sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ESCREVIVENDOVOTOS

A TODOS OS ESCREVIVENTES : recebam meu carinho e meus votos de toda a felicidade
que desejam, merecem e que suas palavras e textos espalharão nas salas, nos blogs e na vida de seus colegas, instigando o estreitamento de amizades que - digam a verdade - não foram surpreendentes e inesperadas naquele casarão da paulista?
Portanto até sempre e, finalmente, Bruna.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

INTERTEXTUALIDADE - Ensaio

Precursora desde sempre da novíssima nanotecnologia, nossa mente armazena, desde o nascimento, visões, fatos, cheiros, sabores, sons, que re-afloram, na maioria das vezes espontaneamente, outras vezes repescados nos chips de nossa emória, quando,
repentinamente, toca uma campaínha inicialmente indecifrável. É o dejá-vu, o dejá-cheirado, dejá-saboreado, dejá-ouvido. Nossos chips respondem com uma rapidez extraordinária.
É para mim suficiente ouvir o barulho de um pequeno avião, daqueles que empinam faixas publicitárias, para acoplar àquele som o barulho do mar, o cheiro da maresia e o sabor de um picolé com alguns grãos de areia trazidos pelo vento.
Não bastassem as reminiscências da infância, é extremamente prazeroso atribuir a certos trechos de nossas leituras a intenção - às vezes inconsciente - do autor em remeter-nos a outros textos, nem que seja só no ritmo das frases.
Há um trecho em "Uma história do conto", ensaio de Guilerme Cabrera Infante, sobre aquele gênero literário, em que o autor de repente se dá conta de estar divagando ao falar de novelas e romances no lugar de contos, que era seu propósito. Num curto parágrafo em que ele se emenda usa umas poucas frases que tem o ritmo shakespeariano do discurso apologético de Marco Aurelio, e diz: "... Mas vim aqui falar de conto. Toda intromissão de outro gênero
deve ser considerada um digressão. E a digressão nunca deve ser
considerada uma agressão..."
Foi intencional? Que importa... O fato é que Cabrera nos traz o tom de defesa de um tribuno, tom este que sustenta, prova e enaltece a beleza do conto como gênero literário nobre, com brilho próprio e não uma mera etapa preparatória para o romance.
Roberto Pompeu de Toledo, em seu primeiro romance publicado recentemente, descreve um balão em frente a uma janela, visão primordial para a ilusão de uma mulher em driblar a morte: pode ter sido intencional ou não, a referência a um dos contos de O´Henry (l862-1910) em que, perante o pressagio de um médico de que a namorada morreria "quando cair a última folha da hera daquele muro", o amante pinta a folha para que ela não perceba a chegada do seu fim. Foi intencional? Pode ser que sim, afinal Pompeu de Toledo é um homem de letras e a obra de O´Henry é matéria, me parece, de liceu. Mas certamente é intencional a imagem que o mesmo Pompeu de Toledo cria, com genial e fortíssima pincelada, quando um de seus personagens admira o rosto de uma mulher muito bonita tanto de perfil como de frente, e confessa: "...Queria ter os olhos de Picasso para enxergá-la ao mesmo tempo de frente e de perfil...". Sou fã incondicional de Picasso e de suas mulheres "desconstrucionadas", e além de lembrar diversas telas do pintor, fui levada a "ver", num momento de prosáico devaneio, numa banca de feira, sobre gêlo moído, um fresco linguado.
Walter Salles, em seu excelente "Abril despedaçado", leva o jovem protagonista, uma vez decidido a abandonar as funestas tradições de vingança e motre do sertão, a escolher, entre os dois caminhos à sua frente, aquele que o levará ao mar. Como se o homem idenficiasse no mar o sentido de liberdade, muito ao gosto de François Truffault, na nouvelle vague dos anos 60, que usou a mesma imagem, com o mesmo sentido, em mais do que um dos seus filmes. Levando em consideração que "Abril despedaçado" foi adaptação de um livro de um escritor croata (em que evidentemente a família devia viver de outra coisa que não rapadura), surge a dúvida se a ida ao mar foi idéia do romancista ou do cineasta.
O importanbte é que todas estas refeências, voluntárias ou não, não desmerecem e não interferem nem nos textos de origem, nem naqueles derivados, mantendo o efeito, a qualidade e a criatividade de ambos.
Creio que foi o estudioso e crítico literário americano Harold Bloom, o primeiro a falar da "angústia da influência": ela é aplicável não só a literatura, ao cinemaa, à pintura e escultura, à moda e a todas gamas das artes visuais, mas seguramente também à música, ao teatro, à política. Seria necessário um ensaio extenso para exemplificar, defender e distinguir o plágio da emulação, sem deixar de levar em consideração o fato de que, quando qualquer autor suspeitar de estar sofrendo de alguma influência provavelmente colocar-se-á em xeque, atingindo sua auto-estima. Daí tê-la chamado "angústia".
Como último exemplo de minhas reminiscência, é o cheiro ainda fresco de bronzeador e de sol que em meados dos anos cinquenta, emanava da plateía do CineMetro Copacabana, que aplaudiu de pé - fato quase inédito -o filme "Milagre em Milão", em que o diretor De Sica, criou como última cena, a revoada de chapéus de côco do empresariado rico, derrotado pelo operariado das favelas. O russo Gogol, cem anos antes, havia levado aos devaneios da personagem principal do seu "O Capote", uma revoada de sobretudos em contrapartida do seu, velho e surrado, que lhe havia sido roubado. Me pergunto se esta lembrança é ainda tão vívida pela comparação das duas cenas ou, na época pela absoluta surpresa dos apláusos.

VIA CAMILLA, Uma rua de minha infância

Para Andrea que tem, num porta-retrato, a vista da janela do seu
quarto de criança e adolescente.

Cloct-cloct, cloct-clottt
Casco de cavalos em paralelepipedos
Cht-cht, grrrrgrrr, ggrrrrtt.
Rodas de aros altos, carruagens patrícias.
Não há mais. Já não havia.
Mas lá estão ainda altos portões duplos,
fileira de ferro pontiagudos
na base de carvalho envelhecido,
grande argola de bronze puído: tóquete-tóquete-tóquete,
só as crianças batiam: pura provocação.
Metade das portas sempre abertas,
à noite fechadas: correntes terminando em estribos
para tocar o sino, lá dentro.
Calçadas interrompidas,
arredondadas em frente às entradas, paralelepípedos
entrando nos pátios internos onde janelas olham
para baixo, fragmentos de mármores antigos
entre gramas e giéstas.
No meu: um pinheiro de gestos largos a roçar os vidros.
Haviu quatro prédio asssim, quatro andares,
na calçada do trecho onde morei.
Rua curta, duas quadras. Só três na calçada em frente.
O espaço que sobra, não estava vazio,
pequeno jardim, bancos e balanços:
tabuletas de carvalho em correntes de ferro
caindo de pinheiros generosos, araucárias antigas.
TTTTrrrrr-tttttrrrr gum-gum,gum-gum,ttttrrrrgumm
Cuidado, cuidado, não tão alto! Cuidado!
Vamos, está na hora!
Corrida de sapatinhos, botinhas de couro, gritinhos.
Reclamações: Tchau, tchau... Depois, quase o silêncio.
Mais um ploct-ploct-ploct: a bica d`agua não pára seu pingo.
Ele desce pela grade fundida, quase esculpida no chão: SPQR.
Senatus Populus Que Romanum.
Ah! Vespasiano das cloacas e da rede de fontes nascentes.
Dávida perene!
Não importa não haver árvores outras. Só uma, na quadra de baixo.
Carvalho antigo, onde termina a rua,
à beira dos trilhos de um trem. Que trem? Onde vai? De onde vem?
Que bom que alí a rua termine.
Só nossas crianças chegam aos mil pés do velho carvalho,
catando as grandes folhas que o outono despeja
para acarpetar os nossos presépios.
E as lindas glandes: chapeuzinhos miúdos, durinhos, cheirosos,
a encaixar-se, enfiados um no outro, para colares e lindas pulseiras.
E, pintadas de vermelho e dourado,
a enfeitar em pequenas guirlandas, nossa árvore de Natal.
Carvalho é árvores fechada: debaixo dele, escolhendo lugar,
tem frestas sonhadoras, às vezes brancas de nuvens,
outras douradas de sol. Adeus carvalho, adeus! Tenho que ir.
" Traga o pão bem fresquinho, aquele cumprido que o pai gosta!
Ah! lanche esperado, recheio de figo fresco,
doce mistura de presunto, cru e rosado,
branca gordurinha suculenta a dispensar manteiga.
Padaria perfumosa aquela: único comércio da rua,
balcão alto demais, na ponta dos pés a indicar,
braço e dedo em riste: Aquele, não aquele! É é isto!
E ao entrar, cheia de sabores, molhando a garganta,
saliva fresca e apetitosa, fechava o olhos,
na esperança de não encontrar, fácil àquela hora,
a vizinha ruiva, gorda gorda gorda,
rosto e pescoço, braços e pernas, tudo enferrujado de sardas,
a exalar um vago cheiro de peixe.
"São as sardas, minhas filha, tenha dó, são as sardas.
Dona Santa é mulher limpa, tenha dó. E cumprimente,
cumprimente sempre, que é pessoa educada"...
"Boa tarde Dona Santa, mamãe manda lembranças..."
E sair, rápida, para ao ar puro, fresco de pão,
correr, chegar ao jardim. Que alívio!
O cheiro silencioso dos pinheiros, o pingo gostoso da fonte.
Ploct-ploct-ploct
Senatus Populus que Romanum
Via Camilla, bairro Alberone.
Pinheiros de Roma, Fontes de Roma.
Respighi viveu por aqui.
Certamente...

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

OS GIRASSÓIS - Crônica

Falta pouco para chegarem os setenta e cinco.
Incrível. Eu tenho tudo isto? As rugas, as pelancas, os quilos a mais, as manchas nas mãos. Isto eu sei. Vejo, sou realista. Mas lá dentro, também tenho tudo isto? Esta vontade que ainda tenho de olhar, perceber, fazer, aprender, ela também tem tudo isto? E porquê ela, esta vontade, não tem rugas nem pelancas, mas é fresca e ágil? As manchas: serão elas esta dificuldade que tenho de lembrar nomes? E os quilos a mais, serão justamente a vontade de olhar, perceber, aprender, fazer, que cresceram? Ou será somente por que eu sei que "o tempo urge"?
Quando precisei mudar-me, transformei este meu novo pequeno apartamente numa quase varanda de tão claro, luminoso e alegre. Mais parece que o preparei para uma moça que acaba de entrar na faculdade! Talvez fosse mais condizente ter um carpete aconchegante de cor sóbria e fácil de disfarçar a sujeira, no lugar deste piso de laminado todo branco. Talvéz teria sido aconselhável forrar meu sofá de tweed cru no lugar do tecido xadrez em tons claros de azul e verde: aquele verde que combina com o teto pintado como uma tenra alface, para que, ao entrar, se tenha a impressão de estar saindo: para um jardim.
Nunca morei, na idade adulta, em casa com jardim. Só quando era criança e no jardim eram plantados alface, batata, tomate e cebolinha, servindo de despensa; era a Europa em tempo de guerra - não tem o que obter com os cupons/racionamento? vamos aos canteiros!
Deve ser por isto que estou literalmente camuflando este meu minúsculo apartamento. Gosto tanto dele que o elegi a meu apartamento definitivo. Esgotei meus recursos financeiros e não posso ter mais projetos de mudança. Na verdade nem quero: estou feliz dentro dele, não tenho por que querer outro. Decididamente ele é definitivo. Isto também quer dizer que ele será meu último apartameno.
Se olho para trás, apesar de ter já morado melhor, com muito mais espaço, mais luxo, mais mordomias, ainda assim sei que não vou abrir mão deste. Tive muito. Agora o meu muito é ele. Tive uma vida venturosa, com sucessos e derrotas, erros e acertos, alegrias e decepções, euforias e lágrimas. Andei pelo mundo, conheci muito - quase tudo o que pretendia. Na realidade nunca fiz uma lista do que queria conhecer, mas acabei cobrindo todos os lugares que me interessavam, quase que pela órdem.
Faltou o Nepal. Não quero dizer que conheci o mundo todo. Assim mesmo, faltou o Nepal.
Que coisa estranha: comecei dizendo que ainda quero muito olhar, perceber, fazer, aprender, conhecer, e de repente pareço acomodada, como uma velha que sou, abrindo mão do Nepal, contentando-me do colorido ovo que abriga e enternece minha vida. É uma incoerência, mas é a minha verdade. Por que sou realista e esta é minha realidade. Às vezes também - como todo mundo - fujo dela, mas sei que ela está aí, aí mesmo, no meu último apartamento.
Hoje, chegando em casa quis deitar na cama, pernas para cima, para ler. Ao ajeitar as almofadas e a luz, olho para o teto amarelo do meu quarto: amo o amarelo. Tem o ziguezaguear branco dos trilhos que abrigam os espotes que iluminam as gravuras e os objetos nas paredes brancas.
Ficou um desenho bonito este ziguezague: parece uma serpentina de cantos agudos, salpicada de pequenas manchas escuras que o calor das lâmpadas pinta no amarelo, como fossem estames de girassóis. Que boa idéia foi este amarelo.
E, de repente, lá está mais uma descoberta. Isto poderá vir a ser a última coisa que verei. Poderei lembrar desta visão final, depois? Depois do que? Ninguém jamais pôde explicar este "depois": ele é, como a criação de uma obra de arte, um ato de solidão.
Não deve ser ruim um ato de solidão com uma visão de alguns girassóis, quiça um campo inteiro de girassóis.
Seria bonito! Uma loucura!
Van Gogh que o diga...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

