximo da civilidade. Hiper-civilizados, tranquilamente acomodados em nossos confortos recém-adquiridos, somos a sociedade do bem-estar, vivemos num enorme, multiforme centro, um verdadeiro spa colossal e global.
Aceitamos todas as verdades mesmo percebendo que elas necessariamente escondem alguma pequena inverdade como se alguma mentirinha fosse um empurrãozinho para melhorar a qualidade das verdades.
De tão atualizados, educados, “chegados”, não percebemos que estamos cada vez mais sozinhos, mais isolados. Andamos pelas ruas sem olhar nada ao nosso redor, falando sozinhos entre mil fios pendurados no pescoço, ouvindo musica, e-mails, recebendo e transmitindo mensagens, falando com os outros sem vê-los, ampliando cada dia mais esse silêncio humano que está começando a engolir-nos.
Enquanto nos convencemos que todas essas facilidades, nos abriram à visibilidade individual, não realizamos que estamos – talvez - caminhando para uma cegueira coletiva. Ainda reconhecemos nosso vizinho? Olhamos as coisas que passam pelas janelas dos ônibus que nos transportam, mas não vemos o que são: enquanto nossos olhos vem as ruas, as casas, os prédios, as árvores - que supomos seja tudo o mesmo de ontem, de meses atrás, do ano anterior – nossos ouvidos são abastecido de informações transitórias, canais pré-escolhidos que nos atiçam a ouvir e raramente a aprender.
Será por isso que parece termos desaprendido a capacidade de ensinar? Ou é por isso que acabamos achando que educar nossos filhos seja uma atitude antiquada, visto que eles, de tacada e desde muito pequenos, aprendem tudo sentados à frente de um vídeo? E o que se aprende à frente de um vídeo é realmente tudo?
Tantas coisas, tantas analises, tantas considerações surpreendentes. Fica uma pergunta que precisamos nos colocar, e com urgência: qual o caminho trilhado por nossas crianças. Qual, especialmente o dos nossos adolescentes? Esquecemos que ser adolescente significa estar por vadear entre a perda do mundo infantil e a descoberta da própria identidade.
Absorvidos e estasiados, mas também distraídos por tantas facilidades, apetrechos e quincalharias, saberemos ver – e reconhecer - o pedido de socorro da nossa juventude?

terça-feira, 13 de setembro de 2011

MEDIANERAS - UM FILME UNIVERSAL!

Produção: Argentina/Espanha/Alemanha 2011
Direção: Gustavo Taretto
Cast: Pilar Lopes de Ayala, Javier Drolas


Sem voyeurismo: a forma mais poética, terna, plástica e pictórica de invadir a solidão humana.
Qualquer elogio será depreciação, lugar comum.
Impossível não ficar "speechless".

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

UM SONHO DE AMOR - RESENHA

Título Original: Io sono l'amore
Produção: Itália 2009
Direção: Luca Guadagnino
Cast: Tilda Swinton, Flavio Parenti, Edoardo Gabriellini

Há tempos não se via tanta suntuosidade. Se esse filme fosse uma mulher, o termo apropriado, e insubstituível, seria “allure” que não tem a ver nem com classe, nem com elegância, e muito menos com sensualidade, apesar de ostentar também todos esses adjetivos. “Allure” tem a ver com “porte”, com “presença física”, com “comportamento”, com “tempo e maneira de caminhar”. Longe do luxo dos filmes históricos, onde a pesquisa do mobiliário e vestuário está mais do que documentada, o diretor Guadagnino fez uma devassa nos hábitos, na altivez e no isolamento social dos magnatas não só Italianos mas Europeus, mesmo que todos já à beira da globalização. Trouxe a tona a tacanharia encrustada nas tradições do “nome”, tacanharia não como apego ao dinheiro mas como limitação, reserva de espírito.
Talvez tenha sido esse o conceito do título original do filme “Io sono l'amore” , “Eu sou o amor”. Num contexto em que no amor, antes regulamentado numa organização sólida de tradições já aceitas e digeridas, uma mulher da-se o luxo da transgressão. O interessante é que o inicio dessa debandada surge – sutilmente, quase aromaticamente – de lembranças de sabores de que essa mulher abdicou a cerca de trinta anos, adotando outro paladar. Parece um filme de gastronomia? Não, não é, mas ela é presente desde o inicio, no preparo esmerado, cuidadoso, impecável de um jantar em honra do patriarca da família. É naquela sequencia que começam a transpirar, como já a crítica especializada reconheceu, os ares inconfundíveis de um Luchino Visconti: os panoramas silenciosos, os longos momentos de câmara estática, os detalhes primorosos dos interiores, o requinte das pessoas que parecem flutuar na tela.
Entretanto Guadagnino ampliou sua fonte Viscontiana para detalhes quase imperceptíveis que sua câmara parece roubar, por frações de segundos, até dos olhos do espectador: num instante fugaz ela sobrevoa a vastidão do saguão da mansão e enquadra, do alto, a figura da protagonista reduzindo-lhe o tamanho. É aí a apresentação do espírito dessa mulher: altiva e já confortável no ambiente que domina, é porém cerceada em seus vôos na direção de muitos lugares, de poucas recordações. Lembranças e saudades quase esquecidas. Em outro momento, e numa paisagem bucólica, a câmara clica o tropeçar de uma abelha numa giesta, o que obriga a mulher a desviar o rosto.
Aliás o contraste entre a sisudez de Milão e as floradas de San Remo, parece desvelar o roteiro romântico dessa mulher que saiu do cinza da Rússia para as cores da Itália, descobrindo-as somente quando tropeça no amor. Ela, a mulher, se transforma no Amor. E ele, o amor, semeado durante pequenas experimentações culinária na mansão da família, explode na natureza acolhedora, de relva limpa, das colinas mediterrâneas. De relva limpa: não há vestígio de sujidade no Amor.
Frequentemente é a movimentação - ou a inércia - dos personagens que conta as últimas evoluções do drama. Há detalhes que são reveladores por um único gesto: quando o jovem amante começa a livrar o corpo da mulher de suas vestimentas e de suas jóias, ele está despindo-lhe a identidade, em contraponto à ação do marido que em noites de festa, a veste das jóias de família.
Houve sim, pequenos detalhes desnecessários: a imagem que a mulher visualiza da filha beijando a amiga, quando por fotos (não mostradas) e pelo tom do diálogo mesmo que não esplícito, o lesbianismo da moça já estava definido. Entretanto, a declaração da mulher ao marido, articulada nas claras palavras : “Eu amo Antônio”, foi necessária para a redefinição de sua identidade. A reação do marido em despi-la do próprio casaco é também, mais uma vez, o despimento definitivo de uma identidade já rejeitada.
Certamente um filme de autor. Uma gama de atores de primeira linha e uma atriz impecavelmente segura, fizeram o resto.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

UM CONTO CHINÊS - Resenha

Título Original: Un Cuento Chino
Produção: Argentina/Espanha 2011
Direção: Sebastián Borensztein
Cast: Ricardo Darín, Ignacio Huang, Muriel Santana

