quinta-feira, 10 de julho de 2008

Um Segredo de Família- Crônica

Meu avô materno era pintor. Nunca foi famoso, mas devia ter sido muito bom se com seu oficio sustentava uma mulher e dois filhos. Pintor sim, e também anarquista. Como todo artista que se preze, não escondia suas tendências políticas consideradas, naquela época de monarquia, subversivas. Sempre que o rei tivesse que sair do palácio, meu avô ia preso, uma semana antes do evento até uma semana depois da volta real. Um dia cansou: lembrou-se do convite de um arcebispado francês que repetidamente oferecia-lhe o posto de restaurador dos afrescos de algumas catedrais daquele país; fez as malas e foi-se, na surdina. Muitos anos depois, nos idos de l915 ou 20, velho e doente, voltou ao lar, também na surdina, para morrer no seio da família.
Foi somente em 1950, quando meus pais resolveram mudar-se para o Brasil, que minha mãe e meu tio resolveram meter as mãos nos velhos guardados, e dividiram pacificamente entre si as peças remanescentes de uma época já quase esquecida.
Apareceu, no fim, um impasse. Houve duas fotos: uma do vovô pintor, e outra da vovó, ambas em molduras ovais, parecidas, mas bastante estragadas. Como decidir quem iria ficar com o retrato de um e quem com o da outra, separando o casal: um na Itália, outro no Brasil? Enquanto tentava-se chegar a um acordo, acharam por bem, pelo menos, mandar trocar as molduras para que durassem algumas gerações a mais.
Surpreendentemente, atrás da foto do meu avô pintor, entre o passe-partout e o fundo da moldura apodrecida, surgiu a foto de uma mulher que não era minha avó. Mesmo estilo de cabelo da época, mesmo veludo em volta do pescoço, com ou sem camafeu, as duas de brincos pingentes. Decididamente aquela mulher não era a vovó.
Não sei com que tipo de raciocínio os dois irmãos fizeram sua escolha, visto que as crianças não foram chamadas a presenciar as discussões. Sei porém que meu tio ficou com a foto do vovô e minha mãe com a da vovó. Conhecendo bem mãe e tio, me arriscaria a dizer que a escolha foi, hoje, bastante compreensível. Meu tio, com a mentalidade da época, deve ter concedido ao pai o beneplácito do perdão pela infidelidade, enquanto minha mãe, que ainda hoje aos 102 anos, conversa diariamente com a foto da sua, deve ter escolhido o da mãe, rejeitando o pai, pela “traição”.
No fim dos anos 70, quando morei alguns anos na França, visitando as muitas regiões daquele país, flertei com a idéia de tentar achar, através dos arcebispados, os afrescos que meu avô teria restaurado, o que talvez me levasse a algum detalhe de sua vida. Não teria sido muito difícil, visto que a maioria das catedrais na França são de arte gótica, que preferencia altas colunas e arcadas entrelaçadas, paredes estreitas ornadas de telas e trípticos a óleo, onde não haveria lugar, nem por espaço, nem por coerência de estilo, para afrescos, mais típicos da arte românica, barroca e renascentista.
Sempre resisti à idéia da pesquisa. O segredo do meu avô está muito bem guardado naquelas catedrais, com ou sem a benção de seus sacros muros. Amém.

Nenhum comentário: