segunda-feira, 31 de maio de 2010

TOMATES SENTADOS

HOJE HELGA JANTA COMIGO.
Esse texto de 2008 entra pela primeira vez no

meu blog em homenagem a ela. É o prato que vou
fazer para ela experimentar e ela tem os mesmos
27 anos que minha filha tinha quando eu exumei
a receita de meus arquivos sensoriais. As duas,
Helga e minha filha Andrea, são pessoas muito especiais.

Ohiyo é uma japonesa dos seus cinquenta anos, cuja banca de feira frequento há muito tempo. Ela traz sempre pouca quantidade de cada tipo de verduras, só verduras, mas tudo é fresquinho, limpo e bem arrumado. Como bonus entre as várias tonalidades de verde, seu sorriso acolhedor. Quando me vê, sua primeira pergunta é sempre a mesma: "Hoje vai querer tomates sentados?" Tudo isto desde quando notou que -nem sempre mas bastante frequentemente - eu selecionava os tomates colocando-os, um de cada vez, na palma bem esticada de minha mão. Até o dia em que ela não aguentou e perguntou a razão. Expliquei:
"Quando compro tomates para fazê-los recheados eles precisam ser maduros mas firmes e, o mais importante, é que eles devem poder ficar bem sentados".
Ela perdeu o sorriso e arregalou os olhos:
"Como é?"
Descrevi:
"Quando os coloco na assadeira, eles devem sentar bem, estar bem equilibrados se não o recheio cai durante o cozimento. Por isso eles devem ser redondos mas com a parte inferior ligeiramente achatada. Aqueles ovais nunca ficam em pé: só servem para saladas ou molhos".
Agora ela sempre tem uma meia duzia que guarda para mim e nunca fica chateada se, justo naquele dia, eu não preciso de tomate nenhum. Mas quase sempre os compro, mesmo se para outros fins, e ela sempre agradece sorrindo, sem desconfiar.
Voltando para casa com minha cestinha cheia fico calculando se fazer os tomates recheados só para mim ou convidar alguém. Se fizer só para mim penso feliz que não precisarei fazer almoço por dois dias pois esse prato, mesmo frio, sempre aguça minha gulodice; se quero convidar alguém preciso escolher quem: ou quem já conheça e aprecie, ou quem possa ser apresentado com sucesso a esse prato que é único em todos os sentidos. Único por dispensar carnes, peixes e outras proteinas - mas frio serve maravilhosamente bem, no verão, para acompanhar rosbifes - e único por não comparecer nos menus de restaurantes de nenhum tipo, cinco estrela, cantina, trattoria, buffet ou "peso".
Para a crônica: após tê-la esquecido durante muito tempo, desenterrei a receita de minha memória por ocasião do festejo de um aniversário muito especial: o meu é por volta de duas semanas antes do de minha filha e, naquele ano, quando ela completaria 27 anos eu estaria com exatamente o dobro da idade dela e ela com a metade da minha. Um aniversário único na vida das duas. Os "tomates sentados" foram muito festejados no meio de saladas estranhas como a de champignon crus com maionese de mango chutney, a de laranja fatiada com azeitonas pretas e a de folhas verdes temperada com um molho quente de bacon frito e crocante. Por muito tempo havia acreditado que fosse uma receita de família muito exclusiva, mas nas minhas andanças pelo mundo andei descobrindo a presença dos "tomates sentados" em praticamente todos os paises mediterrâneos, principalmente nas aldeias a beira mar, e como comida essencialmente caseira. Sempre porém com pequenas substituições de tempero: na Italia, orégano; na Grécia, açafrão; na Turquia e Libano zátar; no Marrocos, endro; na Espanha, raspa de limão; na França o "pistou" que nada mais é que manjericão. Até em Malta, que por quase duzentos anos amargou a influência da insossa cozinha inglesa, descobri uma bodega em que os proprietários espanhois tinham o prato como especialidade da casa.
"Tomates sentados" é o nome que surgiu de minhas conversas com Ohiyo, mas na minha familia sempre foi "Pomodori Ripieni" ou seja, puros e simples tomades recheados. Quando se especifica o "do que" é que as pessoas se assustam pois ninguém acredita que arroz CRU possa cozinhar dentro do tomate, no forno.
Para fazer o prato para o jantar de hoje, ontem tive que ir à feira onde Ohiyo tem banca em outra rua da que normalmente frequento. Ela me olhou assustada.
"Oh, hoje não trouxe os tomades sentados".
Sorri:
"Não faz mal, eu mesma escolho. Mas você pode escolher para mim a melhor rúcula precoce e os espinafres mais tenros".
Ainda bastante triste ela insistiu: "Ah, se eu soubesse....." e surpreendentemente acrescentou:
"O que eu não faço para uma freguesa como você?"
Não sei o que deu em mim, mas me ouvi retrucar:
"Você faz tudo por mim, mas sempre se recusa a vender-me as ramas do nabo, sem o nabo".
Ela abaixou a cabeça, olhos envergonhados:
"Desculpe, já expliquei. Se corto as folhas, ninguém vai comprar o nabo nu".
Quase caí na gargalhada: ainda não tinha descoberto que ela tinha sentido de humor.
Ohiyo sabe que nabos sem ramas amargam em pouco tempo. E sabe que seis nabos são muita coisa mesmo para uma família grande. Mas não tem idéia que as ramas de seis nabos dão um prato fabuloso só suficiente para duas pessoas gulosas como eu.

