quarta-feira, 23 de julho de 2008

homenagem a Karen Kipnis

Karen, obrigada pelo presentão que é este blog: nunca teria chegado a merece-lo sem o estimulo, os ensinamentos, o carinho, a perseverança que você me dedicou, especialmente com meus problemas de vírgulas, parágrafos, e a famosa, inútil, e ridícula gâma dos porquês. Para estes últimos, sempre que possível, continuarei evitando usá-los, visto que (aqui já teria um...) eu sou cabeçuda, impertinente e altíssimamente crítica para o desnecessário...Mas adoro você, Karen. Não importa o que acontecerá daqui para a frente: Você será sempre uma das personagens mais marcantes de minha vida. Mesmo tendo idade para ser minha filha, não a coloquei no meu coração somente como uma filha mas como o ícone a que minha mente recorre a cada vitória. Obrigada

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Árvore Genealógica - Crônica

A minha foi transplantada.
E não pegou. Já no Brasil, meus pais se separaram, eu era ainda uma criança (nos anos cinquenta, aos quinze anos se era criança), ninguém acompanhou mais a vida de ninguém: nem daqui nem de lá.
Sobrou minha irmã, com seus dois filhos e netos para formar a sua árvore genealógica. E eu: comecei a criar minhas próprias raízes, novas, um tanto híbridas: minha única filha, brasileira, produto desta italiana com um produto franco-sueco-alemão, hoje tem quarenta e sete anos, três casamentos e nenhum filho.
Da minha árvore genealógica só sei com certeza que – até l950 - não havia nenhum ladrão, assassino, ou presidiário por qualquer razão que fosse. Minto, meu pai foi preso por 72 horas por não ter comparecido, como mesário indicado pela prefeitura, e esta era a lei, às eleições de l948. Ele já estava tão farto de guerra, política e politicagem, que desistiu até do dever cívico.
Dos meus quatro avos, só sei que o meu avô por parte de pai era rico e bonvivant, gostava de um poquer e morreu numa mesa, ganhando. Convivi com minha avô paterna durante uma estadia de aproximadamente uma semana e lembro perfeitamente dela, a vovó que eu esperava: risonha mas rabugenta, cabelo esticado na nuca num chignon caprichado, beijava pouco e cheirava aos temperos daquele maravilhoso pão de mel apimentado.... Poucos dias depois de tê-la deixado e voltado para minha casa em outra cidade, ela se foi, espero que sem perceber, junto com algumas filhas e alguns netos. Era tempo de guerra e os civis sempre pagam com a vida o ódio de poucos, quase sempre fardados...
Minha avó materna morreu quando minha mãe era ainda criança e a conheci por fotografia; meu avô era pintor, e sei disto porque os dois filhos, minha mãe e seu irmão, herdaram alguns quadros e um retrato em foto. Retrato que transformou-se num “segredo de família”, cujo texto enriqueceu – assim espero – a oficina de “segredos” orquestrada por Karen, em Maio do ano passado, mas serviria para a oficina atual, portanto ainda disponível.
Assim, como estamos vendo, minha árvore genealógica é – mais uma vez – minha memória. O que eu plantei é pouco, mas tentei dar-lhe a melhor qualidade, sem dever nada a famosos sobrenomes de pedegree herdados, para me gabar. Aliás, um velho amigo meu dizia que
“quem se gaba de seus antepassados, confessa pertencer
a uma família que é melhor morta do que viva.....”
pois cada um deve ostentar só aquilo que conseguiu construir, pessoalmente.
Tenho orgulho do pouco, mas legitimamente meu, que fiz até agora. Portanto, como um poeta escreveu em sua ode na morte de Napoleão: “aos pósteros a árdua sentença”...*

* “Il 5 Maggio”, ( 5.05.1821) A. Manzoni (1785-1873)