HABEMOS OBAMA - Ensaio

Sem fumacinhas, brancas ou pretas; sem paramentações ou alvas vestimentas; sem ar embevecido de humildade; sem ascetismos. Ele surgiu, como do nada, obscuro senador provinciano, internacionalmente desconhecido. E com a aprovação - amplamente demonstrada nos noticiários - de meio mundo, quiça do mundo inteiro. De onde tanta unanimidade?
Preparado? Quanto qualquer outroex-presidente, melhor até de alguns. Formado em duas das mais prestigiadas faculdades do país, casado com uma mulher culta e carismática, duas filhas: a típica família americana, classe média, sem tecnicólor. Provavelmente mais preparado ainda por já ser, por nascimento e criação, um cidadão do mundo, com convivências, familiar e "territorial", das mais variadas e heterogêneas. Isto cria, em cérebros de abertur ímpar, calor, entendimentos, compreensão, sobrevivência e uma capacidade infinita de conceder.
Inteligente? Nenhuma inteligência mediana, em menos de dois anos de "exposição" política, sairia de senador para o primeiro plano de uma campanha para Presidênciaa de um país como aquele.
Corajoso? Seguramente: após enfrentar acusações de todos os tipos, do islamismo ao terrorismo, da malversação (por um pastor!!! Haleluya...) à utilização de sua cor como bandeira eleitoreira, ainda teve a coragem de recusar o apoio dos seguidores de Malcom X que continuam batalhando não por igualdade, mas por um Estado Negro. Sua campanha eleitoral arrecadou - conforme permitido pela legislação daquele pais - a cifra recorde de 700 milhões de dólares: evidentemente não provenientes dos bolsos negros, a minoria menos abastada. De fato, e é de estarrecer, ganhou por pouco mais de 53% dos votos, dos quais somente 13% negros. Num país onde o U-klux-klan ceifou milhares de vidas em nome do racismo; onde ainda florecem comunidades hitlerianas (controladas a distância em nome da democracia); onde já quatro presidentes foram assassinados; um Barak Hussein Obama, com um nome que revela origem negra, africana, árabe e islámica, deve ter coragem. De todas as comunidades mundiais que aplaudiram sua vitória, uma única personalidade internacional (Kadafi, justo um líbio ditador e terrorista mediterrâneo) demonstrou preocupação ao dizer: "Temo por sua segurança".
Honesto? Seguramente, caso contrário seus oponentes já teriam, durante a campanha eleitoral, enquadrado e divulgado bens ilícitos, propinas, bandalheiras.
Autoconfiante? Ele tem uma confiança tão absoluta de estar no caminho certo que, no discurso apos vitória em praça pública de Chicago, sem ler e de improviso,traça o perfil definitivo
de uma nação em uma frase que permanecerá na história americaqna e mundial:
"Se existe alguém que ainda duvide que os Estados Unidos sejam o lugar onde todas as coisas são possíveis; que ainda questione a força de nossa democracia, a resposta está aqui, esta noite.(4.11.2008)"
Daqui em diante esta citação transformar-se-á em bandeira, orgulho e ditado, como aconteceu com a primeira frase de um discurso de Martin Luther Kind nos anos 60 " I had a dream! - "Eu tive um sonho". Interessante ainda o fato de que Obama fez referência a King unicamente no discurso de vitória e jamais em sua campanha eleitoral.Fez questão de não "apelar", evitando toda e qualquer pieguice.
Bem intencionado? Sério? É certo que está consciente do grande desafio que o espera:
- Ele sabeque não pode decepcionar um povo que votou nele primordialmente para livrar-se de um Bush inépto, superficial, mal aconselhado, cuja impopularidade tornou-o quase risível.
- Ele sabe também que para livrar-se de Buch o povo poderia ter votado em McCain, mas McCain é só um ferido de guerra promovido a candidato pela bandeira do patritismo, ainda membro de uma elite tradicionalista que não inovaria, e cuja mulher multimilionária não democratizaria em nada a imagem da Casa Branca.
- Ele sabe, o povo sabe, - e o povo sabe que ele sabe - que a sua frase de campanha "Change we can" não é somente uma promessa, é uma conclamação dirigida ao povo e que o povo aceitou. Muito estrategicamente sua campanha foi baseada nisto: no "Nós mudaremos", no "Nos podemos mudar".- "Plural Majestatis" na melhor forma da Roma de César; contra o "eu estou com vocês" do McCain, ele convidou "Vocês estão comigo, nós vamos mudar" e o povo aceitou. Não é somente o Presidente descendo às ruas , mas o povo entrando na Casa Branca. O poder dentro dela.
- Ele sabe que tem mil e um desafio a vencer, sendo o mais grave a situação econômica que - de resto - só estourou no meio da campanha eleitoral e para a qual ele poderia não estar praparado. Mas ele, firme, encarou o desafio. A crise americana - alastrada mundo afora - colocará sobre Obama, um microscópio feroz, constante, implacável: um cheque assinado esperando os fundos de cobertura que pareceriam dever sair diretamente do bolso do próprio Presidente Americano.
Assim mesmo a unanimidade espalhou-se aos quatro ventos. O mundo, e especialmente a Europa, tão orgulhosa de sua predominância cultural, de suas origens históricas, humanísticas e artísticas, e de sua importância mundial e ancestral, está aplaudindo a verdadeira democratização da América. Para ela Estados Unidos é América, um continente que abraça dois continentes num só, de Norte a Sul, e que finalmente curvou-se perante o reconhecimento da pluralidade de raças em coesão nacional.
Sei que é bastante deselegante citar-se a si próprio, mas vou fazê-lo assim mesmo, pois há pelo menos dois anos, num ensaio em que analisei os dois filmes de Clint Eastwood sobre IwoJima, preconizei:
"...o filme "Flags of Our Fathers" (" A Conquista da honra")....pode parecer uma afronta ao patriotismo exacerbado do dia-a-dia do povo americano....mas não é: Eastwood fez do filme uma ARMA PARA LEVAR AO AMADURECIMENTO O POVO AMERICANO QUE, APÓS ANOS E ANOS NO TOPO DO MUNDO, DEVERÁ COMEÇAR A CEDER À HUMANIZAÇÃO DAS RAÇAS E PASSAR DE HUMILHANTE - POR SUA PUJANÇA - A HUMILDE POR CONFRATERNIÇÃO. E QUE ISTO LEVE TEMPO, SE FOR PRECISO. NÃO HAVERÁ DESONRA NISTO".
Não levou tanto tempo assim. Eastwood e Obama lêem pelo mesmo prisma a história do país, e um senador jovem, inteligente e arrojado, parece empenhado em concretizar o que eu, ilustre joão ninguém, só cogitara em hipótese.
Pois aqui estou eu, mera aprendiz de escritor, sem nenhuma formação universitária mas carregada, na pele, de experiências de vida, septuagenária, caucasiana, romana e católica que presenciou, ao vivo ou por TV, dezenas de fumacinhas pretas e brancas ao longo de seis papados, aqui estou eu, pronta a depositar num americano desconhecido, da mesma idade de minha filha, a determinação de mudar e ajudar a mudar.
Acordar com uma pergunta: o que eu posso fazer para mudar, em meu favor, em favor do mundo, do planeta, da natureza, do meu próximo? Na minha idade parece não haver muitos futuros a serem projetados. Agora eu pareço ter encontrado um.
Só por ter semeado estas perguntas no coração e nos cérebros dos seres do mundo, Obama já cumpriu uma boa parte de sua missão; mas o que é certo e evidente é que além da semente firmou-se a aceitação para uma mudança que, o mundo inteiro já pressentia, há muito tempo deveria ter sido abordada.
Se saberá dialogar com outras nações, se virá a ser um bom Presidente para os Estados Unidos, se driblará a crise, ninguém sabe. Em nenhuma eleição de qualquer candidato isto jamais foi ou seria garantido.
Portanto, bem-vindo Obama a esta hercúlea tarefa que é conversar com o mundo. Ajudar ou ser ajudado por ele. Perder ou ganhar com ele.