Bem, mas isso já seria outra receita.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

NÃO POR ACASO, Resenha do Filme

Brasil 2007
Diretor: Philippe Barcinski
Atores: Leonardo Medeiros, Rodrigo Santoro, Rita Batata,
Blanca Messina, Letícia Sabatella

Recentemente descobri que Kely Cristina S.Felicio, comentou no meu blog, que o meu conto "O Espelho" lá publicado, teria-lhe lembrado o filme "Não por acaso". Já havia visto esse filme, havia gostado muito e, apesar de não ver muita atinência entre ele e minha estória, e justamente por isso, fiz questão de voltar a vê-lo. Continuo não conseguindo seguir o raciocínio da Kely (tão gentil e carinhosa...) mas o filme me impressionou mais ainda. Lembrei de, na ápoca, ter achado estranho que um filme tão bom tivesse ficado tão pouco tempo em cartaz. Agora, num ímpeto publicitário (!), faço questão de divulgar minha resenha para que, quem sabe, alguém se interese em exuma-lo...


Eis aí um filme pra lá de minimalista. Personagens enxutas, ações simples, instintivas, lógicas dentro da logica de cada personagem, diálogos econômicos, tomadas de exteriores de grande impacto visual. Tudo privilegia o aflorar de sentimentos sem que ninguém os mencione. Cada ação é uma descoberta, cada reação é reveladora, cada pequena decisão repentina parece ser o obvio sem sê-lo. Tudo com muita parcimônia, muita delicadeza, sem pieguice.
Num acidente de trânsito morrem duas mulheres que não se conhecem e esta tragedia atinge dois homens que, também, não se conhecem, não se encontrarão jamais e não tem, nem terão, nada em comum.
O filme acompanha as reações e a evolução dos temperamentos dos dois homens cujo comportamento e atitude - e só comportamento e atitude - revelam ao espectador o caráter e o perfil deles. Nenhum deles fala de si mesmo para ninguém, não há dialogos que adiantem pistas nem acontecimentos surpreendentes que lhes arranque "identidade" reveladora.
É uma história simples: a ex-mulher de um solitário controlador de trânsito atropela uma moça matando as duas.
A morte propiciará ao ex-marido a aproximação com a filha adolescente. O namorado da moça atropelada, continuará a excercer suas atividades de artesão de mesas de sinuca, com a mesma paixão tranquila, com o sentimentalismo romântico que lhe é intrínseco e, eventualmente, transferindo tudo isso para uma nova mulher, não à procura de uma substituição, não por ela ser algo novo e especial, (que ela realmente é), mas para dar continuidade àquilo que ele é e sempre será.
O elo importantíssimo das duas estória é a cidade de São Paulo, pictoricamente lindíssima, mas analiticamente fria. Seus viadutos, seus cruzamentos, seus pontos nevralgicos, assustadores.
A ausência do contato entre as personagens das duas estórias pareceu-nos o grande "achado" de Barcinski que teve uma fuga saudável da "coincidência" cinematografica que entrelaça estórias paralelas. Se em "Crash" foi usada magistralmente, por outro lado prejudicou o resultado de "Babel" apesar do excelente Iñarritu. Já não era sem tempo que alguém se despisse daquela formula já bastante gasta e, de qualquer forma, muito difícil de não parecer forçada.
Rodrigo Santoro tem um desempenho primoroso: seu contido comportamento perante a tragedia que o abalou, transcende as parcas lágrimas que ele derrama silenciosamente sobre a madeira que trabalha com expressivo carinho e leveza apesar das mãos pesadas de calos e colas. Sua naturalidade em repetir, para com outra mulher, os gestos e movimentos habituais no trato da namorada morta, trasborda a simplicidade que moldou sua vida desde sempre e deixa aflorar a dedicação humana que será sempre o "leitmotiv" de sua vida. O roteirista deu à sua personagem um final surpreendente cuja força, aí sim reveladora, dá enfase ao gesto que o ator consegue magistralmente demonstrar espontâneo: na frente da porta do apartamento da nova mulher, ele ajeita no chão, com toalinha e tudo, o café da manhã que falhou em preparar quando ela o pedira. Uma pena a escolha de Leticia Sabatella no papel. A câmara e o som na televisão são mais complacentes e menos delatores do que no cinema.
Agradável surpresa foi a maturidade da jovem Rita Batata no papel da filha do controlador de trânsito, um Leonardo Medeiros convincente. De solidão dilacerante, sua descoberta em poder dividí-la com uma filha que mal conhece, transforma-se em determinação. O final, no passeio de bicicleta a dois no viaduto liberado para o lazer nos fins de semana, resgata a humanidade de uma cidade árida que, a partir daí, passará a ser vista por ele, até no seu caótico monitor, com olhos de uma nova esperança.
Há muito não se via no cinema nacional um filme tão despretencioso, tão singelo e tão sincero.
Justamente por isso tão significativo.

