Andei desligada por um tempo: muito tempo.
Meus oitenta anos (falta pouco pouco...) me estavam convencendo que, afinal, tudo já foi dito, tudo já foi escrito...
Então aqui vão quatro contos que já estiveram aqui, mas que eu havia retirado pois estiveram a ponto de serem publicados em livro.Mas o livro não saiu e então eles voltam para casa. Pois meu blog é a casa de minhas palavras.
sábado, 7 de dezembro de 2013
ENXADRISTAS
Meus caros leitores: este é um conto capcioso. Não troquei os nomes por engano, simplesmente dei voz aos sonhos frustrados de homens que, assim mesmo, são capazes de admirar outro sem rancores, apesar de não ter conseguido emulá-lo em suas especialidades. Não precisam gostar deste conto.Eu o amo.
-…E
com vocês nosso mais novo e mais ilustre cidadão honorário, João
Carlos Pontes!.
Sobe
os poucos degraus do pódio com desenvoltura e ainda com alguma
agilidade apesar dos setenta e alguns...
-Obrigado,
obrigado a todos por estarem aqui, obrigado mesmo. Estou orgulhoso,
comovido e muito, muito feliz. O novo Parque da Cidade, que acabei de
concluir, é justamente minha homenagem a este lindo Rio de Janeiro
que me acolheu ainda estudante, vindo de uma obscura aldeia do
interior de...
Seu
olhar percorre o imenso salão, mesas brancas cobertas de flores,
cristais, gravatas borboletas, diamantes e sorrisos, todos virados
para ele. Meu Deus! No fim, os aplausos que já não o intimidam como
antigamente. Agradece sorrindo mais uma vez, outra vez, dez vezes e
desce a juntar-se à família: filhos, netos, noras, genro.
-Amanhã
de manhã vamos todos passar o fim de semana lá na casa de Corrêias,
...
-Pai,
você sabe que não posso: tenho que voltar já para Hamburgo.
Segunda recomeçam minhas aulas na faculdade, ainda tenho dois anos
de contrato e o reitor não perdoaria. Lá certas coisas não se
fazem...
-Vô,
se você é tão famoso assim, você ainda pode ganhar um premio
Nobel?
-Olha
Fredy, lá na Suécia ainda não criaram premio para arquitetura, nem
para o Frank Gehry....
-E
quem é esse...o quê...?
-Deixa
pra lá...Um dia seu pai leva você a Bilbao...
-Meu
filho, seu avô não precisa mais de prêmios: ele já conseguiu
realizar todos seus projetos, todos seus sonhos, não é pai?
-Olha,
até que sim...mas há sempre que criar mais uma meta na vida para
ter a força de seguir com o mesmo entusiasmo. Eu já consegui quase
tudo sim, mas ainda vou dar um xeque-mate naquele cara. Um gênio no
xadrez: ainda não consegui ganhar dele nem uma vez.
-Quem
é?
-Um
conhecido, foi até colega meu na faculdade. Jogo com ele lá na
Atlântica com a Bolívar quase todos os sábados de manhã. Um
grupo de aposentados super divertidos...Pare de mexer nos copos
menino, olha lá...
A
garrafa de champanhe tomba na mesa, uma taça entorna levando dezenas
de outras em efeito dominó. Garçons correndo, barulhos de vidros a
tilintar por toda parte... a tilintar, tilintar...tilintar...
Tilintar...tilintar...Rola
da cama, chinelos no pé, corre ao telefone, e atende:
-Pontes!
Olha
surpreso o fone preto na mão esquerda, a ponta de um cordão no
punho direito: pênis espremido no vidro do console, as pernas do
pijama despencadas sobre o peito dos pés.
-O
que é, Chicão?
Escuta,
sacode a cabeça, olha entediado para a gravura na parede entre as
duas arandelas e suspira:
-Nada
disso Chicão, altura da janela e cor das paredes vai ter que esperar
até segunda-feira. Chego mais ou menos dez horas, e aí eu resolvo.
Umas
sacudidelas e tira os pés daqueles emaranhados.
-Para
quê fui aceitar a reforma do apartamento do Freitas. Eu já estava
aposentado, precisava?
Água
gelada enquanto a cafeteira burbureja. Uma chuveirada, bermudas,
camiseta, havaianas e o boné amarelo da sorte para proteger a careca
incipiente: o sol está ainda morno para ser já um dia de verão,
mas daqui a pouco... A barba fica para depois.
