sábado, 29 de agosto de 2009

O LADO ENSOLARADO DA COLINA

Conto.
Para Lucimar Bello com quem, finalmente, conquistei a liberdade para "inventar" palavras....


Caminhava pelas ladeiras aconchegantes, paralelepípedos limpos, telhas de ardosia, floreiras nas janelas. Câmara a tiracolo, Otávio sabia o que queria. Desde que saíra do ônibus de turismo, seu anseio era poder cristalizar de forma arrojada e definitiva a história desta colina. Dois versantes, duas estórias. Duas história.
WEIMAR, que o sol ilumina desde sempre, berço de uma cultura parida, amamentada e ninada por filósofos e pensadores, lá reunidos em volta de gênios como Goethe: o lado ensolarado da colina. Horizontes abertos, o infinito. Um véu de fina seda dourada deixando transparecer os campos verdes do futuro.
Jovens, muitos jovens: estudantes discutindo politica e sociologia nas mesas de calçada das cervejaria; garçonetes, servindo, sorrindo dos gracejos. Todos alegres, confiantes na construção de futuros promissores, anseios de carreiras, sucessos. Mesmo os feios, transpiram beleza.
Perto da igreja, um casal de velhos, bem velhos, está sentado nos degraus, mãos dadas, olhar perdido. Quantos anos? Setenta? Oitenta?
Quando o vêem, quebra-se a harmonia. A velhinha cobre o rosto, o homem estica o braço, planta da mão aberta veementemente na direção de Otávio: é um alto imperioso, e Otávio obedece. Calcula retroativamente os anos e entende.
Eles devem ser dos poucos que sobraram para ter um sentimento penoso de desonra. Porque viram, sim. Devem lembrar as sorrateiras construções do lado obscuro da colina. O outro lado, onde o sol nunca penetra, pois as rochas da cadeia montanhosa são tão rasantes que só deixam passar o vento, o gelo, a desesperança.
Otávio acabara de vir de lá: sinistro museu a céu aberto onde houve por anos, a desolação dos olhares opacos espiando entre as frestas das paredes de madeira. Mesmo supérstite, cada ser ali pisoteado, foi transformado em museu individual e ambulante até a morte, cada um classificado, registrado e arquivado por números tatuados. Em cada ser, os devaneios vagos e improváveis tentando cancelar da memória o que os olhos não conseguiriam obliterar.
BUCHENWALD, o lado tetro da colina.

Sorte temos nós, que ao abrigo de nossa paz, podemos só ter um olhar penoso sobre barbáries de todo tipo. Ver surgir os "Capri", arranhacéus residenciais, irremediáveis e assustadores perante nossas janelas, escondendo segredos, penas, risos, esperanças e medos. Os mesmos segredos, penas, risos, esperanças e medos escondidos nas palafitas dos alagados, nos paus-a-pique dos sertões, nas tristes favelas urbanas onde as vasas serpenteiam entre as barracas e devagarinho descem até nossas calçadas a lembrar-nos, de novo, de nossos próprios segredos, nossas penas, nossos risos, nossas esperanças e nossos medos.

2 comentários:

Benedito Deíta disse...

Seu texto, diferentemente dos meus, se revela , mesmo que aos poucos. Com o texto caminhando lado a lado com o desvendar. A reação abrupta do velho do casal, lembrando Hitler e o repudiando, junto com o passado, é uma etapa. E os adolescentes, mesmo bonitos quando feios, é uma das cortinas, "finas sedas". Os dois, e outros momentos, são planos diferentes, que se mostram como à uma câmera que caminha.

A parte final, mais poética nas palavras, precisa de mais pensamento para minha compreensão.

Talvez tenha se aproximado um pouco dos mistérios que construo.

Benedito Deíta disse...

Penso que segredos, risos, medos e outros tantos, são mais expostos que escondidos, quando se trata de palafitas e favelas. É nisso qua acredito descordar de você