quarta-feira, 12 de novembro de 2008

CRIANÇAS - Conto


Porte ainda seguro e ágil aos setenta e oito anos, o homem sentia-se ainda mais revigorado naquela manhã fresca e ensolarada. Descia a avenida curioso de descobrir se reconheceria a esquina onde deveria virar a esquerda para ir ao Museu. Lembrava que, ao atravessar, veria uma igrejinha em frente à qual, anos atrás, havia comprado de um artista de rua, uma linda gravura: a minúscula imagem de uma mulher em semi-perfil, olhando um passarinho pousado no seu ombro, que lhe oferecia um pequeno buquê de flores do campo. O artista jovem, barbudo e jovial, sorrira alegremente: “Está levando o que o Museu aí ao lado recusou !” Tereza havia adorado a gravura e a estória.
Tereza. Já naquela época, ela não viajava mais. Apesar de seu espírito combativo enfrentar tudo com coragem e até com algum humor, o Alzeimer afetara seu equilíbrio e ela sabia que a qualquer momento poderia-se ausentar, assim, de repente e sem perceber.
Esta viagem representava para ele a aposentadoria real. Ao voltar, largaria assessorias, diretorias honoríficas, orientação de investimentos para seus filhos e amigos. Entre a varanda da casa de campo para fazer companhia a Tereza, enquanto ela pudesse permanecer em família, e o seu pequeno escritório ao lado do alpendre, começaria a escrever. Queria reler sua vida, lembrar sua infância, seus anos universitários, os projetos realizados, as utopias ainda na gaveta e as já atiradas ao lixo. Queria preparar-se para a tranqüilidade, e talvez a solidão, de seus anos futuros. Quantos? Rever ao redor do mundo o que lhe dera tanto prazer outrora, seria como recarregar as baterias para a serenidade.
De repente soube estar quase chegando. O ar frizante da manhã de primavera animou-o a apertar o passo. Ao olhar o relógio, percebeu que o Museu ainda não estaria aberto. Poderia entrar na Livraria em frente e ver as novidades: gostava daquela livraria antiga, suas vitrines emolduradas de madeira entalhada; modernizada em seus vidros não refletivos, sua entrada imponente ainda ostentava puxadores de bronze artístico encaixados em cristais bisotê que lançavam reflexos azulados e esverdeados como os lustres de certos castelos.
Certo, a Livraria primeiro. O cartaz na primeira vitrine anunciava ,no interior, a exposição retrospectiva de um grande fotógrafo; na segunda o lançamento de seu livro: alguns empilhados e outros, cujas páginas abertas, projetavam algumas de suas mais importantes fotos. Irving Penn, o fotógrafo da cidade. Entre um ângulo inusitado da ponte Verazzano, a vista sombria das velhas casas do Bronx e o perfil solitário das fábricas abandonadas, uma menina estava olhando para ele, de baixo para cima, mãos escondidas num camisolão branco, muita luz na franjinha aloirada. Estranhamente, sua legenda em francês: “enfant de New York, 1953”.
Franziu a testa, perturbado: esta criatura deveria ter hoje, mais de cinqüenta anos... Estaria ela agora aqui? Teria o artista acompanhado a vida daquela menina ou teria sido ela um modelo casual?
Entrou com inesperado interesse. Ficou encantando com o que viu, especialmente por serem todas aquelas fotos em preto e branco. Suas sombras, suas infinidades de cinza, a imperturbável estática das fotos, tinham uma verbosidade descritiva e barulhenta ao mesmo tempo. Parou em frente à ampliação da menina de camisolão branco. Tinha algo nela, algo que lhe dizia algo, algo que o levava para algum lugar, longe no espaço, longe no tempo.
Saiu angustiado. Queria entrar no Museu e, antes de ver qualquer outra coisa, queria sentar na cafeteria ao ar livre, concentrar-se, tomar algo nos jardins repletos de esculturas e arbustos. Estava ainda aí a cabra de Picasso, com seu ventre que parecia moldado numa cesta de vime, daquelas em que se poe o coalho para conseguir o queijo: estava lá o humor cáustico do espanhol que, ao mudar-se para a costa francesa, não dispensaria, nunca mais, seus queijos picantes.
Sentou debaixo de um guarda-sol branco, quadrado, cuja sombra desenhava, em volta da mesa e da sua cadeira, um recinto bem definido, como que a limitar-lhe os pensamentos, as perguntas, as angustias. Quis abstrair-se daquilo que o atormentava: sem levantar-se correu os olhos pelo resto do jardim reconhecendo coisa por coisa. O velho cabriolé de Dalí cheio de musgo regado por invisíveis mangueiras que o mantinham úmido entre os caracóis que circulavam por fora e, por dentro, na nudez do manequim. O cavalo esguio do Giacometti, de bronze escuro e superfície áspera, como tivesse sido composto de pequenos e grandes cones de areia molhada por uma criança inventando sorvetes. De longe, identificou coisas novas: um animal enorme de gordo, provavelmente a mais recente aquisição de Botero; um grande dedo polegar pintado de vermelho e uma lasca de mármore branco infestado de formigas de arame multicolorido. De quem serão... Sempre novo, sempre vanguarda, este museu, sempre reconhecendo além das artes, o poder e a beleza do design.
Por tê-lo visto premiado naquele museu, havia presenteado Tereza com o “Movado 1968”, o primeiro relógio sem ponteiros, fundo de esmalte preto, uma gota de ouro branco nas doze horas, único ponto de referência para sua leitura.
De repente, agora, não queria levantar daí. O acervo ele conhecia; mas sempre haveria algo novo em alguma sala especial, certamente algum outro design premiado. O mundo estava cheio de artistas criativos, inovadores fabulosos. Mas era naquele jardim que ele queria ficar. Sentia necessidade do ar livre. Por que? Depois do primeiro reconhecimento do que tinha ao seu redor, era a imagem daquela “enfant de New York, 1953” que retornava sempre à sua frente. Quantas vezes havia estado na cidade e nunca havia conhecido nenhuma criança, fora as que vira na rua, nos restaurantes, nos hotéis que freqüentava. Entretanto era como se ele conhecesse aquele olhar de uma outra vida, de outro lugar, de um outro mundo.
Tentou pensar em outras coisas. Resolveu almoçar lá mesmo, para tragar outras sensações, para concentrar-se em algo que lhe trouxesse outro tipo de prazer. Viu, no menu, omelete de queijo de cabra com legumes ao vapor; um copo de vinho branco seria ideal. Em homenagem a Picasso, fez o pedido à garçonete que o atendeu com sorriso lacônico e, para esperar, começou a folhear o catálogo da Livraria. Em matéria de lançamentos era difícil escolher entre romances, biografias e panoramas de tudo quanto era especialidade, arquitetura, engenharia, design, até moda. Poderia comprar um lindo livro sobre a moda para Tereza: tão chique, ela que sempre sabia usar uma extravagância e continuar elegante.
Um gole de vinho antes de começar a comer, deu-lhe sensação de frescor e alívio. Ao lado do prato, o catálogo ficara aberto na página de Penn, e lá estava de novo aquele olhar, de baixo para cima, braços encobertos por camisolão branco, luz na franja dourada. Só uma garotinha. Agora podia observá-la melhor: uma expressão quase adulta, olhos muito grandes para uma boca tão pequena, olheiras profundas demais para uma criança; os lábios tristes, criavam um sombreado intrigante sobre o queixo. Por que ela não ergue a cabeça, por que não olha de frente? Timidez, medo? Seria curiosidade disfarçada? É isto, isto mesmo: ela quer fingir que não está olhando. É isto.

Como aquela menininha que ficava do outro lado do torrente enquanto eu tentava pescar, com caniço e anzóis improvisados, algum peixinho que subisse a corrente, quem sabe alguma truta como meu pai sabia fazer. Há quanto anos? Onde era mesmo? Sim, lá num vale escondido entre as colinas da Toscana. De repente este vinho tem o cheiro de minhas iscas debaixo do sol, do respingo da água que corria sobre aquelas pedras coberta de algas e musgos; tem o sabor da limonada que mamãe me dava, seriamente, quando eu anunciava, como se fosse uma grande aventura, que iria pescar. E na maioria da vezes lá estava a menina, do outro lado da água, com o avental branco da escola, a espiar-me fazendo de conta que não olha. Mas ela não era loira e não usava franja. Tinhas duas trancinha amarradas no topo da cabeça e cabelo castanho. E aquele olhar. O mesmo olhar da garotinha americana desconhecida, que agora me leva de volta à minha infância, que me pressiona para voltar. Voltar rápido: preciso guardar este momento, ampliá-lo, descrevê-lo, reescrevê-lo, como fosse a única maneira de contar minha estória a mi mesmo. É lá naquele olhar que minha estória começa, recomeça, tem vida. E se agora ele volta à minha memória, é por que em toda a minha vida, inconscientemente, me acompanhou sempre. Devo ter lembrado dele, muitas vezes, muitas mais vezes do que me lembre.
Comprar o livro com aquela foto dentro? Devo? Quero? Ela está guardada dentro de mim há pelo menos setenta anos e eu não sabia.
Sempre me pertenceu, é minha.
Como ousa aquele Penn?...


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

OBAMA BARAK, PRESIDENTE

Ganhou as eleições, conforme confirmação de hoje. Andrea, minha única herdeira (do pen drive conforme consta no meu perfil...) mandou um e-mail comentando o feito e escreveu uma frase que considero, além de importantíssima, vaticínica e, quiça, antológica:
"MAIS DO QUE A COR DA PELE, QUERO CRER QUE A PLURALIDADE CULTURAL DE BARAK PERMITIRÁ AOS POVOS DO MUNDO DE OUVIR-SE RECIPROCAMENTE E MELHOR" .


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

CARTA A ÉROS

Eros, eu não te conhecia.
Não sabia do teu cabelo liso, negro, comprido o suficiente para recolhê-lo atrás das orelhas.
Bastou eu perceber a intenção do teu olhar: vi teus braços jogados para trás, onde teus dedos, longos e nervosos, se agarraram à suéter negra, arrancando-lhe as costas e passando-as por cima da cabeça, descompondo-te as mechas.
Por um momentio o emaranhado de lã cobriu deu peito, enquanto teus braços continuavam
presa daquelas mangas pretas.
Uma mão no ar, depois a outra.

Aí eu soube quem era você.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A ERA DOS CARACÓIS, Crônica

(Para Benedito, caracol respeitoso, amigo novo, cílios espessos, olhar sábio)

O caracol é um bichinho estranho, sem pernas, alonga-se pela terra deixando atrás de si um rasto espumoso, feito barco no mar. Carrega nos costas sua casinha, leve e cheia de desenhos concêntricos em tons de ocre. Afinal é um simples molusco: lesma, com ou sem concha bem pequena e arredondada; caramujo terrestre ou aqüatico, com concha mais resistente; e os caracóis mais comuns, um tanto menores que os caramujos, com concha mais frágil. Algumas das espécies são até comestíveis, verdadeiras iguarias que, servidos em pratos especiais, exalam alho e mudam de nome para escargot. Existe mesmo um tal de Caracol de Pascal, que é só conhecido por grandes especialistas em geometria, ciência à qual o Sr. Pascal deve ter contribuido com seu estudo sobre o cálculo de distâncias em lineas concêntricas. Tudo isto só por ter ouvido falar.
Enfim, preciso me lembrar de consultar minha amiga Neuza a respeito, visto que o assunto caracol parece restrito mormente a biólogos. Mas só parece. Bem rapidamente teremos que consultar antropólogos e especialistas comportamentais pois, de uns tempos para cá, caracóis estão invadindo ruas, praças, metrô, ônibus, cidades inteiras. Em todo lugar há caracóis; e o mais estranho é que eles são bípedes! Melhor ainda: dá para identificar quais são mais inteligentes e mais respeitosos do próximo.
Explico: a maioria, sem raciocinar, carrega - como a natureza e os fabricantes ensinaram - sua casa nas costas. Dizem que é em benefício da espinha dorsal. Que espinha se são celenterados?...
Há outros porém que acabam carregando suas casas não nas costas, mas no peito: claro, assim seu manuseio torna-se mais fácil, melhor para protegê-las dos larápios, e finalmente, é melhor para manobrá-las sem atingir o próximo mais próximo. Com os apertos das conduções, todo próximo é mais do que próximo do próprio próximo.
Os que insistem em carregar a casa nas costas vivem golpeando, a cada virada, seu vizinho de trás. Outro dia vi uma moça bonita, um tanto baixinha, levar na cabeça - e nos óculos - a casa de um brutamonte que, não tendo percebido nada, nem pediu desculpas.
É claro que os jovens bípedes que vão à escola, devem poder carregar em suas casinhas, livros, cadernos, lápis, merenda. Mas, pergunto: os adultos precisam carregar toooda sua casa nas costas? Mil bolsinhas, compartimentos, ziperes dentro e fora: acham sempre o que querem? E tem sempre SÓ o que precisam?
Veio-me uma última pergunta: ao chegar à noite, esvasiam aquela casinha retirando tudo aquilo de que não precisarão amanhã?...
Caracóis por caracóis, antes de estar entre eles sempre alerta para não ser agredida, sinceramente prefiro sentar à mesa e regalar-me com eles, ao molho provençal, com bastante alho.

HINO À VIDA, por Rodrigo Leão à Manuela Marques Trotta

(Achado no Metrô, agora dedico no começo do módulo "Eros", aos antigos coilegas com carinho e aos novos colegas a título de boas vindas)

A vida é um milagre: saber levá-la com simplicidade,
honestidade, dignidade, amor e compaixão,
é um milagre dentro de um milagre.
Nessa jornada dificílima, só temos uns aos outros e nada mais.
Para todo perigo haverá uma sorte;
para todo percalço uma chance;
para toda sombre haverá um luz;
para todo problema, uma solução.
A vida é o oposto do nada.
Quem tem a vida já tem tudo.

