quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

INTERTEXTUALIDADE - Ensaio

Precursora desde sempre da novíssima nanotecnologia, nossa mente armazena, desde o nascimento, visões, fatos, cheiros, sabores, sons, que re-afloram, na maioria das vezes espontaneamente, outras vezes repescados nos chips de nossa emória, quando,
repentinamente, toca uma campaínha inicialmente indecifrável. É o dejá-vu, o dejá-cheirado, dejá-saboreado, dejá-ouvido. Nossos chips respondem com uma rapidez extraordinária.
É para mim suficiente ouvir o barulho de um pequeno avião, daqueles que empinam faixas publicitárias, para acoplar àquele som o barulho do mar, o cheiro da maresia e o sabor de um picolé com alguns grãos de areia trazidos pelo vento.
Não bastassem as reminiscências da infância, é extremamente prazeroso atribuir a certos trechos de nossas leituras a intenção - às vezes inconsciente - do autor em remeter-nos a outros textos, nem que seja só no ritmo das frases.
Há um trecho em "Uma história do conto", ensaio de Guilerme Cabrera Infante, sobre aquele gênero literário, em que o autor de repente se dá conta de estar divagando ao falar de novelas e romances no lugar de contos, que era seu propósito. Num curto parágrafo em que ele se emenda usa umas poucas frases que tem o ritmo shakespeariano do discurso apologético de Marco Aurelio, e diz: "... Mas vim aqui falar de conto. Toda intromissão de outro gênero
deve ser considerada um digressão. E a digressão nunca deve ser
considerada uma agressão..."
Foi intencional? Que importa... O fato é que Cabrera nos traz o tom de defesa de um tribuno, tom este que sustenta, prova e enaltece a beleza do conto como gênero literário nobre, com brilho próprio e não uma mera etapa preparatória para o romance.
Roberto Pompeu de Toledo, em seu primeiro romance publicado recentemente, descreve um balão em frente a uma janela, visão primordial para a ilusão de uma mulher em driblar a morte: pode ter sido intencional ou não, a referência a um dos contos de O´Henry (l862-1910) em que, perante o pressagio de um médico de que a namorada morreria "quando cair a última folha da hera daquele muro", o amante pinta a folha para que ela não perceba a chegada do seu fim. Foi intencional? Pode ser que sim, afinal Pompeu de Toledo é um homem de letras e a obra de O´Henry é matéria, me parece, de liceu. Mas certamente é intencional a imagem que o mesmo Pompeu de Toledo cria, com genial e fortíssima pincelada, quando um de seus personagens admira o rosto de uma mulher muito bonita tanto de perfil como de frente, e confessa: "...Queria ter os olhos de Picasso para enxergá-la ao mesmo tempo de frente e de perfil...". Sou fã incondicional de Picasso e de suas mulheres "desconstrucionadas", e além de lembrar diversas telas do pintor, fui levada a "ver", num momento de prosáico devaneio, numa banca de feira, sobre gêlo moído, um fresco linguado.
Walter Salles, em seu excelente "Abril despedaçado", leva o jovem protagonista, uma vez decidido a abandonar as funestas tradições de vingança e motre do sertão, a escolher, entre os dois caminhos à sua frente, aquele que o levará ao mar. Como se o homem idenficiasse no mar o sentido de liberdade, muito ao gosto de François Truffault, na nouvelle vague dos anos 60, que usou a mesma imagem, com o mesmo sentido, em mais do que um dos seus filmes. Levando em consideração que "Abril despedaçado" foi adaptação de um livro de um escritor croata (em que evidentemente a família devia viver de outra coisa que não rapadura), surge a dúvida se a ida ao mar foi idéia do romancista ou do cineasta.
O importanbte é que todas estas refeências, voluntárias ou não, não desmerecem e não interferem nem nos textos de origem, nem naqueles derivados, mantendo o efeito, a qualidade e a criatividade de ambos.
Creio que foi o estudioso e crítico literário americano Harold Bloom, o primeiro a falar da "angústia da influência": ela é aplicável não só a literatura, ao cinemaa, à pintura e escultura, à moda e a todas gamas das artes visuais, mas seguramente também à música, ao teatro, à política. Seria necessário um ensaio extenso para exemplificar, defender e distinguir o plágio da emulação, sem deixar de levar em consideração o fato de que, quando qualquer autor suspeitar de estar sofrendo de alguma influência provavelmente colocar-se-á em xeque, atingindo sua auto-estima. Daí tê-la chamado "angústia".
Como último exemplo de minhas reminiscência, é o cheiro ainda fresco de bronzeador e de sol que em meados dos anos cinquenta, emanava da plateía do CineMetro Copacabana, que aplaudiu de pé - fato quase inédito -o filme "Milagre em Milão", em que o diretor De Sica, criou como última cena, a revoada de chapéus de côco do empresariado rico, derrotado pelo operariado das favelas. O russo Gogol, cem anos antes, havia levado aos devaneios da personagem principal do seu "O Capote", uma revoada de sobretudos em contrapartida do seu, velho e surrado, que lhe havia sido roubado. Me pergunto se esta lembrança é ainda tão vívida pela comparação das duas cenas ou, na época pela absoluta surpresa dos apláusos.

Um comentário:

Sandra Cavalcante disse...

Bruna, quem é você? Acabo de ler seu ensaio sobre intertextualidade. Estou na fase final de uma pesquisa de doutorado no Progama de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFMG em que o tema é exatamente "O fenômeno da intertextualidade na perspectiva cognitiva". Estou escrevendo um trabalho científico de duzentas páginas para tentar explicar um pouco da muita poesia (e sabedoria) que seu ensaio revela. Seria um prazer saber mais de você.
Sandra
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Sandra Cavalcante
Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais
Instituto de Ciências Humanas
Departamento de Letras
sandcavalcante@gmail.com.br