domingo, 12 de setembro de 2010

ALMA DE APETRECHO.....

UM CONTO DE ALGUMA FORMA INSPIRADO NO "TONHA'"
DE MARCELINO FREIRE


Nunca cheguei a saber como nasci, como e quem me fez. Só me dei conta que eu existia quando vi, ao meu lado, numa banca de feira, coisas parecidas comigo. Parecidas sim, mas não iguais. Tinham cabeças arredondadas, maiores ou menores, mas fundas e com cabos bem mais longos do que o meu. Só soube do meu uso depois que alguém me levou para casa, carregando-me em riste como um troféu. Agora eu sei quem sou e estou contente.
Estou aprendendo a distinguir os sabores, os cheiros e o roteiro de minhas intervenções nas panelas desta tal Tônha a quem tanto se dirige a mulher sem nome que me comprou na feira.
Sem nome ou muitos nomes? A criançada vem correndo pela cozinha roubando guloseimas e a chamam mãe, mamãe, manhêee. O único homem que raramente passa por aqui diz "querida" e ela atende. Mas um nome ela deve ter: quando fala com Antônia, Antônia responde sempre "simsenhora"; às vezes diz "Dona..." mas depois do Dona, fala alguma coisa incompreensível como se a própria Antônia não soubesse o que é, pois enrola a lingua e só pronuncia umas últimas letras,....rela...mela...gela, sei lá.
É aquela senhora-querida-mãe-manhêe que passa pela grande vasilha de louça onde eu moro junto com espumadeiras, conchas e peneiras; me tira de lá, me recoloca, cabo adentro, cabeça para fora e reclama:
"Tônha, essa não é uma colher de pau qualquer, é uma espátula de madeira!"
"Simsenhora"
"Tônha, já disse que se você coloca minha espátula com a cabeça para dentro da vasilha, ela nunca vai secar direito e acaba mofando justo na parte que entra na minha comida!"
"Simsenhora - e bufa baixinho- chata".
Mas eu gosto mesmo quando essa Dona-não-sei-o-que me usa para aquele mingau especial que só ela faz.
Me pega com suas mãos leves: um jeito muito especial de me segurar com polegar e indicador na metade do meu cabo, unhas cravadas na palma da mão e os outros três dedos bem enrolado apertadinhos como fossem um tambor, que ele usa para, de vez em quando, dar um impulso mais enérgico ao meu rodopiar dentro da caçarola. E lá vou eu raspando o fundo com minha parte final, reta e mais fina do que o resto daquele retângulo lisinho e chado que forma minha cabeça. É muito quente esse mingau, mas pelo menos não tão irritante quanto o frigir dos refogados da Tônha. As laterais de minhas bordas catam e empurram para o centro o pouco de mingau que começa a grudar nas paredes: sempre no mesmo sentido, da direita para a esquerda até o centro, da direita para a esquerda até o centro e vai, e vai. Só de vez em quando ela inverte o meu caminho, mas só uma vez: é quando as bolhas do mingau crescem, se rompem e, bufando soltam o vapor "pppfffpppfff"..Eu não devo deixar que isso aconteça, e é por isso que me invertem o caminho. Se o vapor sai, o mingau engrossa antes da farinha estar cozida.
É o meu chchctttchchcttt no fundo e chchtttchchttt nas paredes, que achatam as bolhas e as anulam. Eu não consigo ver o rosto daquela senhora-manhêe-querida, mas sei que quando isso acontece ela está feliz.
Outra coisa que me agrada é que nesse mingau não tem sabores nem temperos diferentes: eles vão só naquilo que o meu mingau acompanhará. Assim me sinto mais limpa, inclusive por que a senhora-querida-manhêee, faz questão de me lavar, em muita água corrente: com poquíssimo detergente e uma escovinha macia, ela retira todo o grude e rapidamente esfrega minhas paredes e meus contornos com seus dedos delicados. É quase uma caricia.
Ah, sim, muitas vezes antes de abrir a torneira ela me lambe e estala a língua.
Um dia ela chegou a dizer: "É assim que se faz uma boa polenta".
E tenho certeza que ela estava sorrindo.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