TEATRO MUNICIPAL

(Para Neuza, que estimula nossas memórias com as suas)

Majestoso mesmo quando havia bondes passando à sua frente.
Imponente sentinela sobre um vale que chama à serenidade para quem consegue esquecer o barulho do trânsito. À noite, quando iluminado, esbanja suas formas hermoniosas.
Houve tempos em que era iluminado todas as noites, mesmo sem óperas ou concertos.
Houve tempos em que, ao passar em sua frente, eramos instigados a olha-lo e apreciar suas linhas e seus detalhes. Houve tempos em que, além de tudo isto, ele era o panorama arquitetônico e musical que coroava o fim da Rua Barão de Itapetininga que foi reduto, dia e noite, de elegância e intelectualidade. Era lá que desfilava a beleza e a riqueza não só da cidade, mas do próprio País. Era lá que uma Cristine Youfon, talvéz a primeira mulher que alcançou no Brasil notoriedade e respeito como modelo, esbanjava sua beleza e charme orientais, desafiando a classe e a elegância das Marjorie Prado da hora. No meio das boutiques de luxo, confeitarias e casas de chá tinham serviço esmerado e frequentemente pianistas e violinistas a partir das cinco da tarde.
Hoje em volta dele, almoça-se em lanchonetes e bancas improvisadas que vendem pedaços de bolo e café; compra-se de tudo em camelôs, do guarda-chuva ao CD falsificado; passa-se correndo, sem dar-lhe mais tanta importância: a maioria das pessoas nunca entrou no teatro e talvéz nem tenha sua curiosidade aguçada imaginando como seria por dentro.
Mas o Teatro Municipal está aí, firme e bonito, privilegiando os desejos de uns poucos que gostariam de ser músicos, cantores ou bailarinos, de serem ricos o suficiente para ouvir ao vivo a música que agora só recebem por MP3 indo ao trabalho ou voltanbdo dele.
E enquanto houver sonhos, ele estará aí, majestoso e imponente, objeto e miragem de raros desejoss, exalando arte.

ODE À MAÇÃ

(para Tiago e sua receita de torta de maçã
a ser degustada ao som da bossanova)

Grande, pequena, vermelha, alaranjada ou verde.
Rústica, com seu cabo ainda preso numa covinha enferrujada.
Ou limpa, pálida, brilhante e lustrosa como bilhas preciosas.
Suculenta, farinhenta, doce ou acídula.
Empilhada em pirâmide, coberta de papel de seda
ou protegida por luva de rede macia.
Não importa como.
Não importa a origem nem o nome fantasia
que o marketing lhe cria.
Atravessou mito, estórias e histórias:
de uma Eva aliciada por Adão
à Branca de Neve na mira da bruxa,
de Paris para Vênus, contra Juno e Minerva,
a Guilherme Tell em desafio ao invasor
para a independência helvética.
Maçã é também o fruto que Rafael quis,
num tríptico de altar genovês,
que Madalena oferecesse a Cristo.
Ela é rainha em naturezas mortas
entre tachos de cobre, vasos de flores e cachos de uva,
desde os clássicos Holandeses, Renascentistas
e até os Impressionistas.
É tema de filmes, de contos, de feiras.
Desde sempre mãos maternas a abrigam em concha,
metade de cada vez, raspando com colher
as primeiras sobremesas.
E continua na nossa mesa,
alimento dos mais saudáveis.
Freqüenta os menus mais sofisticados
em todas as línguas do planeta:
da nossa torta de maçã à apple-pie,
do apfelstrüdel à tartetatin,
com sorvete, chantilly ou coulis de raras frutas vermelhas.
Maçã! uma fruta e tanto!
Até pronunciar a palavra ma-çã
nos dá a sensação
de estarmos abrindo a boca na primeira sílaba,
para dar uma gostosa mordida na segunda.
Privilégio e prerrogativa só de nosso idioma

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

TRINTA ANOS: DUAS OBRAS DE WESLEY DUKE LEE DUAS FASES DO PODER DE CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO ARTISTA

Ensaio

Wesley Duke Lee – brasileiro apesar do nome - pintor de vanguarda, não conformista, experimentador, pesquisador e poeta da forma, questionado e endeusado. Quase desconhecido, sempre mal conhecido. Ele entrou na minha vida de modesta colecionadora de arte, há trinta anos, pela mão de uma obra intrigante, para começar, pelo seu título:

“Minha viagem à Grécia no Helicóptero de Leonardo da Vinci”
Ensaio Filosófico Visual, de Wesley Duke Lee,
36 transformações de sua autoria
Divagações por Pietro Maria Bardi
Editora Praxis Museu de Arte de São Paulo, MASP, 1978.

No lançamento, de tacada duas personalidade controvertidas que agitavam o mundo das artes do São Paulo daquela época. Agitaram e enriqueceram para sempre. Naquela época, uma obra apresentada em uma luxuosa caixa de linho azul, reunindo as gravuras de um artista, juntamente com a apresentação escrita de um “senhor” entendedor como o professor Bardi, fundador e diretor do MASP , e críticas de especialistas do gabarito de uma Cacilda Teixeira da Costa, foi uma revolução no mundo e no mercado de arte da cidade. Disse-se de tudo a respeito da idéia, mas isto não me tirou o prazer, durante anos e anos, de espalhar as gravuras no tapete de minha casa, e, deitada de barriga no centro delas, viajar para a Grécia com Lee, no helicóptero de Leonardo. Foram tardes de imenso prazer, mergulhando no mundo de Lee todo fim de semana para trazê-lo dentro de mim e fundí-lo com aquilo que eu já havia estudado e incorporado das obras do Leonardo: uma descoberta e tanto. Se por um lado os críticos e apresentadores do Lee haviam mencionado sua identificação com Oswald de Andrade e Flávio de Carvalho para muitas de suas manifestações artísticas, para mim não foi de estranhar que ele tivesse-se inspirado e aliado a Leonardo para percorrer o caminho da mitologia grega naquelas 36 gravuras, que ele chamou de “transformações”, e que traziam uma releitura profunda e bem humorada dos mitos; releitura às vezes crítica, outras cínica. Em “Minha viagem” Lee quase sempre acompanhou seus desenhos à reprodução do desenho original do “helicóptero” e suas especificações técnicas de punho do próprio Leonardo; outras vezes um deus, uma deusa ou um cavalo, animal-rei por ser o meio de transporte básico do século XIV, vivido por ele. Muitas das invenções de Leonardo, - nem todas realizadas mas de perfeita utilização como comprovou a IBM nos anos 80*, - foram dedicadas à locomoção. Desde as eclusas, que ainda regem muitos dos tráfegos fluviais, ao empírico sistema de bolinhas aplicadas às rodas das carroças para medir distâncias, e ao, finalmente, “parafuso voador” cujo principio básico ainda move nossos helicópteros. Mas também dedicou-se a pequenas amenidades, como a simples junção de retalhos pentagonais e exagonais para compor a bola perfeita que ainda rola em muitos de nossos gramados milionários; ao sistema de refrigeração a água que instalou nos aposentos de Ana de Bretanha no castelo de Amboise; ao sistema pantográfico e a mil e uma pequenas coisas cuja origem já nem lhe é mais atribuída visto as evoluções que a técnica moderna lhes imprimiu. Não por nada Bernard Berenson, o crítico e estudioso americano que revitalizou o Museu do Palacio Pitti de Florência, definiu Leonardo o “precursor da tecnologia”, em vista das soluções por ele propostas. Inusitadas levando em consideração sua época. Apontadas por Cacilda Teixeira da Costa, as diversas formas da obra de Duke Lee “são permeadas de uma preocupação essencial: os mistérios da origem, do sagrado, da felicidade, da sexualidade e da morte”. Estas fontes vem da literatura religiosa do ocidente e especialmente da mitologia grega cuja tradição filosófica sempre verteu sobre a relação vida-morte e, essencialmente, sobre a necessidade de eliminar os obstáculos que demasiadas vezes nos impedem de viver bem conosco e com o próximo, de viver uma vida com conforto espiritual e físico, com lazer e prazer, assim como morrer deixando lições. Leonardo baseou sua cultura humanista nos legados dos sábios latinos e sua cultura técnica nos dos gregos. Além de ter sido o primeiro a deixar – preto no branco- o mais perfeito registro das proporções do físico humano, ele abrange, em seu “Código Atlántico”, mais de mil manuscritos e desenhos tão ecléticos que vão da literatura à arte militar, da astronomia, à hidráulica, geometria, aeronáutica, acústica e ótica. Em “Minha viagem”, Lee apossou-se tanto do “parafuso voador” de Leonardo, como de sua ótica, para ir simbolicamente à Grécia resgatar, do classicismo, sua própria visão realista do mundo de hoje. Ele não descreveu sua viagem à Grécia naquele helicóptero, mas transformou sua emoção visual e sensorial, guardando em sua memória os mitos e suas representações esculturais gregas, como fossem negativos de fotos hipoteticamente tiradas há dois mil anos e finalmente revelados e impressos nas suas 36 gravuras. Isto ficou muito evidente no poema introdutor à sua própria obra. É de se estranhar, portanto, que ele não tivesse chamado as suas gravuras de “revelações” em vez de “transformações”, pois na realidade seu significado se enquadrou não somente numa etapa da arte fotográfica, mas primordialmente na aparição e identificação de verdades, descobertas e reconhecimentos: as verdadeiras revelações. Mais ainda é de se estranhar que Lee não tivesse ostensivamente acusado Leonardo de omissão por não ter arquitetado – do alto de seu parafuso voador – mais um dispositivo ardiloso que registrasse o panorama para a posteridade. Em suas “divagações analíticas”, como chamou sua apresentação da obra de Lee, Bardi aproximou as “revelações” de Lee às múltiplas faces do processo criativo da obra em questão; inclusive à essência da nossa leitura, qualquer que ela seria, e à essência do próprio Lee, qualquer que ela tenha sido ao criá-la. Hoje, depois de trinta anos, eu dou bom dia a uma gravura daquela série: ela colore uma das paredes brancas do meu pequeno apartamento, entre duas janelas, sem receber luz natural direta, nem reflexos de lâmpadas. Suas cores são nítidas e puras. As demais foram distribuídas – ao longo dos anos – aos amigos mais queridos por ocasião de festas e aniversários; devidamente enquadradas em passepartout neutro, (sem moldura para que todos pudessem exercer o próprio estilo), acompanhadas de xerox do poema e das divagações que compunham a documentação original da obra. Foi a maneira que achei de compartilhar meu prazer, já que não disponho mais do espaço necessário para a apreciação da obra em sua totalidade. De repente: há poucas semanas a revista “Veja São Paulo” trouxe o artigo “O retorno do Mestre”, Wesley Duke Lee: na Galeria Ricardo Camargo, estariam as telas da série “O Filiarcado”, de 1999, re-apresentadas como despedida do artista que, afetado pela doença de Alzheimer, encerraria assim suas presença física no mundo das artes. Seria uma oportunidade única para quem não conhece a obra de Lee e imperdível para quem já tem familiaridade com sua identidade artística. Foi lá que reencontrei as elucubrações do visionário Lee: grandes telas em formato de losango, em pé, fixadas por uma das pontas, em pedestais de vidros e aço, como estivessem soltas no ar, melhor: ao ar livre. Como as crianças que ele pintou, divertindo-se com brinquedos rudimentais, hoje quase históricos. Desta vez, Lee entregou-se corpo e alma à técnica renascentista: seus “puttini”, não diáfanos como os anjos de Andrea del Sarto, mas plebeus e realistas ao gosto do Mantegna, dançam, nadam, jogam ao tiro-ao-alvo, à cabra-cega. Acertaram os curadores da mostra, Ricardo Camargo e Roberto Comodo, ao identificar o estilo de Mantegna nestas pinturas de Lee, pois apesar do Mantegna ter sido um dos precursores da renascença, foi seguramente o primeiro “verista” por ter usado como modelos os rostos do povo, dos marceneiros, dos pescadores, dos mendigos, das prostitutas, mesmo em temas religiosos. Não tendo mecenas que lhe sustentassem a fúria criativa, Mantegna venceu justamente por seu realismo exacerbado: seus santos e mártires são figuras reais que se imolaram por uma crença, sem ascetismo. O seu “São Sebastião”, no Louvre, mostra ombros e pescoço fortes de operário musculoso, mandíbula enrijecida, olhar pronto a suportar o martírio. Dentro daquela galeria, num beco charmoso atrás da Faria Lima, uma iluminação cálida, entre o ensolarado e o “vermeil” metálico, enfatizava os três tons em que Lee dividiu suas pinturas: albedo ( fração clara de luz difusa em superfície), rubedo (fração avermelhada), nigredo (fracão escura). Todas as telas apresentam relevos provocados por camadas irregulares; “espatuladas” de areia, talvez algumas de gesso, argamassas recobertas de uma das três cores; crianças contornadas por pastel à óleo: os corpos nus, os rostos mais variados onde reencontramos o sarcasmo lúdico de Lee: na cabra-cega, um dos meninos tem traços envelhecidos, como se há anos estivesse brincando da mesma coisa sem nunca ganhar. Os dois no trenó, bem maiores dos três que os puxam, tem a expressão mais adulta e claramente sardônica. Lee divertiu-se não em pintá-los, mas em criá-los. Se as telas nos remetem a desconhecidos desenhos rupestres, seus conteúdos nos colocam perante as últimas lembranças de um fauno que cresceu, envelheceu, e agora, no limite de sua existência, relê sua vida, deixando-nos só a parte ingênua, naive, natural, infantil para sempre, como se a vida do artista estivesse apenas começando: bem-vindo ao mundo, Wesley.

