quarta-feira, 24 de setembro de 2008

CRÔNICA DE UM DIA DE AZAR

-“Só quero vê-la em fins de Setembro. Está tudo pra lá de satisfatório, viu? Continue assim!” Estou feliz: colesterol OK, glicemia nota 10, potássio normal. Vou continuar me contentando de saladas, legumes, peixes e carnes brancas, frutas e sucos naturais e me regalando – alegremente, mas só uma vez por mês – uma carne suculenta, ou uma fritura crocante, ou uma sobremesa de arromba. Saio risonha da clínica para a rua ensolarada, procuro a sombra das árvores: o sol está forte e o ar abafado, prenúncio de temporal. Mais tarde acabará refrescando, mas por enquanto suo em bicas. Meia quadra ate o estacionamento. Pago alegre e aguardo que me tragam a Katarina. É: meu Ka tem nome, como tem nome meu gatinho de madeira que dorme num canto da sala, tão perfeito que parece ronronar; como tem nome o sapo de terracota, boca rasgada e pernas tortas, que divide o chuveiro comigo. Que bom, daqui a pouco chego lá: um banho rápido, um suco e uma maçã correndo e depois irei me refrescar na hidroginástica. Katarina não chega. Espero no sol, o estacionamento é ao ar livre. - Faltou manobrista hoje, Sr. João? - Faltou não. Oh, Zé, cadê o carro da doutora! Deixo Katarina há anos aqui e já expliquei ene vezes que não sou doutora, mas eles insistem; provavelmente em homenagem à minha idade. Lá vem o Zé: chaves na mão. - Doutora, o carro não quer pegar! Juntam-se mais três. - Preocupa não, doutora, vamo fazé pegá no tranco. Sorrio, espero e olho os homens empurrando Katarina em vão. Nada. Sei que todos tem boa vontade, mas ficam uns quinze minutos no nada. Que azar. - Doutora, acho que é a bateria. - Tem uma oficina por perto? - Tem sim, a três quadras daqui. Vou lá. No caminho os primeiros pingos de chuva. Aperto o passo, chego lá na hora que começa a chover mais forte. - Tem alguém para ver meu carro no estacionamento da Martim Francisco?Não está querendo pegar. - Não estamos mais fazendo atendimento de rua, Dona. Só consertos de seguros, mas tem outro a duas quadras daqui. Muito bom, chama Adauto. Diga que o Zé Corintiano mandou! Lá fora o dilúvio. - Posso esperar a chuva estiar? - A vontade, Dona. Olho o relógio, já passa das três, chove, estou atrasada e o guarda-chuva ficou no carro. Azar. Espero mais quinze minutos e resolvo me molhar. Corro as duas quadras. - O Adauto está? - Foi tomar café na esquina, já vem. Espero. Que nome: Adauto. Com um nome desse nunca escolheria ser técnico de televisão...Mais dez minuto. Adauto chega. Explico. - Vamo lá, Dona. Pego meus treco e vamo. Some lá para os fundos e volta com uma caixa de ferramenta na mão direita e um saco de lixo feito capuz na cabeça cobrindo também o ombro esquerdo onde segura uma bateria. Vamos os dois na chuva, arrisco um “ desculpe o transtorno”. - Que é isto Dona – e ri seu riso mulato, gengiva muito rosa – a gente tá aí pra sol, chuva, calor e frio, e agradece a Deus que aqui, - titubeia - não tem neve. Percebo que não saberia declinar o verbo nevar. Chegamos. Abro o guarda-chuva que tiro do carro e fico olhando. Meu cabelo está pingando, o sapato cheio de água. Adauto dá um ói aos outros, abre a caixa, tira uma porção de ferros, olha desolado para mim. - Desculpe Dona, esqueci um troço. Volto já. Azar: pelo menos mais uns dez minutos. Volta sorridente, troço na mão. Começa, carrega a bateria, Katarina não pega, uma, duas vezes: nada. Abre o capô, desmonta peças, remonta peças. Nada. Azar. Olho o relógio: minha hidroginástica já era, e Katarina nada. Começo a pensar seriamente em ligar para o guincho do seguro. Olho para o Adauto que está me chamando, mas sou eu a falar. - Sr. Adauto, meu carro veio de uma revisão completa faz dez dias, o que pode ter acontecido? E ele: - Está tudo tão perfeito que não sei mesmo não... Olha de novo dentro do capô, mexe mais uma vez em tudo. A tarde está se esvaindo e nada. Horas perdidas. A roupa molhada está ficando gelada; o cabelo empastado parou de pingar, mas nada. Azar, perdi a tarde inteira. De repente Adauto corre para dentro do caro, senta, se abaixa, pega algo debaixo do painel, mexe uns minutos delicadamente com os dedos e sai triunfante: sorriso mulato, gengiva muito rosa, uma pecinha avermelhada na mão, quadradinha e achatada, do tamanho da unha do meu polegar. - Achei Dona. Fuzil! Aqui está o queimado. Já troquei. A Forde deixa sempre um estoque grande no estojo de reserva. Olho a pecinha, agora na palma da minha mão. Fico pasma: um fusível azarou minha tarde inteirinha. Por reação nervosa começo a tremer de frio. Pago a todos, gorjetas aqui e acolá. Agradeço a todos, João faz questão de levar Katarina até a rua. - Obrigado Doutora! Na hora de entrar no carro, um idiota passa a todo vapor do meu lado em cima de uma poça e lá se vai minha calça de linho cru, agora cheia de lama e graxa. A chuva começa forte, agora desaba mesmo. O trânsito está daquele jeito, mas estou chegando em casa; pelo menos isto. Ao entrar, cumprimento o gato Mustafá, jogo no chão do banheiro minhas roupas, as de cima e as debaixo. Entro no chuveiro, rego o sapo Craco e sento no chão debaixo de uma água quente e reconfortante. Acabo com o frasco de shampú. Toalha enrolada na cabeça, roupão apertado no corpo, dou um nó no cinto e enfio as mãos no bolso: hoje mais nada, não faço mais nada, não quero mais nada. Nem comida. Deito no sofá, nuca num braço, calcanhares no outro e ligo a televisão. Num desses canais sensacionalistas, uma mulher na delegacia dando queixa de assalto na marginal. Choramingando, encharcada de chuva, cabelo escorrendo. - Levaram tudo, meu dinheiro, meus cartões, meu relógio e até meu guarda-chuva. Só não levaram o carro porque havia parado de estalo naquela maldita marginal e não pegava mais. O delegado suspira. - É, sei minha senhora, o patrulheiro me falou. Foi ele mesmo que trocou seu fusível, não é? Solto uma gargalhada. De repente estou com fome. Risotto de atum com alcaparra. É pra já.

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