O cinema argentino ataca outra vez, ganhando, de forma merecida, impositiva e definitiva, seu lugar na história do cinema. Numa demonstração de maturidade que vem conquistando há mais de duas décadas, aparece mais uma vez em uma pequena grande obra de arte: pequena pela modéstia de sua produção, grande pelo resultado.
O Diretor Borensztein, com a meticulosidade de um artesão-entalhador do século dezesseis, colocou em cena a loja, a casa, as manias, o isolamento, as rabugices de um hómem solitário. Com a mesma meticulosidade, este ator fenomenal que é Ricardo Darín, construiu um personagem que consegue convencer - e convencer-se - de suas manias, seu isolamento, suas rabugices, escondendo até para si mesmo, uma delicadíssima alma de samaritano. Borensztein orquestrou de tal maneira o cenário e seus componentes corriqueiros, que qualquer cliente que entrasse naquela loja, ou penetrasse naquela casa, acharia tudo coerente, natural, intrínseco ao personagem.
E que personagem! Vive cultuando e colecionando lembranças que não são dele, desde os bibelôs para a mãe que não chegou a conhecer, às notícias inusitadas que recorta compondo um acervo cuidadosamente encadernado. É naquelas notícias que viaja, imaginando locais, panoramas, acontecimentos. O inusitado do mundo que um dia entrará pela sua porta.
Ricardo Darín não interpreta: idealiza, cria e acredita em suas falas, como se o filme não tivesse script nenhum, pois suas palavras saem "impromptu" da personagem que ele acabou "sendo". Os DeNiros e os Depardieus da vida tem agora um rival à altura, dificilmente igualável.
No Conto Chinês tudo tem o ar de que as coisas estejam acontecendo quando as vemos naquela tela. A naturalidade das poucas personagens, tão importantes quanto cada peça de móveis da casa do protagonista, quanto cada caixa de pregos de sua loja. Um jovem chinês de olhares, de tremores, de quase infantilidade. Uma mulher apaixonada que nem se sonha em produzir-se para visitar o homem que ama.
O cinema argentino está exportando sabedoria para os cineastas já universalmente conhecidos, admirados e premiados. A história que inspirou o filme, tão incrível quanto inusitada, foi divulgada por um noticiário da Televisão Russa e quem tem o hábito de permanecer na sala após o final do filme e durante a lista dos créditos, terá na tela a reprodução do seu original no idioma. Mais uma vez Borensztein fez um trabalho de formiguinha, conseguiu o tape e o usou com o cuidado com que se tratam as peças de arte. E acabou criando mais uma.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O ROTEIRO SENTIMENTAL QUE VIROU CRÔNICA, OU : A TRANSGRESSÃO ANUNCIADA

Vinda da luminosidade do Rio de Janeiro, hoje vivo em São Paulo, essa cidade-luz que não é Paris mas que me fez sentir, desde minha chegada, como se estivesse chegando de férias, pronta para conquistar o mundo. Essa é a cidade onde já vivi a feérica Rua Augusta e a classudíssima “Higienópolis”. De lá, há quase quinze anos, fiz minha entrada nos Jardins, provavelmente meu último reduto paulista.
Meu roteiro sentimental? Para criá-lo deve haver uma maneira melhor do que virar esquinas, descrevendo caminhos e Marcos, históricos ou sentimentais, feito guia turístico. Tarefa desoladora especialmente para quem, como eu, não tem cultura histórica para fazê-lo. E arriscaria de soar árido.
Desde que não tenho mais carro, caminho muito: aproveito minhas pernas, ainda obedientes, para ziguezaguear pelas ruas e por essas maravilhosas alamedas que descem saltitante da Paulista, e que eu escalo – o termo realmente é escalar – quando vou à Casa das Rosas, aos Cinemas, aos Shoppings.
Marcos? Estou num continente onde Marcos são, em sua maioria, descartáveis apesar dos esforços individuais para perpetuá-los. O que é um Marco? Um Masp decadente onde não há indicação visível do ano em que foi construído aquele vão livre surpreendente? Ou o Masp de vidraças ainda mais opacas desde que lhes tiraram o azul e as nuvens de uma artista já esquecida? Ou um palacete dinamitado em surdina para evitar sua desapropriação? Um parque com esquilos escondidos entre árvores centenárias que só é seguro com policiamento ostensivo? A Casa das Rosas só permanece Marco pela galhardia de um grupo de intelectuais, ainda assim cerceados pelas limitações de um Condephaat ineficiente.
Outro dia reparei, numa das alameda, o letreiro de uma antiga casa, sólida e azul, que hoje abriga um instituto de beleza: orgulhosamente ostenta os dizeres “DESDE 1975” , pouco mais de trinta anos de tradição, um Marco para garantir categoria e credibilidade. Ao seguir minha escalada, me descobri rindo de verdade: eu também ostento minhas credenciais, DESDE 1934. Sem letreiro...
Minhas caminhadas me levam à observação mais cuidadosa das coisas. Os edifícios de arquitetura arrojada esbanjam espaços internos e jardins bem projetados. Foi numa dessas subida que verifiquei com quanto zelo a nossa prefeitura obedece os cânones do civismo urbano: o rebaixamento das calçadas em toda esquina, que pode até parecer uma sarcástica afronta ao bom senso dos cadeirantes.
Mas tudo é muito bem cuidado, varrido, saneado. Por ser chamado Jardins, o bairro poderia ter canteiros: teve, uns anos atrás, quando da revitalização da Nove de Julho, o que me rendeu também “A flor” o miniconto em homenagem aos agapantos brancos e azuis de reminiscências infantis. Eles não existem mais, freneticamente pisoteados, junto com grama e arbustos pelos apressadíssimos transeuntes. Essa Avenida merece uma segunda mão de maquiagem, se possível, com manutenção.
Com tanto caminhar descobri que Marco hoje, para mim, é o que meu instinto registra como inusitado. Hoje tenho meu próprio GPS emocional que não preciso acionar, pois é ele que me conduz espontaneamente a admirar, acompanhar e reconhecer os Marcos para mim mais importantes. E seus novos vizinhos. Estou falando de árvores.
Duas mudas de Choupos foram plantadas no fim do ano passado na calçada em frente a um prédio novo, na Alameda. Lorena. Árvores raras, praticamente desconhecidas: seus ramos crescem desde a raiz, paralelos ao tronco, suas folhas quase redondas, claras e macias: apesar do seu aspecto final lembrar o desenho de um cipreste, seu volume é leve, quase transparente. Uma delas já está alta o suficiente para roçar nos mil fios das mil tensões que correm entre os postes. Mereceriam uma placa: Populus Alba, DESDE 2010!
Dois Pinheiros na Paulista, um a poucos passos da Casa das Rosas, outro numa esquina perto da Campinas. E a Nespereira – frutífera apesar de abastardada - ao lado do Instituto Pasteur. Há coisa mais inusitada do que uma Mangueira no meio da Avenida Nove de Julho, tão generosa que, no verão, passo debaixo dela com cuidado... Os Ipês amarelos e rosa das transversais; alguns Plátanos com seus ouriços mas sem as castanhas; um Jambo-cereja a uma quadra de minha casa, tão modesto que só o descobri depois de anos de vizinhança. David que o diga, não é amigo?
Uma Amoreira alimenta ninhadas de sabiás-laranjeira no jardim do meu prédio. A poucos passos dela, uma Jabuticabeira parece eternamente carregada de frutos: os pássaros sabem sugá-los deixando o invólucro intacto! Há uma Tangerineira a caminho da feira onde compro meus “Tomates Sentados* que entrelaçou-se a uma árvore corriqueira, dessas comuns de calçada, mas que dá frutos cuidadosamente recolhidos pelos porteiros do prédio em frente. E há Carambolas, com sua folhagem intensa, que roçam vidraças, não é Sandra?
Talvez tudo isso não seja Marco para quem cresceu ao redor dele, sempre fez parte de suas vidas e não notam mais! Mas tenho uma descoberta mais recente, que meu GPS emocional registrou aos gritos, pois faz parte de uma paisagem que me é saudosamente familiar e, por isso mesmo, agora e aqui, inusitada.
Desviando-me do caminho numa corriqueira ida a banco, deparei-me com ela. Numa alameda tropical, uma intrusa. Desconhecida. Reconhecida. Lá estava ela, majestosa apesar de sua pequenez, mas rígia, com seus curtos troncos retorcidos, seus galhos franzinos, sua folhas miúdas, cinzentas, pontudas.
Majestosa. Imponente.
E enternecedora.
Uma Oliveira.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A ÁRVORE DA VIDA -- Resenha