· Nos anos 80, a IBM trouxe para o MASP a exposição completa que mantêm desde os anos 60, na casa em que viveu Leonardo da Vinci, em Amboise, no vale da Loira, onde, no castelo gótico-renascentista de Carlos VIII, trabalhou por muitos anos com o patrocínio de Ana de Bretanha. Naquela casa a IBM mandou construir – obedecendo todos os detalhes dos desenhos de Leonardo, mas alguns em escala menor – todas suas invenções, colocando-as em funcionamento, e comprovando portanto sua exatidão.

“O SENA NA NEVE”

Miniconto gastronômico para um amigo

A meia lua de lâmina duplas ondula sobre a tábua de madeira, triturando, esmagando, amalgamando salsa, alho, tomilho, tomate seco e azeitonas verdes, junto com os champignons frescos, cheirosos, completos de chapéus e talos. Um festival de cores. Rápido, rápido, tudo para a frigideira de ferro, antes que a manteiga escureça. Rápido, o golpe giratório para que as cores comecem a rodar em volta das bordas. Uma boa dose de conhaque e, rápida, a chama do gás para dentro da frigideira.
A mão direita do homem firme no cabo, a esquerda no ar, trazendo com gestos macios o aroma para perto do nariz. Olhos entreabertos, satisfeito, sorri.
Sobre o “réchaud” um prato aguarda: chiquérrimo, ovalado, todo branco. Duas folhas de alface, uma de cada lado; uma tirinha de brie sobre uma, uma de camembert sobre a outra. Rápido despeja as cores da frigideira entre as duas alfaces, um filete de creme fresco em cima de tudo. Dois grãos de zimbro para enfeitar e o moedor de pimenta sobrevoa rápido o prato. Está pronto.
As duas tiras de queijo sobre as alfaces lembram uma vista de Paris: os cais da Rive Gauche e Droite debaixo dos plátanos. Aí está: “O Sena na neve”. O homem sorri novamente: que bom nome para este prato, lindo, perfumado, leve, o melhor que tem criado nas últimas semanas, digno de um Bocuse. Senta-se olhando para o lugar vazio do outro lado da mesa e ataca de garfo.
Ele saboreia tudo. A decoração está linda: dois lugares, um em frente ao outro, velas em dois suportes com pequenas guirlandas de flores amarelas, copos de vinho, de água, de champagne. Um Sauterne já aberto para respirar.
Do outro lado da mesa: o prato imaculado, a corola de copos, o espaço entre as duas velas; tudo cria uma moldura ideal para uma linda cabeça ruiva, dois olhos claros e um sorriso suave. Aquela imagem acompanha seu jantar. Sua vizinha do andar de cima é alta, esguia, rabo de cavalo, maquilagem zero, passo elástico em sapatos baixos e macios. Seu ar modesto, mas seguro, sempre lhe inspirou serenidade e, ao mesmo tempo, autoconfiança.
Agora, do prato do homem, já vazio, um molho solitário olha para ele, convidativo. Furtivamente, da cestinha de fina palha prateada, um pãozinho macio, parece piscar para ele. E ele não vai desperdiçar aquele deglacée divino...O Sauterne está apenas fresco, no ponto certo: pode estalar a língua......em total, quem vai criticá-lo? Na outra extremidade da mesa, o branco do prato vazio, parece reprovar. “Isto não se faz, não é de bom tom...” O homem levanta o guardanapo do colo, cruza os braços satisfeito. Seu olhar perde-se na escuridão entre as duas velas.
“... Tá, prometo que não farei nada disto. Semana que vem, crio coragem e a convido para jantar... Como será que ela se chama...”

ENSAIO SOBRE “UMA HISTÓRIA DO CONTO” DE GUILLERMO CABRERA INFANTE

Difícil escrever um ensaio sobre um texto que já é um ensaio “di per se”, só que de autoria de um escritor com a E maiúscula, que o tratou como uma composição literária e não como um exame técnico-analítico. A linguagem de Cabrera canta, tem ritmo, onomatopéia, quase rima:

........houve contos feitos inteiramente de prosa: um conto em verso não é um conto mas outra coisa: um poema, uma ode, uma narração com métrica e talvez com rima: uma ocasião cantada, não contada, uma canção...

Daria para solfejar: não tivesse obedecido às linhas corridas da prosa, poderia ser chamado de poema. Cabrera, cuja obra não conhecemos a fundo, demonstra ser um apaixonado do conto, fazendo-nos perceber que Conto é um gênero nobre, com brilho próprio e não uma mera etapa preparatória para o romance. Ele nos dá a história do conto com a habilidade, a leveza, a versatilidade e todos os demais elementos que identificam o gênero, inclusive ironias e trocadilhos

(.....na saga arturiana que não se deve confundir com a sopa asturiana, conto de favas...),

críticas e sarcasmos

(...o livro do escritor cairota Naguib Mahfuz quer ser árabe e é apenas egípcio),

e até pede emprestadas a Jeronimus Bosch e Salvador Dali imagens surrealistas

(...até que chegou Stalin e, com seu cultivo forçado do realismo socialista, transformou a fértil
literatura russa num deserto com tratores...).

Enfim, Cabrera demonstra ser um contista da melhor qualidade, num texto em que poderia ter se limitado a oferecer nomes e estilos das épocas, na aridez de uma listagem seletiva de “ quem é quem” no mundo do conto. Mas ele se alimenta- e nos alimenta – da pesquisa sobre os primórdios da comunicação, levando em consideração que hieróglifos e ideogramas rupestres já eram uma forma de transmitir um acontecimento, portanto contar uma estória, um conto. E que os homens descendentes daqueles que os esculpiram em pedra, foram ampliando as mesmas estórias de geração em geração até que:

(....passados tantos séculos, o homem que conta já havia aprendido a escrever e, é claro, a ler, e outros animais e outros homens que se transformavam em animais, povoaram com contos o que chamamos mitologia, mas que para eles era a transcendência chamada religião..)

É a partir da mitologia que Cabrera inicia seu passeio prazeroso através dos estilos: do grego Homero, ao romano Ovídio, até Petrônio, cujo Satyricon foi considerado o primeiro romance por ser a reunião de estórias fragmentadas a respeito dos mesmos personagens. E o inconfundível estilo dos contos árabes e orientais de transmissão oral, até os contistas que começaram a ser publicados, mesmo que manuscritos em pergaminhos ou em outros tecidos vegetais, o que começou a criar, de alguma forma, o registro mais tangível da criação literária. Seria inútil falar aqui de todos os escritores que Cabrera menciona, mas o importante é ter entendido a influência que uns exerceram sobre outros, às vezes provenientes de culturas e línguas diferentes. A clareza com que Cabrera nos leva de um autor para outro, nos abre portas para descobertas pessoais. De repente parece lógico que o “Decameron” - coletânea de contos picarescos de Boccaccio em 1300 – tenha influenciado os “Cantebury Tails” de Chaucer, mas não os “Contos Exemplares” de Cervantes. Levando-nos de mãos dadas pelas páginas de autores ingleses, russos, franceses e americanos, Cabrera nos apresenta os gêneros mais diferentes, do policial ao mistério, ao horror e ao suspense, ao socialmente e politicamente engajado. Ao chegar à produção do conto contemporâneo, Cabrera nos dá. Com um acidez mal disfarçada, quase uma crítica a escritores que publicam em revistas e semanários suas obras até em episódios, como fizeram Updike, Parker, Fitzgeral. Devemos discordar para não ter que tachar de oportunistas os grandes pintores e arquitetos que, na Renascença e antes dela, foram protegidos por reis e mecenas. Na nossa era quem escreve raramente tem uma fonte de renda suficiente só pela venda de livros; publicar em revistas, jornais e semanários, escrever roteiros de cinema e crônicas jornalísticas não somente enriquece a conta bancária, mas contribui a manter vivo o interesse pelo autor. Ou seja: os meios de comunicação de hoje exercem a função de divulgação em grande escala, da mesma maneira que reis e mecenas faziam –em escala mais restrita -provocando a admiração – e frequentemente a inveja – entre seus pares. Extremamente interessante a maneira como Cabrera se policia quando percebe que está divagando, trazendo a tona obras que, ou não são contos mas novelas, ou são obras vertidas para o cinema. Num curto parágrafo, que tem o ritmo Shakespeariano do discurso apologético de Marco Antônio, ele se emenda:

“.....mas vim aqui para falar de conto...Toda intromissão de outro gênero deve ser considerada uma digressão. E a digressão nunca deve ser considerada uma agressão....

Assim que for possível pretendo conseguir as duas obras de Cabrera, esgotadas há tempos, que a Cia. Das letras publicou: “ Havana para um Infante Defunto” e “Mea Cuba”, cujos títulos já revelam um apuradíssimo sentido de humor cultural. É até possível que possamos descobrir que existem mais livros, além dos que conhecemos, que não se lêem somente por que se publicam!

AME.

(texto de amor com poemas para uma amiga que já é poema)

Escuridão* Três fósforos, um a um, acesos na noite
O primeiro para enxergar teu rosto inteiro
O segundo para ver teus olhos
O último para ver tua boca.
E a escuridão total para lembrar-me
de tudo isto enquanto te aperto nos meus braços.

Amar não é só apaixonar-se, desejar, querer tocar, querer sorver e absorver, trocar beijos, fluidos e sonhos. É também trocar respeito, amizade, cultura, gostos, sabores. É também construir algo dividindo seu dia-a-dia com alguém, mesmo que não seja para sempre. Mesmo a dois – e enquanto durar – aquele construir tem que aglutinar os seres ao redor, sem isolamentos, sem segredos, sem vergonhas ou pudores. Na mais sincera forma de aceitação, livre de preconceitos, de exigências, mas oferecendo e aceitando críticas procedentes mas construtivas, portanto benéficas. Seguramente, uma das mais lindas e gratificantes formas de amar é – mesmo sem se amar reciprocamente – aprender a amar a dois a mesma coisa. Será a única forma de enriquecer e perpetuar o amor que já nasceu conosco. Entretanto nos surpreendemos diariamente com o nosso próprio esquecimento de valores, e só mais tarde nos conscientizamos que pecamos. Tarde demais? Nem sempre: vale pedir desculpas, confessar, retratar-se? Vale, sim: Se nosso amor for maior que nosso orgulho. E ame também as coisas ruins que cruzam e cruzaram sua vida. Ame sua infância, sua vida passada, mesmo sofrida. Ela lhe trará cheiros e sabores que você pensa ter esquecido. Ame sua força de superar e superar-se: ela é a fazedora de resultados, apesar de tudo. Respeite-se por ela. E, sobre tudo, não abra mão de seus sonhos, nem do seu sonho de amor, mesmo inadequado ou esgotado. Como disse um poeta quase desconhecido**, neste versinho amargo mas revelador:

Não obstante meu ardor,
esta atração enorme que me envolve,
não posso prosseguir:
Você é humano demais para o meu sonho

*Jacques Prevert (1900-1981?) escritor e cineasta (Os visitantes da noite, As crianças do Paraíso, O cáis das Névoas)- No livro: “Palavras”
**Arlindo Viana,- No livro “Poesias em quatro atos”.

