segunda-feira, 23 de março de 2009

....e mais SERES IMAGINÁRIOS

CONTO
Carol Samuelson era minha grande amiga: íamos sempre juntas à praia, ao cinema, às festinhas – os arrastapés, como eram chamados, na época, os bailinhos de tarde na casa de alguém da turma, onde as moças levavam salgadinhos e os rapazes, o rum e as coca-colas. A casa dela era a mais frequentemente usada. Grande, espaçosa, os pais acolhedores mas presentes demais. Uma família linda: escandinavos loiros, lindos, olhos azuis ou verdes, altos e esbeltos. Carol, uma verdadeira sílfide, como diria Littré, era a mais moça das três irmãs e do Sven, o irmão mais velho que já era oficial instrutor da marinha.
“Você deveria conhecer Sven, Bruna, é uma pena que suas licenças são curtíssimas e imprevisíveis. Ele é tão diferente de todos nós que Você nunca iria maginar, nem de longe, que ele é meu irmão. Você iria gostar muito dele e ele iria amá-la. Vocês são almas gémeas.”
Carol ganhou uma bolsa de estudos e lá foi-se ela numa tarde de sábado, num navio da McCormack, em direção aos Estados Unidos.
“Venha à despedida no cais, até Sven prometeu ir. Eu falo tanto em você que ele sempre me pergunta e quer conhecê-la.”
Fui. Sven não apareceu e todos choramos muito, abanando lenços e beijos.
Por muito muito tempo, não vi mais Carol. Conseguiu estender sua bolsa de estudos e acabou ficando na Faculdade de Seattle até se formar. Nisso, eu me casei, mudei-me para São Paulo e recebia noticias dela pelo telefone dos pais. Quando voltou começou a escrever-me cartas cada vez mais frequentes. Estava apaixonadíssima por um Ronaldo no inicio de uma brilhante carreira diplomática, já à beira de um posto no exterior. Eu estava feliz por ela.
Ao voltar de uma longa viagem de negócios, achei o convite do casamento já celebrado há duas semanas. Liguei angustiada; sua irmã Christa, explicou-me que os noivos já haviam embarcado para o Peru, seu primeiro posto como segundo secretário de Consulado. E, assim, começou nossa correspondência de muitos anos. Carol, cada vez mais apaixonada pelo seu Ronaldo, andara por Colômbia, Chile, Guatemala e, na Grécia, ele já era Adido Cultural da Embaixada. Sempre que pensava nela, eu a imaginava lindíssima como sempre foi, ao braço de um Ronaldo moreno (pelo sobrenome devia ser bem brasileiro) e sarado como os rapazes que admirávamos juntas na praia.
Em cada carta, falava de seu imenso amor por esse marido, para mim desconhecido, mas que seguramente merecia aquela Carol maravilhosa que eu sempre admirara. Acompanhei de longe sua primeira gravidez, o nascimento de Sofia, seu batizado, suas dificuldades em mudar de idioma e de escola a cada dois ou três anos. Suas cartas continuavam alimentando minha idealização de um casal de beleza incomum circulando entre os mais refinados e exclusivos ambientes internacionais: seguramente o mais bonito casal diplomático da década.
Um dia, o toque do telefone e a voz inconfundível de Carol:
“Bruna, estamos por poucos dias no Rio. Sofia vai fazer a primeira comunhão depois de amanhã, e não posso admitir que isto aconteça sem sua presença. Vire-se mas venha, não vou aceitar desculpas nem problemas. Quero que você conheça o meu Ronaldo. Estamos cada dia mais apaixonados e depois de tantos anos agora eu sei, com certeza, que ele é, e será sempre, o homem da minha vida. Ah! E venha sim, pois finalmente Sven também estará aqui.”
Minha vida a galope. Minha filha em colégio interno na França. Meu casamento em frangalhos. Nem sei como consegui conciliar tudo. Cheguei no salão da festa horas depois da comunhão. Ao descer os degraus do salão, onde dezenas de mesas acolhiam os convidados, percebi que um telão estava projetando fotos de Sofia, e só de Sofia, desde o nascimento até o momento da hóstia sagrada.
Fiquei na escadaria aguardando que terminasse e logo percebi um homem chegar lentamente até a mim. Pequeno, olhos mornos, um imperceptível estrabismo, grande orelhas, calvície para lá de avançada e um sorriso aberto, branquíssimo, quase uma gargalhada repreendida. Num ligeiro inclinar do rosto, pegou minhas duas mãos nas suas: “Você é a Bruna, sim?”
Desci os últimos dois degraus para diminuir mais um pouco nossa diferença de altura e abri meu sorriso prazeroso, numa súbita adivinhação: “Sven?”
O barulho dos saltos de Carol destolheu minha atenção e lá veio ela, arrastando Sofia, no seu vestido longo e branco, que corria segurando com a mão livre a tiara de margaridinhas nos cachos loiros.
Carol me abraça com tanta força que fiquei torta, numa posição estranha, com o tronco entre os braços dela, minhas mãos nas mãos de Sven, e a beira do meu vestido puxado pela mão de Sofia. “Você veio, você veio!” Livre das torções físicas daquele abraço maravilhoso, mal percebi Sofia infiltrar-se entre eu e o Sven, perguntando surpresa: “Papai, nem você conhecia a Bruna?”
Não consigo lembrar minha reação nem qualquer coisa que tenha feito ou dito na meia hora seguinte, tamanho foi meu embaraço. Quando fui, finalmente, apresentada ao Sven deparei-me com um gigante rubicundo, uma vasta cabeleira ruiva encobrindo as orelhas, enormes mãos segurando um cachimbo apagado, mas seu sorriso sim era o sorriso da família mais bonita que eu jamais conheci.
Seres imaginários?
Sim, foram dois, e completamente errados.

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