Filme: USA 2011
Título original: The tree of life
Direção: Terrence Malick
Cast: B.Pitt, H.McCracken, Jessica Chastain, Sean Penn

Um “must”. Tão bom assim? Não: rebuscado, pedante, pretensioso.
Mas lindo.
Tivesse ficado no retrato da uma família americana na tranquilidade de Waco,- cidadezinha texana pacata e silenciosa como as margens serenas do rio Brazos quase na Louisiana, - teria sido mais um filme imperdível de Terrence Malik. Imperdível pelo retrato cuidadoso e profundo de todas as personagens, tudo visto pelos olhos – e alma – do narrador, o mais velho dos três filhos do casal.
Ex oficial da marinha, e agora engenheiro de uma fábrica interiorana, o pai começa exteriorizando um amor quase visceral pelos filhos bebês, evoluindo aos poucos para uma irremovível atitude autoritária que cerceia a evolução deles tanto na infância como na adolescência. Um Brad Pitt, tenso, contraído; transforma-se em homem sisudo e até feio, mandíbulas retesadas e salientes, olhos baixos, quase perdidos. Sua aridez convincente enquadra a infelicidade de quem sabe estar caminhando para o abismo da inutilidade profissional,o que eventualmente o levará a sentir-se diminuído perante os filhos. E não adianta esbanjar familiaridade e amor pela música de que ele pretende ter sido afastado pela guerra; música cujo amor tenta inocular ao filho como servindo-se de um pacto de paz que não soube criar como pai, entre ordens inapeláveis e abraços tão veementes que parecem pedidos de perdão.
Mas Terrence Malik não ficou no retrato de família, quis aventurar-se na difícil tarefa de dar forma, movimento e som à criação do mundo; e dar paz, silêncios e serena felicidade ao epílogo. E extrapolou: na primeira, longa, volumosa e barulhenta demais, - apesar de imagens primorosas e da bem selecionada trilha sonora - pôs a dura prova a paciência do espectador. Na segunda, longa, lenta, estática demais, recorreu às personagens, depois da vida, procurando-se em desérticos canyons e, depois,reencontrando-se,reconhecendo-se e abraçando-se felizes no lugar comum de paisagens calvas e brancas como nuvens. Na criação do mundo, poderia ter-se limitado à demonstração pictórica (maravilhosa na intenção inicial) de mucosas e membranas surgidas na fecundação, gestação e nascimento, como exaltação do eterno propósito no inicio daquela família. No fim, a solidão do filho adulto, no rosto de um soberbo Sean Penn teria sido mais impactante: a herança árida da transgressão paterna. Mas afinal, qual a razão nesse filme de introduzir criação do mundo e epilogo de vida?
Todavia o diretor soube servir-se de uma gama de atores cujas interpretações resultaram firmes, bem construídas, definitivas. Brad Pitt: aí está um ator que, de menino bonito aos poucos veio amadurecendo para personagens difíceis, trabalhando dura e conscientemente a caminho de uma profundidade que firmou “in his own wright and right*”. Sua maturidade o instigou à co-produção desse filme quase perfeito. Jessica Chastain, atriz quase desconhecida, nos traz uma mãe cuja presença nina a harmonia entre os meninos, mantendo-os unidos ao abrigo dos predadores, sem economizar-lhes jovialidade. Sean Penn, cujas interpretações, às vezes intencionalmente exageradas, conseguem assim mesmo marcar cenas inesquecíveis, tem aqui poucas aparições na personagem do filho-narrador já adulto. Mas mais uma vez espanta com uma interpretação absolutamente convincente e arrebatadora, sem emitir uma única palavra.
Lembro de ter presenciado, em um desses festivais do mundo dos espetáculos, a reedição da entrevista com um dos monstros sagrados de outrora, - seria Lawrence Olivier? - que disse algo como: “O teatro é dos atores, o cinema dos diretores e a televisão do resíduo”.
Saí da sala com a certeza de que às vezes o cinema é também, e mais, dos atores.

*a sutileza entre wright (entalhe em madeira) e right (direito). Wright é termo comum no teatro para definir o ator como "artesão",escultor de personagens.

NA CRISTA DA ONDA - Crônica

Algo não consegue sair do noticiário, do negrito das manchetes, dos textos bem articulados dos telejornais, das conversas em todos os setores da vida urbana. Não é o nome da mais nova modelo virando atriz, nem mais um terremoto na Ásia, nem a queda do dólar ou a crise econômica internacional. É só uma palavra que parece não conseguir deixar de fazer parte do nosso quotidiano. Corrupção! A palavra é sempre a mesma. Um polvo multi-tentacular que já se instalou em tudo e que, a cada semana, redescobrimos multiplicado-se num novo setor, em mais um, mais um, mais um...Quantos foram só esse ano?
Se formos examinar essa palavra, descobrimos nela quase um prefixo: “co” como nas palavras co-laboração, co-ação etc., o que implica na intervenção de mais do que uma pessoa. Daí associarmos a corrupção ao suborno, pois no suborno alguém paga e outro recebe.
Antes tinha-se raiva da corrupção dos políticos pelo simples fato de que não tinha-se acesso às “panelinhas” que garantissem os mesmos benefícios. Mas hoje acabou-se o hábito de admirar, reverenciar e invejar a figura folclórica do "malandro" e suas estrepolias. Acabou-se o tempo do "Gerson" de levar vantagem. Mas não se consegue conter a corrupção. Pior: no processo da tentativa infiltra-se outro elemento: a impunidade.
Corrupção existe em todo mundo.Desde o bíblico prato de lentilhas, os homens se corrompem e não houve civilização por mais flórida e milenar que tenha conseguido extirpá-la. Existem porém, algumas diferenças em outras culturas perante corrupção e suborno. Vimos nos Estados Unidos, um senador corrupto enfiar um revólver na boca e suicidar-se “ao vivo”; um membro de casa real europeia (Holanda, Bélgica, Luxemburgo?..) demitir-se do cargo, pedindo publicamente desculpas por ter embolsado uma comissão sobre fornecimento de aviões e revertendo o valor a obras beneficientes.
Em contrapartida nossos homens públicos criam CPIs que levam anos para serem julgadas até a extinção do prazo legal e, no ínterim, os investigados continuam embolsando seus ricos soldos que não devolverão, mesmo que acabem considerados culpados. E quase nunca o são.
Ao mesmo tempo em que políticos, ministros, e até jornalistas e economistas tentam vender sua profissão como uma cruzada em defesa da honestidade, o povo está finalmente começando a dar-se conta de que pode, e deve, exigir honestidade e transparência.
Parece-nos então lógico e desejável porém, que ele – o povo - , enfim nos, também tenhamos que assumir nosso próprio compromisso de não ceder à “corrupção pessoal”, aquela que exercemos abrindo mão de princípios, consciência e respeito próprio. É – por exemplo – o pai que consegue um falso atestado de saúde que isente seu filho do serviço militar; é a filha do coronel, que junta escova e procria sem casar-se para poder beneficiar-se da lei que lhe permite continuar a receber a aposentadoria do pai, enquanto for solteira. Nos dois exemplos as pessoas não deixam de colocar-se num legítimo direito legal que, porém, não lhes oblitera a má fé e a desonestidade.
Está portanto na hora – e nas nossas mãos – resgatar a honra, punindo sim a corrupção, mas também abstendo-se dela.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