Um Segredo de Família- Crônica

Meu avô materno era pintor. Nunca foi famoso, mas devia ter sido muito bom se com seu oficio sustentava uma mulher e dois filhos. Pintor sim, e também anarquista. Como todo artista que se preze, não escondia suas tendências políticas consideradas, naquela época de monarquia, subversivas. Sempre que o rei tivesse que sair do palácio, meu avô ia preso, uma semana antes do evento até uma semana depois da volta real. Um dia cansou: lembrou-se do convite de um arcebispado francês que repetidamente oferecia-lhe o posto de restaurador dos afrescos de algumas catedrais daquele país; fez as malas e foi-se, na surdina. Muitos anos depois, nos idos de l915 ou 20, velho e doente, voltou ao lar, também na surdina, para morrer no seio da família.
Foi somente em 1950, quando meus pais resolveram mudar-se para o Brasil, que minha mãe e meu tio resolveram meter as mãos nos velhos guardados, e dividiram pacificamente entre si as peças remanescentes de uma época já quase esquecida.
Apareceu, no fim, um impasse. Houve duas fotos: uma do vovô pintor, e outra da vovó, ambas em molduras ovais, parecidas, mas bastante estragadas. Como decidir quem iria ficar com o retrato de um e quem com o da outra, separando o casal: um na Itália, outro no Brasil? Enquanto tentava-se chegar a um acordo, acharam por bem, pelo menos, mandar trocar as molduras para que durassem algumas gerações a mais.
Surpreendentemente, atrás da foto do meu avô pintor, entre o passe-partout e o fundo da moldura apodrecida, surgiu a foto de uma mulher que não era minha avó. Mesmo estilo de cabelo da época, mesmo veludo em volta do pescoço, com ou sem camafeu, as duas de brincos pingentes. Decididamente aquela mulher não era a vovó.
Não sei com que tipo de raciocínio os dois irmãos fizeram sua escolha, visto que as crianças não foram chamadas a presenciar as discussões. Sei porém que meu tio ficou com a foto do vovô e minha mãe com a da vovó. Conhecendo bem mãe e tio, me arriscaria a dizer que a escolha foi, hoje, bastante compreensível. Meu tio, com a mentalidade da época, deve ter concedido ao pai o beneplácito do perdão pela infidelidade, enquanto minha mãe, que ainda hoje aos 102 anos, conversa diariamente com a foto da sua, deve ter escolhido o da mãe, rejeitando o pai, pela “traição”.
No fim dos anos 70, quando morei alguns anos na França, visitando as muitas regiões daquele país, flertei com a idéia de tentar achar, através dos arcebispados, os afrescos que meu avô teria restaurado, o que talvez me levasse a algum detalhe de sua vida. Não teria sido muito difícil, visto que a maioria das catedrais na França são de arte gótica, que preferencia altas colunas e arcadas entrelaçadas, paredes estreitas ornadas de telas e trípticos a óleo, onde não haveria lugar, nem por espaço, nem por coerência de estilo, para afrescos, mais típicos da arte românica, barroca e renascentista.
Sempre resisti à idéia da pesquisa. O segredo do meu avô está muito bem guardado naquelas catedrais, com ou sem a benção de seus sacros muros. Amém.

O Meu Segredo- Crônica

Segredos, segredos, segredos.
Muitos segredos.
Alguns bem trancados,
Outros, apenas velados.
Mas há sempre um momento,
Improviso e fugaz,
Num “abri-te sésamo”
Vão soltos no ar.

Existe um desenho de Salvador Dali, que ele chamou “figura com gavetas”. Representa uma mulher, alta, esguia, cabelos ao vento, cuja nudez abriga dezenas de gavetinhas, algumas fechadas, outras semi-abertas. Foi esta mulher que inspirou os versos acima, quando o desenho foi distribuído durante uma oficina de poesia, na Casa das Rosas, para que os alunos criassem, na classe, um poema. Foi como se Dali estivesse me dizendo: “as pessoas escondem mil segredos, mas eu consigo vê-los porque elas, no fundo, querem que eu o faça”.
Todos acabam soltando seus segredos no ar, mais dias, menos dias; ninguém é,– como muitos dizem – um livro aberto. Eu também não. Durante minha vida toda andei desfraldando meus segredos, aos poucos. Frequentemente tive orgulho deles e de tê-los compartilhado com outros seres humanos nos momentos em que eu precisei fazê-lo ou em momentos em que eles necessitaram ouvir uma confidência.
Mas sempre fica algo, escondido, lá atrás, no fundo de passados já vagos, de lembranças cálidas, de desejos realizados, até de projetos sem futuro. Tenho sim, um segredo: pensar nele tem o gosto de um madrigal, como se sua simples presença criasse música e ela fizesse com que, de repente, eu conseguisse cantar sem desafinar.
É o tipo de segredo cuja gavetinha não abro sempre, mas quando quero acalentá-lo, basta um toque de dedo na minúscula fresta corrediça, para que eu fique inebriada pela sensação egoísta de que ele ainda está aí, vivo, dentro de mim. Como agora, neste momento: ele está chegando à minha mente, e, devagar, desce pela canície até a nuca, num caminho discreto, por traz das orelhas, tropeçando nos brincos, em direção aos lábios, agora solto no ar. Único, talvez o último, eis aqui meu pequeno grande segredo: ainda tenho um segredo.