MACABÉA - A hora da estrela

RESENHA DO FILME

Sorte minha: anteontem passou na televisão e o re-vi com muito interesse pois, fazia algum tempo, vinha pensando nesse filme já velho de quase vinte anos (ou mais?) . Já não tenho na memória grandes detalhes da ficha técnica, mas a maioria de minhas reações e daquilo que mais me marcou, havia ficado.
O filme não envelheceu. Eu, público, amadureci. A fotografia, bem escolhida nas tomadas, continua de má qualidade. O acompanhamento musical, continua lamentável: o silêncio tera sido mais eloquente, já que o filme realmente é um gritante grande silêncio ...
Mas hoje posso aceitar que o filme seja tão primário quanto sua personagem título. E se esta primariedade, como a vejo agora e como espero tenha sido concebida, foi intencional, aplausos para Suzana Amaral.
Primeiro, por que a diretora soube de imediato que Marcélia Cataxo já nascera Macabéa. Marcélia é a insignificância personificada: rosto, corpo, mãos de joão-ninguém, tudo nela é impessoal. Lembra os atores do neo-realismo italiano, todos desconhecidos, todos intérpretes de um filme só. Se Cataxo seguiu sua carreira de atriz depois de Macabéa, não sei. Se sim, espero que tenha-se transformado radicalmente e que hoje ninguém mais reconheça nela a eterna Macabéa.
Segundo por que Suzana Amaral fez dela a personagem padrão com todos os requintes pictóricos exteriores e interiores, ao gosto de sua inefável criadora, Clarice Lispector.
Macabéa é feiosa, desengonçada, constrangedoramente tímida, e ao mesmo tempo cheia de sonhos imediatistas: ao sentir-se observada, já imagina ter feito uma conquista. Simplória e ignorante é ao mesmo tempo sedenta de um "conhecer" de que ela desconhece o significado.
Emigrante numa São Paulo periférica e cinzenta, deslumbra-se com o mêtro, com os elevados e até com jardins decadentes onde fotógrafos ambulantes fornecem roupas a seus clientes para que sejam retradados "decentemente vestidos". Clientes esses, todos Macabeos e Macabéas como ela.
Uma Macabéa que consegue emprego num depósito onde gatos saboreiam os ratos ao mesmo tempo que ela roe seu cachorro quente, lambusando seu trabalho de datilografia.
É lá onde aprende de uma colega para lá de desinibida a mentir em próprio benefício mas entra
sempre com um eterno pedido de desculpas por qualquer coisa que peça, faça ou consiga.
Sua lista de palávras difíceis que ouve na Rádio-relógio, é fonte de perguntas que coloca a um Olímpicus, smplório, desengonçado e ignorante como ela, que porém se posiciona num patamar de "já evoluido", vislumbrando riqueza na política. O discurso dele ao pé de uma estátua do Ipiranga é a sintese das ambições de muitos, haja visto a aprovação da única espectadora alí presente, outra velha Macabéa.
Uma das perguntas mais patéticas e tocantes : "Ser feliz, serve pra que?"
Ela descobre a resposta nas predições mentirosas e ilusórias de uma vidente oportunista, que a levam à transformação exterior, num vestido azul, ricamente chinfrim, cabelo solto, e seu primeiro sorriso. Correr à procura de um hipotético principe azul, em ruas repentinamente arborizadas, em bairros que nunca conhecerá, é sua despedida da vida.
Atropelada, no chão de uma esquina, numa posição, minha cara Suzana Amaral, pouquíssimo plausível e para lá de improvável.

