sexta-feira, 4 de junho de 2010

PROSAS, POEMAS, POESIAS E TENDÊNCIAS SURPREENDENTES

curto ensaio sobre um assunto que pretendo aprofundar.....um dia.

Pois é, Fabiana...
Como falei para quem quisesse ouvir: não estou na sua oficina na Casa das Rosas para aprender a escrever poemas, mas para ver se crio o habito de lê-los. Por coincidência, as poucas aulas que já tivemos me levaram de volta a uns oito anos atrás quando assisti no MAM a uma rápida oficina ministrada por Jorge Montesino, membro de um grupo que apresentou como "Poetas Fronteiriços".
Já ouviu falar?

Os poemas escritos por diversos autores que cresceram e vivem nas fronteiras onde se encontram de muito perto o Portugues, o Espanhol e o Guarani, se pontuam pelo uso livre dos três idiomas. Não lembro muito bem dos textos que lá foram apresentados, mas ficou bem gravada na memória a força que percebi neles, mesmo não tendo nenhuma familiaridade com a lingua indígena. Durante muito anos privei do convivio de diversos amigos argentinos, uruguaios e paraguaios. Aprendi com eles as peculiaridades dos sons, dos significados nem sempre idênticos de palavras idênticas, e de como a substituição de palavras de um idioma por outro pode enriquecer as imagens que se pretende transmitir. Daí o interesse que ficou não tanto no âmbito da poesia, mas no da poética.
Não é de se estranhar portanto que a experiência daqueles poucos encontros no Ibirapuera tenha-me trazido a musicalidade, o ritmo e a sensação de que aquele novo filão literário estava longe de ser uma pesquisa em andamento, mas resultado instintivo de uma cultura que nasceu e se aprofundou com anos e anos de convívio diário dos povos fronteiriços.
Durante as leituras que Montesino fez naquela ocasião, e depois delas, ruminando ainda os sons, as vezes largos, outras insistentes como máquinas, tive certeza de que qualquer um de nós, mesmo conhecendo academicamente os dois ou mesmo os três idiomas envolvidos, não teria a "cultura" necessária para se atrever a escrever um texto como aqueles que ouvi pelos "Poetas Fronteiriços". Aqueles textos não tinham nada de "macarrônico", pois o termo soa como pejorativo. O Koogan-Larousse define a palavra como:

"gênero irônico em que à lingua original se adicionam, na tentativa de parecer douto, palavras latinas ou de outros idiomas. Diz-se também de qualquer idioma escrito ou falado erroneamente na tentativa de fazer-se entender, ou burlescamente, para ironizar".