ASSIM É SE LHE PARECE - CONTO

Sandra entra na pequena transversal onde já há muitos anos deixa seu Gol. Não é trecho zona azul e está a menos de 100 metros da empresa onde trabalha, mas não tem estacionamento. Desliga o motor, junta pasta e bolsa que estão jogadas no banco ao lado e se prepara para sair do carro quando nota um Ka que estaciona em frente ao seu. Dele sai uma moça, entre 32/35 anos, loira, alta e esguia, muito bonita, que corre em direção de um Chevrolet que acaba de para atrás do seu Gol. Pelo espelho a vê entrar nele correndo, um rápido beijo e o carro arranca. Ao passar ao lado de Sandra, ela nota ao voltante um homem extremamente elegante, cabelo grisalho. Um charme.
Sandra tranca o carro e, ao encaminhar-se para a firma, olha o céu e pensa que deveria ter tirado o guarda-chuva do porta mala. Paciência. Não volta atrás. Durante a curta caminhada sorri pela cena que acaba de presenciar. Está na cara: o típico comportamento de um relacionamento em que o encontro não deve ser presenciado. Cada um sai com seu carro por um certo trecho e depois seguem juntos; quem sabe o indefectível caso de chefe e secretária, ou, simplesmente, vão passar o dia interinho juntos em algum motel. Por que não? Uma ponta de inveja obscurece o sorriso de Sandra. Ela aperta o passo: vai ter um dia pesado.
O Chevrolet desce os 100 metros da ruela e, assim que entra na Avenida, pára na porta do edificio de uma grande empresa internacional. Ainda com o carro ligado, ele põe a mão no joelho da mulher, inclina-se para beijá-la e, ao despedir-se, recomenda: "Querida, quando você sair do trabalho e depois de pegar as crianças na escola, chegando em casa me liga para dizer o que a Rosa preparou para o jantar, assim saberei que tipo de vinho comprar. Seria até melhor se os meninos jantassem antes; o Dr. Rodrigues não me parece homem de atuarar crianças à mesa."
Ela pisca um sorriso maroto: "Deixa comigo..."

As Chaves

Miniconto


“Já que você prefere ficar com o Corsa, poderia me trazer o Fiesta aqui no flat onde estou? Desculpe pedir, mas acabo de conseguir uma entrevista para um emprego importante e não daria tempo de ir até aí para pegar o carro”
“Tá, Jaime, já estou indo. Mas vou deixá-lo na porta com o manobrista. Está bem?”
“Sim, sim, obrigado mais uma vez, desculpe”
Marta desligou e correu para a bolsa: chaveiro com cavalinho é do meu Corsa; chaveiro com chapéu mexicano, do Fiesta.
Estranho. Setenta e duas horas atrás tudo estava bem e agora o Jaime já se mudou daqui, levou toda a roupa e eu estou só.
Divorcio? Separação? O que está acontecendo?
Por uma briguinha que parecera a toa. É assim que acabam os casamentos?
Chegou na garagem, entrou no Fiesta, arrancou da bolsa o chaveiro errado. Jogou no banco ao lado, procurou às cegas o chapéu mexicano e deu partida.
Na avenida as árvores pareciam não saber de nada, o trânsito era o mesmo de sempre. Nada parecia mudado e portanto tudo estava mudado.
Chegou em frente ao flat, o manobrista correu ao seu encontro.
Marta entregou as chaves pela janela e avisou: “É para entregar ao Jaime Ferris do 301. Pode chamar-me um táxi por favor?”
Ao agarrar a bolsa no banco ao lado, viu o chaveiro de cavalinho de prata brilhar sobre o couro escuro do assento. Pegou, pensou um instante. Voltou a jogar no mesmo lugar.
Não pode tudo terminar assim.
Quem sabe?..

A Flor

Miniconto


Sentada no ônibus, ao lado da janela, o sol batendo forte. O elétrico está parado. Algum problema na corrente, ou na voltagem, sei lá. O motorista mexendo lá atrás. Não posso trocar de lugar; está cheio e ainda tenho pelo menos dez paradas até chegar lá. O jeito é esperar.
Olha lá como melhorou esta avenida, tem até canteiro cheio de plantas, grama, florzinhas amarelas. Mas olha lá adiante. Tem uma, de haste alta, que está por abrir, parecendo um guarda-chuvinha cheio de pequenos botões de um lilás azulado. Parece um agapânto. É um agapânto. Quem sabe ficamos aqui parados o tempo suficiente para vê-lo abrir totalmente.
Era a flor que mais dava no jardim do meu jardim de infância. Agapântos em versão alternada: azuis e brancos. Azul como o avental que as freiras obrigavam a gente a usar. Branco como a gola engomada e o laçarote listrado nas duas cores. Gente! Faz pelo menos sessenta e cinco anos, ou mais...
O elétrico continua parado. Muita gente, sem paciência, desce buscando outra condução. Como faz a senhora sentada à minha frente, com uma menina de uns seis ou sete anos.
“Venha Carlinha, cuidado ao descer, estamos atrasadas, vamos pegar um táxi”.
As duas passam ao lado do agapânto.
Carlinha arranca a flor e mostra à mãe:
“Bonitinha, né? Mas ainda não abriu” e a atira no meio da avenida.
Passa um carro. Fica uma mancha azulada no asfalto.
Era só uma flor.