O CRIME

(conto cinematográfico para um amigo dos olhos de avelã)

Magro, roupa surrada, olhos grandes demais, o rapaz entra no prédio com passo seguro. Já está cansado de subir aqueles três andares pela enésima vez, cansado de ter que enfrentar aquela velha nojenta. Ao olhá-la, sempre tem a sensação de que a profissão dela não era agiota, mas vampiro. Quando ela abre a boca ele sente naquele hálito o cheiro de seu próprio sangue, e a cada vez sente que aquele vampirismo aguça-se cada vez mais, complacente, olhando para ele com aquele olhar ambíguo, entre o cínico e o guloso, quase a dizer-lhe: você não sobrevive sem mim. Nunca o que ele lhe entrega é bom o suficiente para que o empréstimo do penhor chegue perto do que ele precisa. Mas hoje será diferente. Ao receber seus últimos haveres, ela abrirá uma caixa onde guarda os butins, tirará do moedeiro e escolherá uns poucos trocados para colocar na palma de mão dele. Hoje é diferente sim: é ele quem a olha com olhar homicida e assim que o butim e dinheiro estão a vista, ele prepara-se a fazer o que mil vezes sonhou fazer. Pronto: agora posso estrangulá-la. “Não, não!” grita uma voz surgida do nada. “Tire a faca do bolso, mate-a com a faca, longos cortes profundos, como se fosse com um sabre: quero sangue, muito sangue. E se aparecer a idiota da irmã, mate ela também!” Apareceu. As mãos do rapaz trabalham sem parar: gargantas, braços, corações, ventres. “Tem que jorrar, quanto mais sangue melhor! E rápido, para que o sangue se junte e desça escada abaixo! Quero um rio, com ondas e com toda a sujeira do lixo de Leningrado, e se calhar, o de Moscow”. Atônito, o rapaz não está preparado para tanto. Enquanto enfia no bolso o que pode em jóias e dinheiro, começa a patinar em cima das poças de sangue e, já fora do apartamento das velhas, escorrega até cair no chão; na escada tenta segurar-se nas grades dos corrimão, mas suas mãos já não têm aspereza suficiente para se agarrar em nada, tão encharcadas estão daquele vermelho pegajoso. Ao escorregar, escada abaixo, degrau por degrau, sua nuca bate em cada um, seus olhos mal vêm o revés do lance de escada do andar de cima. De repente, a voz de Sônja. Sim é a voz dela: em pé no corrimão do quarto andar, aos prantos: “Espere, espere, vou te ajudar!” E salta no vazio, certa de chegar ao térreo antes dele e ampará-lo. Suas roupas enchem-se de ar como um guarda-sol para amenizar a aterrissagem. Mas eis o comissário entrando no átrio aos saltos, e já ao pé da escadaria, agarra o pulso de Sonja que fica suspensa no ar, pisa fundo com o pé esquerdo no peito do rapaz, imobilizando-o, e com a mão esquerda aponta a arma à sua cabeça. A voz volta a gritar: “Congela!!” Um velho, de fronte muito calva, mas de bigode, barba e cabelo compridos, sai da escuridão e corre para o homem sentado no alto de uma máquina. “Não, não é assim, nunca foi assim, não quero que seja assim. Você não pode fazer isto!” O homem desce, acaricia seu longo queixo sem disfarçar sua satisfação interior e replica: “Cale a boca, Fiodor. Eu sei o que estou fazendo. Quando isto sair, o resto do mundo vai voltar a lembrar teu nome, vai reler teu livro e quem não leu, vai sair comprando adoidado!” Vira-se de costa e grita: “Cadê o designer da produção?” “Estou aqui!” “Ótimo. Então anota isto: o filme acaba aqui. Quero a lista do cast e dos créditos colocada no início do filme, logo após o título. A cena que mandei agora congelar é a última cena. Amplie para que o vermelho do sangue invada a tela inteira, deixando somente a silhueta preta do comissário de costas, no canto inferior esquerdo. Apague a figura de Sonja e o revólver do comissário. Quero que ele pareça um grande T maiúsculo, todo preto, ligeiramente inclinado para esquerda. Será a última e única imagem: o resto de minha assinatura, eu faço depois.”

CRÔNICA SOBRE A RE-LEITURA DE CRIME E CASTIGO

“ Dostoievski no meu ontem e no meu hoje” Aos pouco mais de vinte anos de idade o livro me fascinou pela imensa piedade que a miséria do protagonista me transmitiu, pelo detalhamento de cada cômodo e seu apetrechos, enfim pela força descritiva que parecia fazer-me ver as cores sempre mais sombrias (por que terá sido?), e sentir os cheiros de cada coisa. E quão romântico pareceu-me o amor de Raskolnikov por uma Sônja prostituta, e quão cruéis os interrogatórios do comissário Porfiri Pietrovich, antes mesmo de ter comprovado a culpa do estudante: atitude policial abusiva, legalmente condenável! É claro que com o correr do tempo, alguns detalhes, parte da história, e minhas próprias impressões, foram empalidecendo. Foi com certa curiosidade e com extremo prazer que voltei a lê-lo. E com surpresa, - claro, mesmo por que eu também estava mais madura - pareceu-me mais novo, mais rico, mais chocante. Mais novo, como se tivesse sido escrito mais recentemente, por que continua universal em sua essência, mesmo que as personagens sejam mais antigos em princípios e comportamento. Mais rico por que descobri nele uma imensa gama de vocábulos que na literatura moderna tornaram-se raros, não por que tenham envelhecido, mas por que o linguajar de hoje parece envergonhar-se de sua erudição. Seu conteúdo analítico das personagens e dos acontecimentos, me trouxe a necessidade de refletir sobre assuntos que vão desaparecendo no uso das “ondas de frequëncia modulada” da superficialidade contemporânea. E finalmente mais chocante “contra” mim mesma: como não ter notado, na época, a profunda penetração de Dostoievski na alma de Raskolnikov? Voltei a ler inúmeras vezes os trechos em que traça o perfil do estudante que, apesar de seus precários meios de sobrevivência, ainda tenta sentir-se responsável pelo resto de sua família de quem, porém, depende financeiramente. Não havia guardado, anos atrás, os detalhes de seu temperamento que hoje me revelam que reduzir-se a levar seus poucos pertences à agiota, era resultado mais de uma preguiça totalmente física do que a alienação mental que nele se instala ao planejar o crime. Como não ter percebido que aquele amor dele por Sônja – que tento me havia comovido antes – nunca foi amor: ele sentia-se compelido a confessar o crime a alguém por que não conseguia mais guardar dentro de si o pecado segredo do homicidio cometido. E a quem melhor que uma Sônja, ela também pecadora, prostituída em prol da família, tão sofrida e carente quanto ele, para ouvi-lo, guardar segredo e compreende-lo? Ele só escolheu, instintivamente, com quem juntar duas misérias, para construir uma união de mútua compaixão. Ela sim, provavelmente, amou-o, levada por um sentimento de gratidão por ter confiado nela, pobre ignorante, e finalmente pela possibilidade de abandonar sua vida degradante. Isto parece evidente quando ela decide acompanhá-lo na prisão, o que em algum momento quase imperceptível sugere-se que a intervenção dela junto ao diretor da prisão, aliviaria os trabalhos do condenado. Se esta intervenção implica na disponibilidade carnal de Sônia para consegui-lo, parece lógico atribui-lo a um ato de amor. Finalmente minha descoberta da personagem Porfiri Pietrovitch, cuja atuação perante um suspeito, sua habilidade em colocá-lo em xeque, só agora me pareceram freudianas, como premonitórias da prática da psiquiatria, arte surgida do estudioso austríaco que foi sim, contemporâneo de Dostoievski durante poucos anos, mas cuja obra só começou a ser levada à imprensa cerca de dez anos depois da morte do russo. Na segunda leitura, onde antigamente pareceu-me uma bravata, agora o interrogatório montado por Pietrovitch, com suas perguntas sem pausas, sua perseguição verbal e seus argumentos diretos, - raciocinados como se o próprio Pietrovitch tivesse arquitetado o assassinato, soou como uma grande ameaça, clara e explícita: “ tenho meios científicos para chegar dentro de você”. Foi uma premonição da “angustia da influência”, ou teria Freud lido o russo agarrando-se às bases de suas observações para validar suas teorias? Só a ambientação em St. Petersburgo ficou para mim mais difícil de voltar a imaginar como havia feito há tantos anos, e como estava descrita:cinzenta, descolorida, tristonha apesar de fluorescente em negócios e atividades financeiras, com a vitalidade típica de uma cidade importante de meados de 1800. Deve ser porque há uns poucos anos – na realidade mais do que neste momento consigo julgar – tive a chance de estar lá, achando-a clara, colorida, alegre: uma das cidades mais bem arborizadas do mundo, fria mas ensolarada num Junho que – numa primavera tardia -aspergia pelo ar as sementes dos plátanos que ladeiam as grandes avenidas, num rodopiar de flocos, quase brancos e leves como neve fora de estação. Não sei como, estando lá, não pensei na St. Petersburgo do Dostoievski/Raskolnikov. Não sei como, ao emocionar-me na cripta do memorial ao cerco dos 900 dias, não re-encontrei lá a emoção da primeira leitura. Deveria haver uma idade certa para certas leituras. Ou então não: deveríamos reler os grandes clássicos da literatura universal a cada fase de nossas vidas. Vou colocar na agenda do meu computador, para daqui a vinte anos, um lembrete: ler Crime e Castigo. Daqui a vinte anos....estou sendo demasiadamente otimista...