UMA ETERNIDADE

De Maio a Agosto, uma eternidade sim!
Meu Computador quebrou? Não
Fiz a viagem de minha vida? Não (seria para o Nepal mas agora é tarde demais)
Fiquei preguiçosa? Sim
Há momentos da vida em que uma preguiça consegue reestabelecer equilíbrios, recarregar baterias, movimentar ideias. Pois é.
Aproveitei minha Internet em "panne" e dei férias para mim e para meus leitores cuja maioria, de qualquer maneira, quer por trabalho, quer por família, estaria de férias. Então bem vindos de volta a todos, e eu já estou mais a vontade, de mangas arregaçadas e pés comodamente relaxados na banqueta debaixo da mesa do computador.
Estou de volta.
Serei a mesma?
Estarei melhor?
Estarei renovada?
Não sei: quero só estar.

FABÍOLA, Prazer em Conhecer

Ela surgiu num curso que não curti. Um professor monologuista (se não existe acabei de inventar...) impositivo e raramente aberto à discussão, por pouco não me tirou do sério mais do que uma vez, colocando nos pincéis de Antonello da Messina uma metáfora só para justificar sua própria interpretação de luz difusa, e confundindo plágio com emulação, em detrimento de um criativo e inigualável Rauschenber.
Assim mesmo ou, quem sabe justamente por isso, Fabíola foi um achado em minha vida escolar. Digo "escolar" pois aos quase oitenta anos frequento os cursos que me colocam no meio de gente, na grande maioria jovem e interessante, o que me serve de espelho para uma atualidade que não posso me deixar escapar! Essa moça, que durante algumas aulas me passou quase desapercebida apesar do capelo impetuoso e das lentes intelectuais, foi quem escolhi naquele dia por ímpeto próprio, para um trabalho de "encontro".
E sim, foi um achado.
Mulher viva, tecnologicamente antenada à vida, a um trabalho criativo,à modernidade, ao futuro. E linda. Como uma mulher de hoje deve ser linda: simples, comunicativa, exemplarmente e pacatamente atenta aos detalhes das frases (não fosse ela jornalista) e das imagens que suas frases criam. E tem beleza também interior, voltada às necessidades da humanidade presente e futura, de alimentação sã e natural (não fosse ela também dieteta), e olhar tranquilo sobre o caos urbano. Será eventualmente uma mãe pra lá de compreensiva, estimulante e pronta a crescer, em todos os sentidos, com suas crias.
Um pontinho negro - que ela mesma apresentou, reminiscente de sua criação quase abandonada num internato - a fez crescer tanto e tão bem por mérito próprio que sua vida, apesar de árdua (sei que batalha duramente e com afinco) já é, e será, em tecnicolor.
O arcoiris que a sorte colocou em meu caminho numa sala barulhenta e na penumbra de um terraço. Lá naquela velha, cinzenta mas linda e orgulhosa Casa das Rosas.

terça-feira, 24 de maio de 2011

NADAR!!!

Autor: Fabienne Guttin, 56 anos, Professora de Francês, Intérprete, Tradutora. E Nadadora.
"Perseverança" é o primeiro ímpeto que deveriamos abraçar ao acordar todos os dias, em qualquer idade, em qualquer realidade, em qualquer perspectiva.
Apláusos a essa mulher e a este seu texto lindo, corajoso, estimulante.

18:30...frio, garoa...piscina descoberta...vento gelado.
Porém, nem esse tempo, nem o dia que foi noite, me farão desviar de minha rotina disciplinada. Fui, vesti a fantasia de nadadora. Grudei o treino no bloco. Arranquei o roupão que também tinha frio. Mergulhão. A água me envolve num abraço. A chuva engrossa. O vento aumenta. Nadadeira, palmar, para-chute, snorkel, flutuador, prancha e tempo-trainer...todos comigo.Minhas costas recebem a chuva num misto de do-in e de acupuntura...A piscina é só minha. Meu lado egoista aprecia isso. Depois dos 800 de aquecimento, dos 500 de braço, dos 500 de perna e dos 5x200 crawl, me viro para os 300 de costas. Não há estrelas. O céu está escondido sob as núvens. Mas há um holofote enorme debaixo delas. A lua resolveu que ela também não se deixaria intimidar pelos céus. Ela e eu. E a água. Tudo tão perfeito. A harmonia é total. Acabo o treino com os 5 de 100 medley e os 200 borboleta, 200 para relaxar...Saio da piscina. Agradecida. Com o corpo quente e a pele que reage ao frio. Me sinto em sintonia com tudo. E um pensamento atravessa toda minha alma: amanhã tem mais. Estou viva

sábado, 16 de abril de 2011

MUNDANOS

Para ela, eu era uma completa desconhecida, de vez em quando me olhava sem ver-me. Mas ela não era desconhecida para mim: os movimentos macios de sua cabeça a transformá-la em pintura; a mesma maciez de suas mãos a criar luminosidade; seu olhar imperceptivelmente obliquo e estático como na cuidadosa reprodução de uma madonna de Filippino Lippi*. Mas lá estava ela, emitindo serenidade. Fui lá, no fim da reunião, perguntar-lhe o nome. Ela disse e eu esqueci.

Dele nem investiguei o nome: fiquei observando seus dedos apaixonados pela máquina em suas mãos: seus dedos a deflorar imagens, seus meio-sorrisos a cada click. Mas o brilho de seus olhos a defender sua arte, me indicaram a certeza, dele, de que ela, a foto-arte, ainda de fraldas, ainda em idade de balbuciar para o grande público, está sim no bom caminho para ficar. Será que ele já teria uma moça de costas, cabelos e echarpe ao vento, olhando-se numa vitrina sem revelar-lhe o semblante, para ilustrar meu "Brios"?