Que bom que vi de novo. E fiquei, mais uma vez comovida. Tem em DVD?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A ELEGÂNCIA DO OURIÇO, RESENHA DO LIVRO

Autor: Muriel Barbery
Título Original: L'Élégance du hérisson
Edição: Companhia das Letras 2008
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar

A autora Muriel Barbery nasceu em Bayeux, pequena cidade medieval da Normandia, de origem galo-românica, que conserva, e cultua, marcos de grande valor histórico, arquitetônico e artístico. Não é de se estranhar que Barbery tenha desenvolvido lá a virtude - e o vicio - da observação profunda a que foi estimulada desde seu nascimento. Uma catedral de 900 anos, os majestosos "remparts", o ferro batido nos portões, nas janelas, nos pequenos palácios e castelos ainda existentes; tudo deve ter aguçado e gravado em seus olhos o material riquíssimo que lhe permitiu identificar os clichês que personagens, hábitos e peculiaridades ainda identificam a França.
Mas Barbery escolheu subverter aqueles clichês numa história repleta de casos e atitudes que, no começo, parecem inusitadas ao leitor, mas que ao longo do livro, resultam na reconstrução harmônica e otimista de personagens, hábitos e peculiaridades, sem tirar-lhes nem minimizar-lhes as raízes.
Rénée, "concierge" (zeladora),de um elegante, classudo e super-clássico edificio residencial de Paris, não é bronca, metida, bisbilhoteira e nem fofoqueira como a tradição manda. Ao contrário, ela pensa e respira clássicos da música e da literatura como se tivesse-se formado na Sorbonne;
exteriormente, entretanto, se comporta como esperam dela os moradores, esnobes e exigentes.
E a pequena Paloma, há doze anos caçula de uma família vip, não é -apesar dos esforços de todos os membros- nem mimada nem consumista, ao contrário: é crítica do mundo que a sustenta e, para sair dele, rumina as mil maneira com que poderá, sem causar danos materiais à propria casa e à dos vizinhos, suicidar-se quando cumprir treze anos.
O interessante da construção do livro está também no cuidado com que a autora escreve em primeira pessoa o que sai da cabeça das duas personagens principais. Ela utiliza caracteres gráficos bem distintos para cada uma. Rénée chega-nos em capítulos com titulos pertinentes aos acontecimentos, impressos em letras normais. Já a pequena e inquieta Paloma nos vem em negrito, e com capítulos intitulados "pensamentos profundos" numerados. Parece ter sido intenção de Burbery chamar a atenção para a profunda diferência de dois cérebros (um maduro e outro em formação) para que o leitor possa, a cada capítulo quase sempre alternados, compara-los transportando-se na personagem da vez.
Tanto Rénée como Paloma estão "mal a l'aise" no mundo onde vivem: Rénée disfarça adotando o clichê - só aparente - que é devido à sua profissão. Paloma assume sua intolerância não com rebeldia mas com apatia. Até o nome Paloma que lhe foi imposto ao nascer, parece obrigá-la a um comportamento modernoso, sofisticado e dispendioso adotado pelo resto da família onde o pai, alto funcionário público que a menina desconfia corrupto, vive no mundo dos políticos, a irmã é uma consumista a espera de um marido rico e a mãe -apesar da escolaridade elitista - tem, no fundo no fundo, a bisbilhotice de uma "concierge".
Tudo corre paralelamente: as duas vidas entremeadas de pequenos acontecimentos nos outros apartamentos, pontuados pela passagem sistemática de uma Manuela, faxineira portuguesa, ela também clichê do dia a dia parisiense. Ela trabalha, um ou dois dias por semana, na casa de quase todos os moradores e acaba, no fim da tarde, parando na da Rénée para tomar chá.
Uma faxineira estrangeira tomando chá, de xicara e de sabedoria, com uma zeladora inusitada.
Não bastasse a escapadela de Paloma em refugiar-se na cultura japonesa - popular ou não -, no meio do livro aparece um novo proprietário e morador: Kakuro Ozu. Seu olho de tradição milenar parece identificar de imediato que Rénée não é o que parece e que a pequena Paloma e sua melhor amiga nigeriana são personalidades inquitantes para um maduro senhor japonês que ostenta uma vastíssima cultura internacional mas depara-se coma a adolescência ocidental interessada na oriental antes mesmo de conhecê-lo.
Aí está um cruzamento de olhares, cada personagem debruçando-se e identifcando-se com os outros: encontros para chá, curiosidades inesperadas, afinidades a flor da pele e finalmente uma provável esperança amorosa entre os dois seres que, finalmente, descartadas as barreiras sociais, poderiam compartilhar prazerosamente suas velhices.
Mas Barbery não se atreve ao final feliz: a reconstrução interior de uma adolescente que aprende com dois adultos estranhos a amar a vida, é o final feliz do livro. E o do leitor: ao vencer as estreanhezas que lhe causam os capítulos iniciais, o leitor é empurrado a conjeturas curiosas e frequentemente bem humoradas: ...se as pessoas que conheço não fossem aquilo que elas aparentam, quanto mais caloroso poderia ser nosso convívio...]
E aí está um desconcertante e lindo romance filosófico.
Bayeux, a pequena cidade da autora, ostenta, entre seus marcos históricos, a famosa tapeçaria da Rainha Mathilde**, do século XI, em que algumas das figuras são tão estilizadas e naif que parecem modernas: descobri lá um grupo de quatro cavaleiros com silhuetas, atitudes e posturas que remetem - pasmem - aos "The Beatles". E se não fossem eles soldados, mas músicos ou saltimbancos no séquito das tropas de Guilherme I a caminho da conquista da Inglaterra?
Barbery, ao criar o livro, manteve presente no inconsciente aquela sequência do bordado com todas as dúvidas que ele carrega: pessoas e coisas abrigam e acalentam as mais raras, surpreendentes e maravilhosas surpresas.