CRÔNICA DE UM DIA DE AZAR

-“Só quero vê-la em fins de Setembro. Está tudo pra lá de satisfatório, viu? Continue assim!” Estou feliz: colesterol OK, glicemia nota 10, potássio normal. Vou continuar me contentando de saladas, legumes, peixes e carnes brancas, frutas e sucos naturais e me regalando – alegremente, mas só uma vez por mês – uma carne suculenta, ou uma fritura crocante, ou uma sobremesa de arromba. Saio risonha da clínica para a rua ensolarada, procuro a sombra das árvores: o sol está forte e o ar abafado, prenúncio de temporal. Mais tarde acabará refrescando, mas por enquanto suo em bicas. Meia quadra ate o estacionamento. Pago alegre e aguardo que me tragam a Katarina. É: meu Ka tem nome, como tem nome meu gatinho de madeira que dorme num canto da sala, tão perfeito que parece ronronar; como tem nome o sapo de terracota, boca rasgada e pernas tortas, que divide o chuveiro comigo. Que bom, daqui a pouco chego lá: um banho rápido, um suco e uma maçã correndo e depois irei me refrescar na hidroginástica. Katarina não chega. Espero no sol, o estacionamento é ao ar livre. - Faltou manobrista hoje, Sr. João? - Faltou não. Oh, Zé, cadê o carro da doutora! Deixo Katarina há anos aqui e já expliquei ene vezes que não sou doutora, mas eles insistem; provavelmente em homenagem à minha idade. Lá vem o Zé: chaves na mão. - Doutora, o carro não quer pegar! Juntam-se mais três. - Preocupa não, doutora, vamo fazé pegá no tranco. Sorrio, espero e olho os homens empurrando Katarina em vão. Nada. Sei que todos tem boa vontade, mas ficam uns quinze minutos no nada. Que azar. - Doutora, acho que é a bateria. - Tem uma oficina por perto? - Tem sim, a três quadras daqui. Vou lá. No caminho os primeiros pingos de chuva. Aperto o passo, chego lá na hora que começa a chover mais forte. - Tem alguém para ver meu carro no estacionamento da Martim Francisco?Não está querendo pegar. - Não estamos mais fazendo atendimento de rua, Dona. Só consertos de seguros, mas tem outro a duas quadras daqui. Muito bom, chama Adauto. Diga que o Zé Corintiano mandou! Lá fora o dilúvio. - Posso esperar a chuva estiar? - A vontade, Dona. Olho o relógio, já passa das três, chove, estou atrasada e o guarda-chuva ficou no carro. Azar. Espero mais quinze minutos e resolvo me molhar. Corro as duas quadras. - O Adauto está? - Foi tomar café na esquina, já vem. Espero. Que nome: Adauto. Com um nome desse nunca escolheria ser técnico de televisão...Mais dez minuto. Adauto chega. Explico. - Vamo lá, Dona. Pego meus treco e vamo. Some lá para os fundos e volta com uma caixa de ferramenta na mão direita e um saco de lixo feito capuz na cabeça cobrindo também o ombro esquerdo onde segura uma bateria. Vamos os dois na chuva, arrisco um “ desculpe o transtorno”. - Que é isto Dona – e ri seu riso mulato, gengiva muito rosa – a gente tá aí pra sol, chuva, calor e frio, e agradece a Deus que aqui, - titubeia - não tem neve. Percebo que não saberia declinar o verbo nevar. Chegamos. Abro o guarda-chuva que tiro do carro e fico olhando. Meu cabelo está pingando, o sapato cheio de água. Adauto dá um ói aos outros, abre a caixa, tira uma porção de ferros, olha desolado para mim. - Desculpe Dona, esqueci um troço. Volto já. Azar: pelo menos mais uns dez minutos. Volta sorridente, troço na mão. Começa, carrega a bateria, Katarina não pega, uma, duas vezes: nada. Abre o capô, desmonta peças, remonta peças. Nada. Azar. Olho o relógio: minha hidroginástica já era, e Katarina nada. Começo a pensar seriamente em ligar para o guincho do seguro. Olho para o Adauto que está me chamando, mas sou eu a falar. - Sr. Adauto, meu carro veio de uma revisão completa faz dez dias, o que pode ter acontecido? E ele: - Está tudo tão perfeito que não sei mesmo não... Olha de novo dentro do capô, mexe mais uma vez em tudo. A tarde está se esvaindo e nada. Horas perdidas. A roupa molhada está ficando gelada; o cabelo empastado parou de pingar, mas nada. Azar, perdi a tarde inteira. De repente Adauto corre para dentro do caro, senta, se abaixa, pega algo debaixo do painel, mexe uns minutos delicadamente com os dedos e sai triunfante: sorriso mulato, gengiva muito rosa, uma pecinha avermelhada na mão, quadradinha e achatada, do tamanho da unha do meu polegar. - Achei Dona. Fuzil! Aqui está o queimado. Já troquei. A Forde deixa sempre um estoque grande no estojo de reserva. Olho a pecinha, agora na palma da minha mão. Fico pasma: um fusível azarou minha tarde inteirinha. Por reação nervosa começo a tremer de frio. Pago a todos, gorjetas aqui e acolá. Agradeço a todos, João faz questão de levar Katarina até a rua. - Obrigado Doutora! Na hora de entrar no carro, um idiota passa a todo vapor do meu lado em cima de uma poça e lá se vai minha calça de linho cru, agora cheia de lama e graxa. A chuva começa forte, agora desaba mesmo. O trânsito está daquele jeito, mas estou chegando em casa; pelo menos isto. Ao entrar, cumprimento o gato Mustafá, jogo no chão do banheiro minhas roupas, as de cima e as debaixo. Entro no chuveiro, rego o sapo Craco e sento no chão debaixo de uma água quente e reconfortante. Acabo com o frasco de shampú. Toalha enrolada na cabeça, roupão apertado no corpo, dou um nó no cinto e enfio as mãos no bolso: hoje mais nada, não faço mais nada, não quero mais nada. Nem comida. Deito no sofá, nuca num braço, calcanhares no outro e ligo a televisão. Num desses canais sensacionalistas, uma mulher na delegacia dando queixa de assalto na marginal. Choramingando, encharcada de chuva, cabelo escorrendo. - Levaram tudo, meu dinheiro, meus cartões, meu relógio e até meu guarda-chuva. Só não levaram o carro porque havia parado de estalo naquela maldita marginal e não pegava mais. O delegado suspira. - É, sei minha senhora, o patrulheiro me falou. Foi ele mesmo que trocou seu fusível, não é? Solto uma gargalhada. De repente estou com fome. Risotto de atum com alcaparra. É pra já.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

CARAMBOLAS

Crônica para uma amiga

As mãos de Salma, são grandes e nodosas. Elas carregam consigo o trabalho de tantos anos de cuidar, colher e cortar limões. Nesta última tarefa, a de cortar limões, é que revelam a paixão: fatias grossas desnudando o contorno bem amarelo, a espessura branca esponjosa, os gomos irradiados do centro para fora, feito estrelas. Ela junta com a lâmina da faca o suco que delas se desprende, como se ele não acabasse desperdiçado na tábua de madeira ou na pedra da pia. Com a inibição e o recato ancestral das mulheres muçulmanas, e apesar do corte rítmico, ou talvez justo por ele, é surpreendente ver o manuseio quase fálico com que Salma trata aqueles limões, grandes, muito amarelos, casca carnuda, uma pequeno saliência do lado oposto do caule. Seguramente é o gesto que desenvolveu, quando já viúva e sozinha, passa a cuidar da plantação, talvez inconscientemente treinando, no trato daqueles frutos, os prazeres carnais que se havia negado. Preencher grandes potes alternando fatias de limão e pimentas dedo-de-moça, salpicando agilmente os temperos e cobrindo tudo de um denso líquido antes de atarraxar as tampas, é coisa corriqueira para ela, visto as prateleiras cheias daquelas conservas, enfeitando sua cozinha. Coisa corriqueira, sim, mas ritual preservado em orgulho, dignidade e altivez. Não a toa, os outros não a chamam Salma, mas se dirigem a ela como “uno Nasser”, o reconhecimento de que ela é a legítima representante da família de que ela carrega o sobrenome, como se ela mesma fosse a própria família, ou o seu coletivo.
Salma é personagem do filme “Lemon tree”, (Etz Limon, produção Israel/Alemanha/França, 2008), uma ode à coragem, sensibilidade e humanismo não só de uma, mas de duas mulheres, a segunda uma israelense. São as mulheres de Atenas que ressurgem de uma luta ancestral, de uma guerra sem vitórias previsíveis, e por isto mesmo mediadas, pouco a pouco, pelas mães, esposas, camponesas, diplomatas, viúvas e amantes, todas concentradas em duas únicas mulheres, entre árvores frutíferas e limões, caídos ou não, cujo cheiro parece saltar da tela, salivação aguçada pelo calor da terra : lágrimas não derramadas.
Escondida atrás de um cortiço da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, há uma única árvore de carambolas, que quase roça nas janelas da casa da Sandra. Seus frutos amarelos que eu lembro servir , cortados em forma de estrelinhas e regadas a suco de laranja lima, para minha filha pequena: eram aquelas formas que a incentivavam a comer fruta no lugar de doces.
Quem mora naquele cortiço, há crianças? certamente há mulheres: de que região vieram, o que fazem com tanta carambola disponível? Fazem geleia, ou as caramelam no forno com canela e açucar.....esta palavra que nos chega do sânscrito, portanto de longe, de outra raça, de outra religião. Que tipo de mulheres são essas, de nossa mesma terra sim, vizinhas sim, mas relegadas a uma distância tão pequena que não as alcançamos........E como elas alcançam aqueles frutos? com vara longa, com escadas, sacudindo os ramos, ou escalando os troncos como os catadores de coco?
Não haverá necessidade de nenhuma Salma para cuidar aquela árvore de carambolas. Esta nossa terra é pródiga, fértil, generosa: seu frutificar dispensa as Salmas dos terrenos arenosos da Palestina e de Israel; ela solta pelo ar a luminosidade de seus frutos, também amarelos, também dourados, também estrelados; e seu aroma inconfundível tanto quanto o dos limões......
A luminosidade e o aroma dos limões, guiaram a vida de Salma por gerações e penetraram na vida de sua vizinha estrangeira, praticamente inimiga, transformando-lhe a essência.
A luminosidade e o aroma das carambolas deram o bem-vinda a Sandra quando, ignorando a dádiva, ela escolheu aquele endereço num momento de reconstrução de vida.
Abra sempre a janela, Sandra, você tem a vantagem do canto dos pássaros que podem sorver carambolas maduras, mas não rondariam um limoeiro cujos frutos tem uma couraça protetora que somente por mãos amorosas, e palestinas, nos enternecem a alma.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Agradecimentos a Sandra Schamas

Uma amiga querida esta Sandra, que tem o privilégio, entre outras virtudes, de gozar de uma vista maravilhos sobre douradas carambolas que só faltam roçar na sua janela. Já está no forno um conto, como prometi, sobre aqueles frutos estrelados...espero nossa amizade viver para muitas e muitas floradas.....

quarta-feira, 23 de julho de 2008

homenagem a Karen Kipnis

Karen, obrigada pelo presentão que é este blog: nunca teria chegado a merece-lo sem o estimulo, os ensinamentos, o carinho, a perseverança que você me dedicou, especialmente com meus problemas de vírgulas, parágrafos, e a famosa, inútil, e ridícula gâma dos porquês. Para estes últimos, sempre que possível, continuarei evitando usá-los, visto que (aqui já teria um...) eu sou cabeçuda, impertinente e altíssimamente crítica para o desnecessário...Mas adoro você, Karen. Não importa o que acontecerá daqui para a frente: Você será sempre uma das personagens mais marcantes de minha vida. Mesmo tendo idade para ser minha filha, não a coloquei no meu coração somente como uma filha mas como o ícone a que minha mente recorre a cada vitória. Obrigada

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Árvore Genealógica - Crônica

A minha foi transplantada.
E não pegou. Já no Brasil, meus pais se separaram, eu era ainda uma criança (nos anos cinquenta, aos quinze anos se era criança), ninguém acompanhou mais a vida de ninguém: nem daqui nem de lá.
Sobrou minha irmã, com seus dois filhos e netos para formar a sua árvore genealógica. E eu: comecei a criar minhas próprias raízes, novas, um tanto híbridas: minha única filha, brasileira, produto desta italiana com um produto franco-sueco-alemão, hoje tem quarenta e sete anos, três casamentos e nenhum filho.
Da minha árvore genealógica só sei com certeza que – até l950 - não havia nenhum ladrão, assassino, ou presidiário por qualquer razão que fosse. Minto, meu pai foi preso por 72 horas por não ter comparecido, como mesário indicado pela prefeitura, e esta era a lei, às eleições de l948. Ele já estava tão farto de guerra, política e politicagem, que desistiu até do dever cívico.
Dos meus quatro avos, só sei que o meu avô por parte de pai era rico e bonvivant, gostava de um poquer e morreu numa mesa, ganhando. Convivi com minha avô paterna durante uma estadia de aproximadamente uma semana e lembro perfeitamente dela, a vovó que eu esperava: risonha mas rabugenta, cabelo esticado na nuca num chignon caprichado, beijava pouco e cheirava aos temperos daquele maravilhoso pão de mel apimentado.... Poucos dias depois de tê-la deixado e voltado para minha casa em outra cidade, ela se foi, espero que sem perceber, junto com algumas filhas e alguns netos. Era tempo de guerra e os civis sempre pagam com a vida o ódio de poucos, quase sempre fardados...
Minha avó materna morreu quando minha mãe era ainda criança e a conheci por fotografia; meu avô era pintor, e sei disto porque os dois filhos, minha mãe e seu irmão, herdaram alguns quadros e um retrato em foto. Retrato que transformou-se num “segredo de família”, cujo texto enriqueceu – assim espero – a oficina de “segredos” orquestrada por Karen, em Maio do ano passado, mas serviria para a oficina atual, portanto ainda disponível.
Assim, como estamos vendo, minha árvore genealógica é – mais uma vez – minha memória. O que eu plantei é pouco, mas tentei dar-lhe a melhor qualidade, sem dever nada a famosos sobrenomes de pedegree herdados, para me gabar. Aliás, um velho amigo meu dizia que
“quem se gaba de seus antepassados, confessa pertencer
a uma família que é melhor morta do que viva.....”
pois cada um deve ostentar só aquilo que conseguiu construir, pessoalmente.
Tenho orgulho do pouco, mas legitimamente meu, que fiz até agora. Portanto, como um poeta escreveu em sua ode na morte de Napoleão: “aos pósteros a árdua sentença”...*