Camila -moderníssima imagem de poros a jorrar a intensidade irreprimível pelo bebé que criou - sorriu sempre como alguém que, chegado ao pico ventoso, tira gorro e viseira para respirar a paisagem. Fernando Carneiro, de velhos rascunhos relidos - e nem sempre aprovados - com sua pacatez de sábio; um Carlos carioca de contos de amor perdido mas ainda ansiado; um Fábio de positivíssimo olhar quase material, que não era o Martinez (cadê ele...) a criar imagens económicas em sua devastadora simplicidade. Os Escritores Mundanos tem obrigação de ser pra lá de bons para abraçarem-se dentro de um invólucro tão classudo. É para isso que lá está a Tânia, imagem esguia de opulento conteúdo selecionando qualidades. E uma Helga, já implacavelmente à beira de um trampolim entre justiça e dramaturgia.

Até Sandra - tão só convidada quanto eu - esbanjou entusiasmo: mulher-guerreira, veio, generosa, a oferecer suas horas contadas de laser, suas noites brancas de árduo trabalho, suas diárias parêntesis familiares, para mergulhar de cabeça no Mundo Mundano de um mundo idealista e pródigo de planos.

Muitos outros ainda não identificados. Quanto pode-se conhecer em poucas horas de uma primeira anamnése social? No meio de livros, estantes e mesas de manuseios coloridos, de aviõezinhos que, de cima, olham para a ribalta, (quem inventou que livraria deva ter pendurucalhos do teto?...), os holofotes vão se apagando empurrando a companhia do proscênio à plateia, e dela à calçada da rua.

E lá está o Mundo Mundano, transformado, só aparentemente, num mundo menos mundano do que o Mundano de tantos e bons. Só aparentemente: improvável é despir-se dele.

E eu? O que eu estou fazendo aqui, de volta à minha casa, embevecida e hesitante? Embevecida por ter atravessado um rio de murmúrio acolhedor. Hesitante e excitada pela dádiva de um "pertencer" novo.

Sic Transit Gloria Mundi ...Bem-vindos ao meu mundo.


* Filippino Lippi, 1457-1504

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O PRIMEIRO QUE DISSE, Filme

Italia: 2010
Título Original: Mine Vaganti
Diretor: Ferzan Ozpetec

A tradução do título é o grande pecado da distribuidora, ou de quem por ela: fui assistir esperando uma comédia leve, inconsequente, quiçás escrachada como os italianos sabem fazer tão bem. Havia-lhe dado tão pouca importância na ordem dos filmes imperdíveis, que quase o perdi. É filme sério, de um cuidado tão esmerado que até a escolha da cidade onde foi rodado tem significado especial. Lecce é uma cidade relativamente pequena, antiga, provinciana, lá no calcanhar da Itália. Mas linda, cuidadíssima em suas majestosas construções barrocas. Se Florença, do outro lado dos Apeninos quase à beira do Tirreno, é desde sempre e para sempre Renascentista, Lecce, lá onde o Adriático re-distribui suas correntes, é uma Florença Barroca.

Não consegui chegar às origens da construção artística de uma cidade que, sendo ela basicamente produtora de tabaco, possam ter deixado um marco tão importante e duradouro de uma arquitetura que, justamente naquele canto do mundo, revelou-se a mais refinada do barroco por ser mais despojada. E é la que o modernismo de uma fábrica de massa, de renome internacional, convive com o provincianismo de seus proprietários e de seus habitantes. Tudo escorre entre carros de luxo sobre paralelepípedos. Tudo sobrevive orgulhosamente em mansões históricas onde uma matriarca divide vida, acomodações suntuosas, empregadas, conforto e mexericos com o filho mais velho que assumiu o comando material e moral da família. Tudo em cima de uma coleção de "Mine Vaganti" que podem explodir a qualquer momento, por qualquer descuido, numa fala, num mencionar. Num olhar. Por isso tudo é diagramado como exemplar, perfeito e respeitabilíssimo numa cidade onde todos se conhecem. E todos sabem. Ou todos crêem que todos sabem.

Aquelas minas móveis, aquelas que todos sabem existir, enterradas e camufladas, mas ninguém sabe exatamente onde e quando - e por quem - irão pelos ares. A introdução de personagens e cenas divertidas, suaviza o diálogo entre autor e espectadores, de forma a preparar a plateia, de braços abertos, à condescendência. Uma reconstrução cuidadosa de como se vive na perfeição sem tê-la e de como - e a que custo - será possível começar a abrir-lhe brechas, rachadura, remendos. Sem perder a unidade. A escolha de um jovem ator, Riccardo Scamarcio, que não precisa abrir a boca para transmitir sentimentos, é um dos grandes trunfos do diretor. Todos os outros interpretes vestiram sua personagem de forma tão subcutânea que será impossível imaginá-los em outros papeis. Sei que uma resenha implicaria numa apresentação da história, mesmo que de forma superficial. Então que essa não seja uma resenha, mas só uma convocação. É filme para ser visto, ser examinado de perto, concentrando-se nos pequenos detalhes: na sombra a mais do canto do jardim, no reflexo obliquo de um espelho. E nos movimentos delicados, mas eloquentes, das mãos da mocinha que convidam qualquer escultor a sair voando para comprar um metro cúbico de travertino.

terça-feira, 5 de abril de 2011

UMA CARTA DE AMOR


Augusto, meu bem.

Gosto desse nosso sexo ao despertar. Hoje, porém, não te acompanhei correndo ao chuveiro. Estou imóvel, joelhos quase no queixo, olhos fechados. O cheiro azulado da tua loção passou por mim e teu dedo indicador percorreu o desenho de minhas sobrancelhas a caminho da saída do nosso quarto. Fiquei entre os lençois, ainda úmida de você, numa posição estranha e aconchegante, com a sensação de um calor desconhecido, renovado. Sim, por que foi um gesto novo. Uma coisa tão insignificante...sempre foi assim oufoi só hoje que notei? Tenho ainda teu polegar apertando a base do meu ombro esquerdo, enquanto minha axila abriga a curvatura do indicador, teus outros dedos esparramados às minhas costas. Me dei conta desse novo toque num momento em que, surpreendentemente, me senti arrastada para dentro de você, como se você estivesse me engolindo para sempre. Quando você sai de mim, você também sente que está me levando dentro do seu corpo?