** A tapeçaria representa Guilherme I de Aquitânia (Duca de Normandia, dito inicialmente "O Bastardo" e depois "O Conquistador") com seu exército, a caminho da Inglaterra que ele conquistou em 1006 AD.
O bordado de lã sobre lã crua, é atribuida à sua esposa Mathilde de Flandres e teria sido iniciada quando as tropas sairam para a guerra, ilustrando as etapas que os mensageiros traziam à rainha. Estudiosos pretendem que ela tenha sido executada numa oficina artesanal por encomenda de um primo de Guilherme I, bispo de Bayeux, o que não lhe tira a importância histórica.
Recentemente pesquisadores consideraram que essa tapeçaria (58 cenas em 70 métros de cumprimento por 0.50 de altura) é obra precursora da "Banda Desenhada", hoje dita "Histórias em Quadrinhos".

sexta-feira, 14 de maio de 2010

SEDA

Mal abro a gaveta, ela imanta-se ao meu corpo. Transforma-se na penugem invisível de minha pele. É quente, macia, natural. E é animal: nasceu de outro ser.

E ela tem perfume. Não sei se é o dela ou é o meu que ela nina feliz.

Sei que algo dela está sempre comigo. É a feminilidade que minha idade não descartou. É a sensação de que, da mesma forma em que ela nasceu, ela me envolve num casulo que me protege, me acarinha, que não me deixa esquecer o gostoso farfalhar de seu toque.

Pobres dos homens que, quando muito, a tem debaixo de um colarinho, em cima de uma camisa.
Busquem, achem, provem aquela sensação de convite, de aconchego e de delirio que ela sussurra do outro lado de outra pele.

Os homens de minha vida, sabem.