quarta-feira, 3 de setembro de 2008

CARAMBOLAS

Crônica para uma amiga

As mãos de Salma, são grandes e nodosas. Elas carregam consigo o trabalho de tantos anos de cuidar, colher e cortar limões. Nesta última tarefa, a de cortar limões, é que revelam a paixão: fatias grossas desnudando o contorno bem amarelo, a espessura branca esponjosa, os gomos irradiados do centro para fora, feito estrelas. Ela junta com a lâmina da faca o suco que delas se desprende, como se ele não acabasse desperdiçado na tábua de madeira ou na pedra da pia. Com a inibição e o recato ancestral das mulheres muçulmanas, e apesar do corte rítmico, ou talvez justo por ele, é surpreendente ver o manuseio quase fálico com que Salma trata aqueles limões, grandes, muito amarelos, casca carnuda, uma pequeno saliência do lado oposto do caule. Seguramente é o gesto que desenvolveu, quando já viúva e sozinha, passa a cuidar da plantação, talvez inconscientemente treinando, no trato daqueles frutos, os prazeres carnais que se havia negado. Preencher grandes potes alternando fatias de limão e pimentas dedo-de-moça, salpicando agilmente os temperos e cobrindo tudo de um denso líquido antes de atarraxar as tampas, é coisa corriqueira para ela, visto as prateleiras cheias daquelas conservas, enfeitando sua cozinha. Coisa corriqueira, sim, mas ritual preservado em orgulho, dignidade e altivez. Não a toa, os outros não a chamam Salma, mas se dirigem a ela como “uno Nasser”, o reconhecimento de que ela é a legítima representante da família de que ela carrega o sobrenome, como se ela mesma fosse a própria família, ou o seu coletivo.
Salma é personagem do filme “Lemon tree”, (Etz Limon, produção Israel/Alemanha/França, 2008), uma ode à coragem, sensibilidade e humanismo não só de uma, mas de duas mulheres, a segunda uma israelense. São as mulheres de Atenas que ressurgem de uma luta ancestral, de uma guerra sem vitórias previsíveis, e por isto mesmo mediadas, pouco a pouco, pelas mães, esposas, camponesas, diplomatas, viúvas e amantes, todas concentradas em duas únicas mulheres, entre árvores frutíferas e limões, caídos ou não, cujo cheiro parece saltar da tela, salivação aguçada pelo calor da terra : lágrimas não derramadas.
Escondida atrás de um cortiço da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, há uma única árvore de carambolas, que quase roça nas janelas da casa da Sandra. Seus frutos amarelos que eu lembro servir , cortados em forma de estrelinhas e regadas a suco de laranja lima, para minha filha pequena: eram aquelas formas que a incentivavam a comer fruta no lugar de doces.
Quem mora naquele cortiço, há crianças? certamente há mulheres: de que região vieram, o que fazem com tanta carambola disponível? Fazem geleia, ou as caramelam no forno com canela e açucar.....esta palavra que nos chega do sânscrito, portanto de longe, de outra raça, de outra religião. Que tipo de mulheres são essas, de nossa mesma terra sim, vizinhas sim, mas relegadas a uma distância tão pequena que não as alcançamos........E como elas alcançam aqueles frutos? com vara longa, com escadas, sacudindo os ramos, ou escalando os troncos como os catadores de coco?
Não haverá necessidade de nenhuma Salma para cuidar aquela árvore de carambolas. Esta nossa terra é pródiga, fértil, generosa: seu frutificar dispensa as Salmas dos terrenos arenosos da Palestina e de Israel; ela solta pelo ar a luminosidade de seus frutos, também amarelos, também dourados, também estrelados; e seu aroma inconfundível tanto quanto o dos limões......
A luminosidade e o aroma dos limões, guiaram a vida de Salma por gerações e penetraram na vida de sua vizinha estrangeira, praticamente inimiga, transformando-lhe a essência.
A luminosidade e o aroma das carambolas deram o bem-vinda a Sandra quando, ignorando a dádiva, ela escolheu aquele endereço num momento de reconstrução de vida.
Abra sempre a janela, Sandra, você tem a vantagem do canto dos pássaros que podem sorver carambolas maduras, mas não rondariam um limoeiro cujos frutos tem uma couraça protetora que somente por mãos amorosas, e palestinas, nos enternecem a alma.

5 comentários:

contraditório disse...

Bruna Querida!
Que presente vivo!
Emocionante!
Não só pelo texto, mas pelo gesto.
Um gesto de carinho, mais que isso, de sintonia e ligação!
Adorei o jeito que me confortou!
Disse tudo. Leu o contexto e meu coração.
Bjs

Um instrumento do amor disse...

Olá Minha Cara Amiga Bruna! Quanta satisfação, generosidade e carinhos que transborda-se em seu blog. Sabe, essas coisas me cativam e me emocionam de uma forma que me calo por não encontrar palavras que explicitam de forma tão intensa os meus sentimentos. Fiodor! hehe, Crime e castigo?! Bom, nesta parte viajo apenas na imaginação superficial de quem já ouviu falar mas não conhece realmente os fatos. Acho que depois desta, serei um daqueles que correrá para ler e conhecer, assim como quanto mais nos conhecemos, mais nos aproximamos e produzimos algo comum. Amor. Ame! E amemos pelo sol, pela chuva e pelas amizades.

Obrigado.

Abreijos.



pedro

Um instrumento do amor disse...

...esses avelãs brilham ao encontro de pessoas que nos trazem singelamente, um gosto doce e jovial pela vida.

Abreijos
Pedro

Blog da Bruna disse...

Os comentários dos meus queridos Pedro e Nara, não sei como foram parar aqui: eles foram programados para os textos AME (Nara) e O CRIME e CRONICA SOBRE A RELEITURA DE DOSTOYEWSKI (Pedro). Assim mesmo
estou muit comovida com vosso carinho...

Blog da Bruna disse...

Os comentários dos meus queridos Pedro e Nara, não sei como foram parar aqui: eles foram programados para os textos AME (Nara) e O CRIME e CRONICA SOBRE A RELEITURA DE DOSTOYEWSKI (Pedro). Assim mesmo
estou muit comovida com vosso carinho...