Hoje eu mesma vou fazer a cama: não saberia como esquivar-me do olhar da Rosa perante tantas evidências. E as crianças?Ainda vão me ver se eu fui embora dentro de você? Como vou ajudá-las a fazer a lição de casa sem inserir nos seus cadernos as frases molhadas desta carta que não vou escrever... Queria muito que você, à noite, me perguntasse o que eu fiz o dia inteiro. Responderia que passei o dia fazendo mil coisas enquanto te escrevia essa carta que não vou escrever. Pois para mim é difícil falar, dizer em viva voz, tudo que eu sei escrever tão bem, quando não escrevo...

terça-feira, 8 de março de 2011

SURDO MUNDO


    Autor: David Lodge
    Título original: Deaf Sentence 2008
    Tradução: Guilherme da Silva Braga
    Editora: L&PM - 2010


    Ao folhear o livro o leitor pode assustar-se. Páginas maciças de escrita compácta, às vezes inteiras sem quebra de parágrafos. Uma densidade gráfica bastante incomum entre os escritores contemporâneos que já nos acostumaram a uma leitura ágil de frases e parágrafos curtos. Lodge é um daqueles escritores ingleses que mantém a descrição detalhada tanto de lugares como de personagens e acontecimentos. Mas nem por isso o leitor perde o interesse, muito pelo contrário. Apesar de ser apresentando como um romance, num primeiro momento seu título leva a crer tratar-se de um compêndio sobre os mal-entendidos de conversas entre surdos, especialmente pelo trocadilho do nome Deaf Sentence/Death Sentence - o que não deixa de ser compreensível, para quem é surdo, considerar o defeito como falência e morte da convivência. O autor se esmera em procurar frases facilmente irreconheciveis e deturpadas pelo ouvidos defeituosos. Auxiliado por um excelente tradutor que conseguiu - e não deve ter sido fácil - trazer para o nosso idioma, situações eficazes com um fraseado muito realista, o livro é, afinal, bem prazeroso. Para quem esperava que fosse um livro só dedicado aos percalços da surdez, é uma grande surpresa. O personagem principal é um professor universitário que resolve aposentar-se antes da hora, justamente por não mais poder escutar e entender alunos e discussões durante as aulas. Entre diversas situações delicadas no meio universitário que ainda frequenta, e a lida com uma segunda esposa empresária, com os filhos do primeiro casamento e com os netos, ainda assiste o velho pai que, além de ter também ficado surdo, começa a apresentar graves sinais de senilidade. Diálogos e cenas com ele são imperdíveis de bem cuidadas, cheias de momentos nostálgicos e frequentemente de humor. É nessas situações que Lodge transforma, com muita graça e sabedoria, o homem de letras um tanto irritadiço por sua deficiência, num ser humano mais "macio", mais compreensivo, mais aceitante de suas limitações e das dos outros, começando a divertir-se até nas aulas de leitura labial antes apenas toleradas para agradar a mulher. Lodge escreveu o livro em primeira pessoa, entretanto em alguns capítulos - ou parte deles - sem mais nem menos avisa candidamente o leitor de seu ímpeto irresistível de passar a relatar certos fatos em terceira pessoa. Com a mesma simplicidade volta à terceira pessoa sem prejuizo da continuidade e da coerencia. Ele usa essa alternência com um ar realista e crítico. Nessas ocasiões é que me perguntei se Lodge também seria surdo como sua personagem. E como eu. Vale levar esse livro nas férias para, quando cansados das andanças do dia, queremos algo bom e leve antes de dormir. Mas atenção: qualquer descuido e estaremos varando a noite.

    domingo, 6 de março de 2011

    OSCARS & OSCARS

    O Discurso do Rei


    Colin Firth e Geoffrey Rush: dois artistaços carregam o filme nas costas com suas interpretações, ambos dignos da premiação que só um levou. Uma fotografia competente eleva os dois à estratosfera durante os diálogos. E não somente isso. O fotógrafo consegue também criar uma metáfora muito expressiva: --Primeiro, nas imagens de neblina e chuva no e do interior de um carro onde o casal, que poderia ser um casal qualquer, é protegido por aquela impermeabilidade toda, enquanto troca dúvidas e angustias. --Depois pela visão impressionantemente bem conseguida do alto da nave central de Westminster que reduz praticamente a pó a imagem de quem está saindo dela.


    O percurso de um homem a caminho do reinado de um País e da religião que é nele embutida. Helena Bonham-Carter, como atriz coadjuvante, no papel da esposa e depois rainha, só convenceu por ser apropriada fisicamente ao papel: quem lembra da rainha-mãe da atual Rainha Elisabeth, viu claramente que a atriz, ao envelhecer, será sua fiel imagem: pequena e roliça.


    A primeira parte do filme, bastante enfadonha, é prolixa em algumas situações. Também, durante as várias tentativas da reeducação verbal, foi infeliz a referência às pedrinhas na boca com que - ao dizer do folclore - o gago Demóstenes tentava controlar laringe e traquéia. O que estragou mesmo foi a revelação - demasiadamente antecipada e numa cena ruim - da carreira frustrada de ator do "educador".


    Tirou do público o impacto da descoberta, quando acusado pelo rei. O Diretor Tom Hopper dirigiu o filme com luvas cirúrgicas para não arranhar a já tão desgastada casa real. Um corretíssimo roteiro, quase documentário, que não pareceu trazer nenhuma contribuição exemplar à arte cinematográfica. Estou ficando cada vez mais exigente quando vou ao cinema. A arte já tem diretores que marcam com veemência parâmetros cada vez mais elevados. O Discurso do Rei é um bom filme. O melhor da safra?




    CISNE NEGRO


    Na fábula musicada por Tchaikovsky, os cisnes eram efetivamente dois e na maioria das montagens teatrais, dançados por duas bailarinas diferentes. Portman é arrasadora na revelação, minuto a minuto, de um personagem tão duplo quanto o papel dos cisnes, o branco e o preto, que deve dançar. Não somente mereceu o premio de melhor atriz, mas ela, Nina-bailarina, estabeleceu um parámetro bastante definitivo na identidade dos dois cisnes. Não estamos falando da identidade-bailarina (sabemos do virtuosismo das câmaras que nos enganam nos momentos mais eloquentes da dança) mas do empenho, do "inner-ego" da Nina-Portman E de cada um dos dois cisnes. Não devemos avaliar Portman como bailarina, apesar de ter ficado bem evidenciada a competência com que ela investiu-se do papel com as partes do seu corpo que podiam sublimá-lo. O roteirista assumiu tanto os personagens do "Lago dos Cisnes" que dá oportunidade ao coreógrafo de comportar-se como o Mago da fábula, enganando Nina quanto à escolha definitiva do papel, provocando assim na já conturbada dançarina, mais uma explosão de angustia. Como Nina, Portman lança mão de um semblante sombrio com que esconde a impaciência para com sua mãe; a furtividade com que rouba os apetrechos da rival; a sutileza com que os orgasmos "solos" a investem de um prazer ignorado. Aliás, é justamente então que reparamos na qualidade do Diretor. Ele conseguiu- evidentemente através de efeitos visuais rebuscadíssimos - que os arrepios da epidérmide da protagonista tivessem, em cada poro, a quase imperceptível consistência da pele onde, a qualquer momento, surgiriam plumas. É a paulatina transformação da mulher/ bailarina em cisne. E só percebi isso na segunda vez em que assisti o filme. O Diretor Darren Aronofsky - o mesmo que nos emocionou com aquele "Wrestler" trazendo de novo à ribalta o então sumido e excelente Mickey Rourke - criou em volta da protagonista um emaranhado de grades, cercas e reticulados para aprisionar-lhe o espírito: -- as paredes apertadas da casa onde mora; --o espelho de recortes geométricos na entrada do apartamento que lhe secionam o semblante ao passar; --seus percursos nas coxias estreitas do teatro, onde, até quando ela senta no chão para amarrar as sapatilhas ou preparar-se às provas, é sempre num canto tão agudo onde mal cabem suas costas; --ela nunca anda pelas ruas, ou está dentro do metrô, de um taxi, dentro da cabine de banheiro, ou rapidamente na saida de uma boate obscura; --ela só tem espaço na grande sala de ensaios, ou no saguão do teatro, assim mesmo quase achatada por uma imensa escultura negra e alada; A maior área aberta em que o Diretor a coloca é a praça em frente ao teatro, para depois de poucas frases trocadas com o coreógrafo, jogá-la num hospital visitando uma suicida. Esse Diretor, que assumiu para si os sentimentos e as trepidações de três cisnes - dois do bailado e um da protagonista - ainda foi capaz de criar um duelo verbal, agressivo e enternecedor, entre dois grandes intérpretes: Portman e Cassel. Bastaria só o momento em que Cassel-coreógrafo transforma voz, expressão corporal e olhar, ao dizer " Eu acabei de seduzir você, agora é a sua vez", para definir o personagem "coreógrafo". Um Vincent Cassel - que vinha de interpretações apenas corretas em papeis de pouco peso e muita movimentação - nos surpreende com nuances de sutis transformações interiores: passa da fase de mero observador técnico, à de provável aproveitador de meninas que fariam qualquer coisa para conseguir o papel de cisne; do frio mas diplomático descartador de talentos esgotados à gradativa capitulação perante um talento novo e arrasador sim, mas impregnado de inseguranças, medos, frustrações. Capitulação que o humaniza apesar de si mesmo. Há inúmeros outros detalhes que fazem desse filme uma obra tão marcante. O mais marcante de todos - e reconhecido - é Aronofsky ter escolhido Natalie Portman para o papel. Seu talento é indiscutível. Desde os 13 anos, no papel da pré-adolescente naquele "Leon" * de cortar o fólego, ela interpretou muitos filmes diferentes, pondo a prova sua capacidade eclética de transformação e amadurecimento. Eis uma atriz que, a menos de trinta anos de idade, parece ter esgotado a procura do personagem-desafio. Sua interpretação é tão arrebatadora quanto perigosa: dificilmente em sua vida profissional se deparará com outro papel tão definitivo.






