quarta-feira, 3 de junho de 2009

HOMBRIDADE

conto

“A oferta da emissora do Rio, ainda está de pé?”
A resposta foi um alívio. De improviso, uma pergunta do outro lado da linha leva Augusto a outra realidade.
“Você tem certeza de que quer trocar o teatro pela televisão? Pense bem: a longo prazo pode ganhar mais, ter popularidade, mas televisão é televisão e teatro é aquilo que você sempre quis e onde você já é alguém. Quer pensar mais uns dias?”
Qualquer atraso em sua decisão poderia custar-lhe mais do que a carreira.
“Não,tudo bem. Preciso mudar de vida, ficar longe de arrependimentos. Tudo bem, mande os contratos que eu assino”.
La fora, pela janela, apesar do transito, do barulho, do caos de sempre, vê um dia parado, amorfo, como se não tivesse data, nem hora. Ombro apoiado à vidraça, vê a poluição aproximar-se, velozmente, a envolvê-lo em nuvens escuras, ameaçadoras e inadiáveis.
Nem procurando entre as falas mais retóricas e batidas dos personagens que já viveu, acha algo decente para usar como trincheira. Esconder-se atrás de literatura: não é assim que se faz, não é seu estilo. Ele quer ser sincero, só sincero. A vista daquela janela que conhece as horas que ali dividiu com Júlia, começa a escurecer, as luzes pipocam aqui e ali.
Tem que ser hoje.
É hoje. Amanhã a noticia pode ter se espalhado.
É agora.
A ida a pé até o teatro infundiu-lhe coragem. Agora, em frente ao espelho do seu camarim, durante a transformação física para a personagem do palco, ele não consegue disfarçar sua angústia.
Já à porta da Júlia, um suspiro, um curto golpe e lá está o sorriso dela, um cílio postiço no dedo, um gesto para que ele entre. Ao voltar para a bancada, ela mostra o puf onde frequentemente estica as pernas entre atos e ele senta, joelhos no queixo.
Um silêncio rápido e a voz finalmente sai:
-Júlia, não sei o que você pretende fazer, mas.....
-Ainda não sei......-
É a Júlia, objetiva, pé no chão, segura. Jovem demais, mas madura.
-Eu ajudo em tudo, prometo Júlia, naquilo que você decidir...-
Silêncio pesado, o cílio no lugar.
-Eu não posso Júlia.......-
Ele quer ouvir claramente sua própria voz, antes de continuar:
-Na verdade, Júlia..eu não quero..
O arrastar-se da cadeira e a Júlia de pé. Tira o roupão, entra pelos pés no costume da Leila, caminha até Augusto e junta as pontas do decote, virando de costas:
-Por favor...
O sibilar do zíper, um encolher de ombros à mordida do fecho em sua carne.
Ao virar-se de novo para ele, Júlia coloca as duas mãos naqueles grandes braços agora relaxados. De repente ele parece mais baixo mas, apesar de mesto, seu olhar conserva a dignidade de sempre.
- Eu sei, Augusto. Eu sei. Sem rancor...”

Um comentário:

Helga disse...

Então Augusto ganhou um conto só para si.

Adorei!

b'js