* “Il 5 Maggio”, ( 5.05.1821) A. Manzoni (1785-1873)

Um Segredo de Família- Crônica

Meu avô materno era pintor. Nunca foi famoso, mas devia ter sido muito bom se com seu oficio sustentava uma mulher e dois filhos. Pintor sim, e também anarquista. Como todo artista que se preze, não escondia suas tendências políticas consideradas, naquela época de monarquia, subversivas. Sempre que o rei tivesse que sair do palácio, meu avô ia preso, uma semana antes do evento até uma semana depois da volta real. Um dia cansou: lembrou-se do convite de um arcebispado francês que repetidamente oferecia-lhe o posto de restaurador dos afrescos de algumas catedrais daquele país; fez as malas e foi-se, na surdina. Muitos anos depois, nos idos de l915 ou 20, velho e doente, voltou ao lar, também na surdina, para morrer no seio da família.
Foi somente em 1950, quando meus pais resolveram mudar-se para o Brasil, que minha mãe e meu tio resolveram meter as mãos nos velhos guardados, e dividiram pacificamente entre si as peças remanescentes de uma época já quase esquecida.
Apareceu, no fim, um impasse. Houve duas fotos: uma do vovô pintor, e outra da vovó, ambas em molduras ovais, parecidas, mas bastante estragadas. Como decidir quem iria ficar com o retrato de um e quem com o da outra, separando o casal: um na Itália, outro no Brasil? Enquanto tentava-se chegar a um acordo, acharam por bem, pelo menos, mandar trocar as molduras para que durassem algumas gerações a mais.
Surpreendentemente, atrás da foto do meu avô pintor, entre o passe-partout e o fundo da moldura apodrecida, surgiu a foto de uma mulher que não era minha avó. Mesmo estilo de cabelo da época, mesmo veludo em volta do pescoço, com ou sem camafeu, as duas de brincos pingentes. Decididamente aquela mulher não era a vovó.
Não sei com que tipo de raciocínio os dois irmãos fizeram sua escolha, visto que as crianças não foram chamadas a presenciar as discussões. Sei porém que meu tio ficou com a foto do vovô e minha mãe com a da vovó. Conhecendo bem mãe e tio, me arriscaria a dizer que a escolha foi, hoje, bastante compreensível. Meu tio, com a mentalidade da época, deve ter concedido ao pai o beneplácito do perdão pela infidelidade, enquanto minha mãe, que ainda hoje aos 102 anos, conversa diariamente com a foto da sua, deve ter escolhido o da mãe, rejeitando o pai, pela “traição”.
No fim dos anos 70, quando morei alguns anos na França, visitando as muitas regiões daquele país, flertei com a idéia de tentar achar, através dos arcebispados, os afrescos que meu avô teria restaurado, o que talvez me levasse a algum detalhe de sua vida. Não teria sido muito difícil, visto que a maioria das catedrais na França são de arte gótica, que preferencia altas colunas e arcadas entrelaçadas, paredes estreitas ornadas de telas e trípticos a óleo, onde não haveria lugar, nem por espaço, nem por coerência de estilo, para afrescos, mais típicos da arte românica, barroca e renascentista.
Sempre resisti à idéia da pesquisa. O segredo do meu avô está muito bem guardado naquelas catedrais, com ou sem a benção de seus sacros muros. Amém.

O Meu Segredo- Crônica

Segredos, segredos, segredos.
Muitos segredos.
Alguns bem trancados,
Outros, apenas velados.
Mas há sempre um momento,
Improviso e fugaz,
Num “abri-te sésamo”
Vão soltos no ar.

Existe um desenho de Salvador Dali, que ele chamou “figura com gavetas”. Representa uma mulher, alta, esguia, cabelos ao vento, cuja nudez abriga dezenas de gavetinhas, algumas fechadas, outras semi-abertas. Foi esta mulher que inspirou os versos acima, quando o desenho foi distribuído durante uma oficina de poesia, na Casa das Rosas, para que os alunos criassem, na classe, um poema. Foi como se Dali estivesse me dizendo: “as pessoas escondem mil segredos, mas eu consigo vê-los porque elas, no fundo, querem que eu o faça”.
Todos acabam soltando seus segredos no ar, mais dias, menos dias; ninguém é,– como muitos dizem – um livro aberto. Eu também não. Durante minha vida toda andei desfraldando meus segredos, aos poucos. Frequentemente tive orgulho deles e de tê-los compartilhado com outros seres humanos nos momentos em que eu precisei fazê-lo ou em momentos em que eles necessitaram ouvir uma confidência.
Mas sempre fica algo, escondido, lá atrás, no fundo de passados já vagos, de lembranças cálidas, de desejos realizados, até de projetos sem futuro. Tenho sim, um segredo: pensar nele tem o gosto de um madrigal, como se sua simples presença criasse música e ela fizesse com que, de repente, eu conseguisse cantar sem desafinar.
É o tipo de segredo cuja gavetinha não abro sempre, mas quando quero acalentá-lo, basta um toque de dedo na minúscula fresta corrediça, para que eu fique inebriada pela sensação egoísta de que ele ainda está aí, vivo, dentro de mim. Como agora, neste momento: ele está chegando à minha mente, e, devagar, desce pela canície até a nuca, num caminho discreto, por traz das orelhas, tropeçando nos brincos, em direção aos lábios, agora solto no ar. Único, talvez o último, eis aqui meu pequeno grande segredo: ainda tenho um segredo.

ASSIM É SE LHE PARECE - CONTO

Sandra entra na pequena transversal onde já há muitos anos deixa seu Gol. Não é trecho zona azul e está a menos de 100 metros da empresa onde trabalha, mas não tem estacionamento. Desliga o motor, junta pasta e bolsa que estão jogadas no banco ao lado e se prepara para sair do carro quando nota um Ka que estaciona em frente ao seu. Dele sai uma moça, entre 32/35 anos, loira, alta e esguia, muito bonita, que corre em direção de um Chevrolet que acaba de para atrás do seu Gol. Pelo espelho a vê entrar nele correndo, um rápido beijo e o carro arranca. Ao passar ao lado de Sandra, ela nota ao voltante um homem extremamente elegante, cabelo grisalho. Um charme.
Sandra tranca o carro e, ao encaminhar-se para a firma, olha o céu e pensa que deveria ter tirado o guarda-chuva do porta mala. Paciência. Não volta atrás. Durante a curta caminhada sorri pela cena que acaba de presenciar. Está na cara: o típico comportamento de um relacionamento em que o encontro não deve ser presenciado. Cada um sai com seu carro por um certo trecho e depois seguem juntos; quem sabe o indefectível caso de chefe e secretária, ou, simplesmente, vão passar o dia interinho juntos em algum motel. Por que não? Uma ponta de inveja obscurece o sorriso de Sandra. Ela aperta o passo: vai ter um dia pesado.
O Chevrolet desce os 100 metros da ruela e, assim que entra na Avenida, pára na porta do edificio de uma grande empresa internacional. Ainda com o carro ligado, ele põe a mão no joelho da mulher, inclina-se para beijá-la e, ao despedir-se, recomenda: "Querida, quando você sair do trabalho e depois de pegar as crianças na escola, chegando em casa me liga para dizer o que a Rosa preparou para o jantar, assim saberei que tipo de vinho comprar. Seria até melhor se os meninos jantassem antes; o Dr. Rodrigues não me parece homem de atuarar crianças à mesa."
Ela pisca um sorriso maroto: "Deixa comigo..."

As Chaves

Miniconto


“Já que você prefere ficar com o Corsa, poderia me trazer o Fiesta aqui no flat onde estou? Desculpe pedir, mas acabo de conseguir uma entrevista para um emprego importante e não daria tempo de ir até aí para pegar o carro”
“Tá, Jaime, já estou indo. Mas vou deixá-lo na porta com o manobrista. Está bem?”
“Sim, sim, obrigado mais uma vez, desculpe”
Marta desligou e correu para a bolsa: chaveiro com cavalinho é do meu Corsa; chaveiro com chapéu mexicano, do Fiesta.
Estranho. Setenta e duas horas atrás tudo estava bem e agora o Jaime já se mudou daqui, levou toda a roupa e eu estou só.
Divorcio? Separação? O que está acontecendo?
Por uma briguinha que parecera a toa. É assim que acabam os casamentos?
Chegou na garagem, entrou no Fiesta, arrancou da bolsa o chaveiro errado. Jogou no banco ao lado, procurou às cegas o chapéu mexicano e deu partida.
Na avenida as árvores pareciam não saber de nada, o trânsito era o mesmo de sempre. Nada parecia mudado e portanto tudo estava mudado.
Chegou em frente ao flat, o manobrista correu ao seu encontro.
Marta entregou as chaves pela janela e avisou: “É para entregar ao Jaime Ferris do 301. Pode chamar-me um táxi por favor?”
Ao agarrar a bolsa no banco ao lado, viu o chaveiro de cavalinho de prata brilhar sobre o couro escuro do assento. Pegou, pensou um instante. Voltou a jogar no mesmo lugar.
Não pode tudo terminar assim.
Quem sabe?..

A Flor

Miniconto


Sentada no ônibus, ao lado da janela, o sol batendo forte. O elétrico está parado. Algum problema na corrente, ou na voltagem, sei lá. O motorista mexendo lá atrás. Não posso trocar de lugar; está cheio e ainda tenho pelo menos dez paradas até chegar lá. O jeito é esperar.
Olha lá como melhorou esta avenida, tem até canteiro cheio de plantas, grama, florzinhas amarelas. Mas olha lá adiante. Tem uma, de haste alta, que está por abrir, parecendo um guarda-chuvinha cheio de pequenos botões de um lilás azulado. Parece um agapânto. É um agapânto. Quem sabe ficamos aqui parados o tempo suficiente para vê-lo abrir totalmente.
Era a flor que mais dava no jardim do meu jardim de infância. Agapântos em versão alternada: azuis e brancos. Azul como o avental que as freiras obrigavam a gente a usar. Branco como a gola engomada e o laçarote listrado nas duas cores. Gente! Faz pelo menos sessenta e cinco anos, ou mais...
O elétrico continua parado. Muita gente, sem paciência, desce buscando outra condução. Como faz a senhora sentada à minha frente, com uma menina de uns seis ou sete anos.
“Venha Carlinha, cuidado ao descer, estamos atrasadas, vamos pegar um táxi”.
As duas passam ao lado do agapânto.
Carlinha arranca a flor e mostra à mãe:
“Bonitinha, né? Mas ainda não abriu” e a atira no meio da avenida.
Passa um carro. Fica uma mancha azulada no asfalto.
Era só uma flor.