    *1994, produção Franco-Americana dirigido por Luc Besson, com Jean Reno Gary Oldman e Danny Aiello

    terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

    FAHRENHEIT 451

    MONTAGEM PARA A FORMATURA DE NOVOS ATORES

    NO TEATRO-ESCOLA CÉLIA HELENA


    Jovens, empenhados, vibrantes, emocionados. Merecedoramente aplaudidos. Eu estava lá, inveterada amadora do teatro a todos os níveis, e gostei. A meninada mereceu. A Cenografia interessante ocupou os espaços do palco com bastante propriedade. Já a Iluminação, apesar de ter usado muito bem as luzes vermelhas para enquadrar a violência ideológica que condena a cultura, deixou frequentemente demais na sombra os rostos e suas expressões. A Preparação Corporal trabalhou em favor de composições grupais que, em momentos de intencionais imobilidades, pareceram retiradas de pinturas que nos remeteram às mais íntimas e longinquas reminiscências de museus. De grande efeito, portanto. Entretanto a Trilha Sonora, mesmo bem escolhida, na maioria das vezes entrou em tom alto demais invadindo o espaço verbal tanto do coro quanto dos personagens. Aí foi que a Preparação Vocal pareceu pecar. Entre as moças a maioria delas, na preocupação de falar alto o suficiente para alcançar a platéia, acabou transformando a própria voz em sons tão estridentes que chegaram a prejudicar a compreensão da fala. Portanto aí houve algo deficiente na impostação vocal (internamente à boca) e sua projeção (no ato de sair): são dois recursos a serem trabalhados em dois tempos, além da articulação. Nem todos os atores tem um potencial vocal do porte de Arthur OLiveira Santos (Montag 1) ou de Hugo Reis (Montag 2), de longe, nesse quesito, os melhores em cena. Não entendemos terem sido alternadas a interpretação do mesmo personagem por dois bons atores diferentes. No meu ver ambos foram prejudicados: OMontag 1 foi tolhido da transformação do personagem de "brain-washed ativista" para sua humanização cultural, com as nuances necessárias para que sua postura física e expressiva revelasse a transição. O Montag 2 já nasceu humanizado e só nas falas revela seu "estado-obediência cega" anterior. A alternância dos personagens prejudicou mais os atores do que a platéia pois os interpretes deixaram de evidenciar o amadurecimento do ator/personagem, em quanto a platéia teve um prato servido que conseguiu degustar logo após uma fração de segundo de hesitação. Muitos dos formandos terão excelentes carreiras se a enfrentarem com paixão e perseverança, com coragem e desprendimento. E sobretudo com humildade. Pena que assisti ao último espetáculo: teria gostado talvez de rever detalhes, saborear de novo alguns momentos surpreendetentes na cenografia, a movimentação das estantes, a gesticulação delicadíssima com que algumas atrizes folhearam os livros, o aparecimento refrescante de Aldonza a um Dom Quixote demasiadamente circense pelo excesso de caracterização. Mas teatro é isso: um espetáculo ao singular.

    sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

    O CLUBE DOS ANJOS - G U L A

    Autor: Luis Fernando Veríssimo

    Editora: Objetiva 1998


    Lindo: esse livro deveria ser vendido e exposto em Galeria de Arte, com direito a vernissage e tudo mais. Na capa mil vermelhos se cruzam, se perseguem, se atropelam, com e sem contornos, com e sem intensidade, às vezes parecendo sombras, outras em fuga a fora...e a dentro das lapelas. O título, em letras brancas e finas estão aprisionadas pelas palavras "GULA": quatro letras em relevo,transparentes e luzidias, quase imperceptíveis mas presentes e intrigantes a abrir a curiosidade dos dedos de quem o manuseia pensando se irá comprá-lo. Antes de encontrar o texto, mais duas páginas de pretos e vermelhos mais intensos onde descobre-se uma coroa de cajus a contornar pratos, sempre pretos e vermelhos, de estilos diferentes, num dos quais um pássaro parece gangorrar-se com olhar suspeito. Ao folhear mais, a primeira página de cada capítulo é impressa em branco sobre fundo preto com letras surpreendentemente blown-up. Na última página de cada capítulo, sobrando espaço - em preto sobre branco, com letras normais -aí estão, de novo, em desenhos cinzentos, quase transparentes, os cajus, alguns pratos e hieroglifos em forms de folhas. O curioso já resolveu comprar o livro. Ao pesquisar os colaboradores daquela edição tão atraente, impossível não aplaudir Victor Burton, responsável pela capa e projeto gráfico. E uma Beatriz Milhazes, a quem se dá crédito de "ilustração da Capa GULA" SIC!...então a palavra GULA não fazia inicialmente parte do título que o Veríssimo lhe dera? Ele ganhou um presentão! O agora feliz dono do livro dispensa até o embrulho e a sacolina plástica da Livraria...oops, da Galeria! No assento do carro, ao seu lado, o intenso e fantasioso colorido ocupa o espaço de uma nova namorada. Esta noite estará muito ocupado... Ah, sim, mas: e o livro? Quem sou eu para estar resenhando um Luis Fernando Veríssimo...

    segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

    GUESS...