O que eu ouvi do poeta Montesino, foi literatura de qualidade onde se percebe que a escolha de uma palavra num idioma - comandada por um verbo de outro ou viceversa- é instintiva e provém de um convivio tão profundo e regular que garante ao autor, sem vacilar, a eficácia mais segura e mais vívida. O fronteiriço lida da manhã até a noite não só com as demais culturas, mas com sons de outros seres, de sua música, de sua expressão corporal, de seu gesticular; inclusive das reações a certas coisas que ele vê nos "outros", para as quais ele, o fronteiriço, reage de outra maneira ou não reage de todo. O fronteiriço incorpora até os cheiros e paladares de outras culinária, fazendo com que haverá momentos em que, estando em outro lugar, lhes farão falta certos sabores e certos temperos. Isto lhe traz a cultura alheia que ele fez sua; a intimidade do sentido de cada palavra fará com que - instintivamente - ele possa escolher o termo que melhor comunicará aos outros, e que seja mais apropriada para expressar-se até na propria língua.
Ao final da oficina tive que elaborar um exercício em forma de poema, que intitulei "Saudades Fronteiriças". Sei que ele é uma fraude: os sentimentos que me levaram a relembrar meus amigos -a maior parte artistas com cujas obras convivo ainda - são legitimos e sinceros, mas a forma de meu texto é rebuscada do momento que tive que procurar, estudar, remanejar os "onde" e os "quando" misturar idiomas. Sem contar que não pude incluir o guarani de que não tenho realmente noção alguma.
Para dar um exemplo, somente consegui usar a palavra "saudade" no título. O poeta fronteiriço saberia quando usar a palavra "saudade", abstrata mas tão doce e tocante; porém ela exige de quatro a cinco outras palavras para formar a frase que a expresse; eu recorri ao simples e incisivo "estrañar", mais dramático, visceral e seguramente mais compácto. A palavra saudade interromperia o ritmo que estava jorrando das minhas saudades românticas para as do papel. Por ser uma fraude, minha "Saudades Fronteiriças" é, sim, um texto macarrônico e se o achasse (sò Deus sabe que fim levou, pois ainda estou a procura daquela página...) e o mostrasse, todos perceberiam isto facilmente. Qualquer um adivinharia onde deixei uma palavra em portugues e onde a transformei em espanhol. Assim mesmo tive a coragem de ler na classe o meu "poema" (e eu que estava certa de nunca ter escrito poemas...) e Montesino seguramente me perdoou, pois até fez um "cafunê" no meu cabelo bem menos branco do que agora, e sorriu.
Nunca mais ouvi falar dos poetas fronteiriços e, sob o ponto de vista cultural, lamento que eles não tenham tido uma divulgação mais ampla.
É provável que ao longo dos tempos venha realmente a ser criado um idioma comum àqueles três, e adotado em toda a América Latina. Foi dessa maneira que criou-se - por exemplo - o Papeamento, língua oficial das Antilhas Holandesas, baseada no Holandês, Espanhol, Portugues e Inglês. Tem gramática e regras próprias, é ensinada, escrita e falada por cerca de um milhão de habitantes das Ilhas Bonaire, Curaçao, Aruba e até do pequeno arquipélago das Ilhas de Roque, recentemente transferido geográfica e politicamente à Venezuela, onde não sei se agora o novo idioma permanecerá. Em Oranjestaad (Aruba) e Willemstaad (Curaçao) existem bilbiotecas em formação para abrigar a produção literária em Papeamento, ainda pequena por ser idioma tão recente.
Papeamento não é o único exemplo de idioma "fronteiriço" originado da fusão de outros. A Suissa tem quatro idiomas oficiais: alemão, frances, italiano e romanche, mas em todos os Cantões fala-se correntemente o Switzerdutch, que incorporou os quatro. Na África do Sul, o Africaans nasceu da fusão do Holandês, Inglês e diversas linguas tribais. O Africaans e o Inglês são hoje linguas oficiais: o ensino é feito nas duas e a programação de rádio e televisão é transmitida alternadamente.
Tudo isto já está acontecendo no mundo sem que quase se perceba. Com a globalização, e a evolução do sistema de comunicação e locomoção pelo mundo, mais e mais vezes estes exemplos se multiplicarão. O Continente Americano é solo fértil para isto: a latinidade, a sempre crescente miscigenação até no hemisfério norte, o convívio harmônico com os remanescentes povos indigenas, o estreitamento das relações comerciais e culturais agora em andamento; tudo isto solidificará a criação de uma proximidade linguística mais forte e - um dia - definitiva.
O que vi, ouvi e apreciei de Jorge Montesino é o começo consciente, portanto instintivo e espontâneo, daquilo que poderá vir a ser uma realidade. Para ser aceito no mundo literário universal, deverá cair, como está começando a cair, a rigidez das fronteiras, fazendo com que os povos sejam amalgamados numa harmonia que um dia possamos chamar paz.
Utopia?

2 comentários:

Liricus disse...

Realmente no sul do Brasil, existe uma linguagem muito rica, onde o espanhol funde-se harmonicamente com o Portugês, de maneira que suas palavras parecem parte de nossa lingua.

Anônimo disse...

Bruna, que belíssimo testemunho. Fiquei tremendamente curioso por conhecer essa poesia, fronteiriça. E também para ler o seu poema perdido, fronteiriço (hoje habitando o limiar entre a lembrança e o indizível).

Amanhã, vou te mandar um email com o meu email (só não farei isso agora mesmo porque já estou me despedindo do computador, aqui no trabalho). Ah! Li vários textos por aqui, inclusive alguns microcontos. Tanta coisa boa, que me convida a ler com calma. Por isso, inaugurei até um caminho direto, que liga o meu blog ao seu, para poder visitar sem demora, sempre que for possível, as suas palavras.

Beijos,
Theo