JÚLIO CORTÁZAR E SEU CONTO "AS LINHAS DA MÃO"

É a morte voluntária e sua corriqueira grande insignificância. Uma retrospectiva em que o autor percorre o caminho da vida de um desconhecido, caminho esse que parece ser só um trajeto físico e urbano. Ao mencionar um quadro de Boucher - pintor do século XVI de cenas predominantemente bucólicas - Cortázar confere certa serenidade à decisão final daquele ser anônimo que nos parece sorrir lembrando a mulher amada reclinada num sofá; ou sobressaltado pelo lampejar de raios; ou amargurado pela reminiscência das lindas pernas de uma loira que ele poderia ter abordado mas não o fez.
A posição do autor é isenta, impessoal: respeita a decisão de quem escolheu sair da vida tão totalmente e anonimamente que perpetra o suicídio num navio, fora do núcleo onde viveu. E não importa quem ele fosse: marinheiro, ou amante rejeitado, ou exilado repudiado pelo próprio país. Nem importa a razão de sua decisão: qualquer que ela tenha sido, carta de abandono, aviso de extradição ou vaticínio de cartomante. É assim que o suicida, - que já ouve o apito da partida do navio e que já pode prever a gritaria das gaivotas na espuma da popa - tem certeza que só será achado no alto mar, aquele mar que será sua sepultura. O dito e o não-dito: amarga poesia.
Na metáfora usada pela linha da vida que percorre casas e ruas, o autor apresenta como argumento complementar, a impermeabilidade de uma cidade que, apesar da tragedia em curso, continuará a ser a mesma cidade. Perderá um ser mas, sem emoção, continuará a renovar-se nos quadros das paredes, nas costas de uma mulher, nos tetos cobertos de antenas e para-raios, no trânsito das ruas, na má vontade dos conferentes alfandegários, nos navios chegando e noutros partindo levando seus floridos turistas. E, quem sabe...talvez mais um suicida a bordo.
Júlio Cortázar, considerado pela Enciclopédia Larousse (edição 1977) um escritor que mescla realismo social e político à inspiração fantástica, foi definido, por seu amigo, o cineasta Antonioni, "un comunista all'acqua di rose" (comunista floreado idealista) por seu engajamento político sem todavia ter-se envolvido em luta armada, mas contando unicamente com a força de suas palavras. Apesar de sua tendência ao fantástico, ele frequentemente - como fez agora com Boucher - cita em seus contos, pintores das mais diversas escolas (Tiziano, Holbein, Magritte), comprovando assim estar confortável como pensador de qualquer tendência, do bucólico ao renascentista e do retratismo clássico ao mais ousado surrealismo.
No conto "As linhas da mão", revela-se ao leitor como um autor essencialmente "concretista", de uma concisão muito peculiar e, ao mesmo tempo, com um sentido muito preciso de uma realidade viva sim, mas oculta. Por pesquisa, por instinto ou por sofrida experiência, Cortázar tem um profundo conhecimento do "pathos" humano, tanto de personagens quanto de leitores. A definição de "pathos" não é aqui somente a "paixão" humana, mas a inclusão intencional, e com alguma enfase, das confusões da alma e suas manifestações mais obscuras. Só que Cortázar não as descereve mas as deixa implícitas nas ações de seus personagens. Em seus contos eles são anônimos, sem nacionalidades, sem identidade, frequentemente sem nome. Tanto faz que eles se chamem João, estejam em Roma ou Paris, sejam argentinos, belgas ou escandinavos: eles se comportam como indivíduos sem bagagem histórica e não são afeitos a obediências ancestrais. São indivíduos na mais completa asserção da palavra: seres únicos naquele preciso momento, naquela precisa situação. E sem julgamento.
Cortázar sabe destilar um sarcasmo quase jocoso, como fez no conto "Sábio com buraco na memória": tão forte quanto "As linhas da mão", aquele texto é ainda mais conciso, e torna-se sarcástico e folclórico, misturando casos históricos, citações populares, pequenos provérbios e frases feitas. Talvez justamente um dos textos mais representativos das qualidades que fizeram de Cortázar um dos escritores contemporâneos mais universais entre os autores latino-americanos.
]