    Faz muito calor. Três horas da tarde, sol a pique e o trânsito não anda: só dez metros de farol em farol. Resolvo desligar o motor a cada sinal vermelho para que o carro não esquente tanto. Também, quem manda ter a malograda idéia de voltar do centro da cidade nesse horário... Por sorte, de dez em dez metros acabo chegando ao ponto onde as árvores de cada lado da Nove de Julho se encontram, se abraçam, me cobrem com alguma sombra. Por que ainda tenho um carro? Vou vendê-lo o mês que vem, aplico o dinheiro para andar só de taxi quando for absolutamente necessário. O 4x4 de placa vermelha à minha frente tenta uma manobra para colocar-se no corredor dos ônibus e, quem sabe, assim entrar no túnel com mais facilidade. E não é que ele consegue? Agora estou atrás de um Ka, pequeno, igualzinho ao meu. Que bom: por falta de volume visual à minha frente, tenho a impressão de poder respirar melhor, consigo até ver o céu. Lá em cima os predios parecem me olhar com paciência, quase com compreensão. Um deles, o mais baixo, parece diferente: nossa! Será que vão demoli-lo? Até os vidros todos já tiraram! Através do vazio dos janelões vejo o céu azul e olha: tem até algumas nuvenzinhas! Será que mais tarde chove? A luminosidade do dia apazigua minha alma, minha irritação, meu bufar. Pelo menos o começo daquela demolição me alegrou. Olho de novo para ela... Deus...Não é nada disso! Nossa, que bonito!

    domingo, 30 de janeiro de 2011

    ........E UM GRANDE PRESENTE

    Muito a propósito do comportamento animal e da coragem de um abnegado como o Sanbernardo da minha crônica anterior, acabo de receber de um grande amigo, Rubens Saboya, o escultor de fortes bronzes com a leveza de um grande poeta, o seguinte e-mail que aqui ficará registrado para sempre:

    "Perto deste lugar
    repousa um ser
    beleza sem vaidade
    força sem insolência
    coragem sem ferocidade
    e todas as virtudes, sem os vícios dos homens
    este elogio, que não passaria de adulação absurda
    se estivesse escrito sobre cinzas humanas,
    é apenas um justo tributo à memória de
    Boatswain, um cão
    nascido em Terra-Nova em maio de 1803
    e morto em Newstead Abbey, em 18 de Novembro de 1808"

    Lord Byron nasceu em 1788, ele tinha 20 anos
    quando escreveu este epitáfio.
    A biografia da qual retirei o texto é de André Maurois, boa
    de ler!
    O Byron é um dos meus heróis
    Beijo e abraço saudoso, Rubens "

    Só tenho que agradecer ao Saboya este presente que partilho com meus amigos e leitores,
    em homenagem à arte dos dois...

    quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

    CRÔNICAS DOLOMÍTICAS...

    Dolomíta é o nome geológico de uma rocha incomum. É muito típica de uma parte pequena dos Alpes, quase no último trecho à direita de quem olha o mapa, da cadeia montanhosa em arco que forma a fronteira natural da Itália. A rocha tem como característica uma coloração rosada que por seus cristais embutidos - e não visíveis - cria uma refração única dos raios solares colorindo as pistas nevadas e até os vales verdes mais longinquos.
    Foi lá, uma vez ,que admiramos o fenômeno de num pico nevado e ensolarado. No fim da tarde, surpreendentemente, nos foi negada a descida pelo teleférico. O encarregado explicou que havia sido divulgada há poucos minutos a chegada de uma tempestade de vento e neve que colocaria em perigo o trajeto.
    Chegaram mais dois casais com o mesmo problema e todos fomos encaminhados para uma "báita": este é o nome que se dá aos refúgios permanentemente espalhados em diversos pontos alpinos para todo tipo de emergências. O mais perto estaria a mais ou menos 150/200 metros de distância, detrás de um pico.
    Foi difícil chegar lá, pois todos tinhamos botas para neve, até com os pregos, mas não as raquetes necessárias para não afundar. Enfim, sim chegamos.
    Ao entrar tivemos que esperar que dois esquiadores saissem pela única porta escoltando um cachorro San-Bernardo com seu barrilzinho de conhaque no pescoço e um curioso brinco vermelho fincado numa das orelhas. Era a ronda obrigatória em busca de pessoas perdidas ou feridas. Ficamos todos apreensivos imaginando que, sim, afinal, alguém poderia ter ficado para trás.
    O interior da báita era quente, confortável, com pufes ao redor das paredes e ao lado da lareira onde, por uma corrente, estava suspenso um balde de cobre com água fervendo. A encarregada, uma velha senhora simpática, descartou com um grande gesto o gatão que estava dormindo no seu colo e que correu a aninhar-se junto de um Pastor-Alemão, que também dormia tranquilo num canto do salão perto de uma pilha de lenha.
    A velha senhora, pareceia uma pintura de Bruegel: aparentava mais do que seus 50/60 anos, pela pele queimada do sol, sulcos profundos mas um sorriso encorajador; malha grossa, calças enormes metidas dentro de longas botas peludas, cabelo no topo da cabeça amarrado com um chumaço de fitas coloridas.
    Ao distribuir canecas com saquinhos de chá para que nos servíssemos da água da lareira, falava algo lindo mas ininteligível: seguramente um dos dialetos locais, mistura de véneto, alemão da Áustria transalpina e do eslavo adriático.
    Canecas na mão, algumas encrementadas com doses de aguardente, começamos e conhecer-nos enquanto o vento uivava lá fora e a neve caia vagarosamente e de tempo em tempo, era varrida por grandes sopros silenciosos.
    Os holandeses, falando um inglês arranhado, eram fluoricultores em Keukenhoff, e o outro casal, velhos ingleses que á há alguns anos viviam na França, orgulhosamente confessaram-se exilados gastronômicos.
    O tempo passava sem que percebéssemos.
    Subitamente, gato e cachorro agitaram-se: orelhas em pé, patas em alerta. Na única janela, vimos os vidros congelados em desenhos cristalinos e pouca neve rodeando lá fora.
    O vento havia caido como por milagre e um silêncio se instalou no salão numa expectativa tensa. Antes que alguém pudesse falar, a porta se abriu: entrou o San-Bernardo com seu pelo rígido como estalactites, o sopro de sua fadiga saindo em pequenas fumaças intermitentes de seu bocão aberto.
    Foi naquele momento a aventura do imprevisto, a grande emoção que cortou a respiração de todos os presentes, menos a da velha senhora que continuou sorrindo como se soubesse o que aconteceria. O gatão malhado e o Pastoralemão encurralaram o San-Bernardo para o canto da sala, junto das lenhas e antes mesmo que a encarregada conseguisse retirar o barrilzinho do pescoço do cão quase congelado, os outros animais começaram a lambê-lo a partir dos olhos e das orelhas, no sentido do pelo até o rabo curto e rígido.
    O gato, chegando ao rabo, voltava à cabeça passando por cima do cachorro já na metade do caminho, numa alternância rítmica e carinhosa.
    O silêncio foi absoluto durante muitos minutos e a imobilidade de todos foi interrompida pela senhora inglesa ao meu lado que, num gesto calmo e discreto, passou-me um lencinho amarrotado e já molhado.