Algumas
esquinas, uns “alôs” para conhecidos das redondezas e lá está
a amendoeira, abobada acolhedora, grande, generosa; algumas folhas,
já com ar caramelado, fingem frescor.
-Olha
aí o Pontes finalmente chegando!
-Ué,
estou atrasado?
Os
outros caem na gargalhada. Pestana ri mais alto enquanto fala:
-
Que nada, hoje você vai ter que jogar xadrez com um de nós!
-
Por quê? O Bulhões não vem?
-
Pois é, ele acabou de passar por aqui. Queria saber se podia deixar
a partida de hoje para a semana que vem. Veio tanta gente de fora
para a comemoração que acabou levando um filho para o aeroporto e o
resto da tropa diretamente a Corrêias para o fim de semana. Como é
que você foi faltar à festa em homenagem ao Bulhões? Justo ele que
te considera tanto...”
A
brisa do mar chega a Pontes, assim, meio oleosa, já perfumada de
bronzeadores, de loções; tudo cheiro de mulher. Tranquilo,
distribui calmamente as peças no tabuleiro, as palmas parecem
acariciar o tampo de pedra, retirando a poeira ainda meio pegajosa
da umidade noturna.
Pestana
insiste:
-
Ah, o Bulhões falou mais: que vá você se preparando porque, na
semana que vem, ele vai ganhar de você!
Torre
e rainha apertados no punho da mão esquerda, a cabeça do rei entre
dois dedos da direita, Pontes levanta a cabeça.
-
Ele falou?
-
Falou sim, e estava muito alegre. Bacana um cara desses, rico,
famoso, brincar com a gente de vez em quando... E que família, viu?
Três filhos espalhados pelo mundo, noras, genro, sete netos, já
pensou?
O
olhar de Pontes perde-se um momento entre os raios que penetram a
amendoeira e os que vibram das vidraças ensolaradas do prédio ao
lado.
-
O Bulhões que venha ganhar de mim, que venha...
Pestana
hesita, franze a testa e solta finalmente a pergunta:
-
Oh Pontes, como é que tu nunca se casou...
A BRIGA
Marta
reduz a marcha ao entrar no terreno de sua casa de praia. “Preciso
mandar cimentar o caminho até a aroeira: você tinha razão, meu
amor, o barulho das rodas sobre a areia arrepia. Quem sabe o pessoal
da pousada da Cinthia pode indicar alguém que faça esse tipo de
serviço por aqui.”
Estranho,
toda vez que chega, descobre-se a conversar com André, como fosse
ele a estar na direção, como se ele ainda estivesse vivo.
Estaciona
o carro debaixo da árvore e, já na cozinha, larga as compras na
mesa e começa a abrir, uma por uma, as portas-janela que, de todos
os cômodos, levam à varanda que abraça a casa inteira. Olha o
relógio. Já são quase dez e meia da noite: a essa hora Cinthia e
Marcos devem ter deixado os últimos afazeres da pousada na mão dos
garçons e estariam indo para o bangalô. Conhece seus horários.
Troca os mocassins por havaianas e, assim como está, bermuda e
camiseta, resolve ir. Tira da sacola de compras um pote de geleia e
sai pela praia: não tem mais do que cinquenta, sessenta metros até
a casa deles. Lua cheia.
Imagina
a alegria de Cinthia quando receberá a geleia de mirtilos que
aprendera a amar de paixão quando, após formar-se em administração
de empresa - por sinal junto com André - havia feito um estágio em
Hotelaria na Suíça. Na volta ao Brasil, construiu uma pousada nos
terrenos que o pai, rico e influente político da região, lhe dera
de presente de casamento.
Marta
está quase chegando e, como faz sempre ao aproximar-se, prepara-se
para anunciar-se gritando seu nome quando, repentinamente, estanca;
quase à porta do bangalô, ouve berros: as vozes dos dois em
violenta discussão. Não entende as palavras mas a sobreposição
das vozes, a falta de intervalos entre elas, tudo pinta uma briga
feia.
Fica
imóvel um instante e depois, quase na ponta dos pés, recua e
começa, devagar, o caminho de volta. Pote na mão, preocupada com a
situação, tenta mais uma vez decifrar aquele casal aparentemente
tão harmonioso.
Os
dois juntos, amor e sexo puro. Ela, esbelta, rosto lindíssimo, corre
de manhã cedo na praia uma hora todos os dias, faça sol ou chuva.
Ele também, alto e sarado, circula entres os hóspedes da pousada
com seu sorriso acolhedor. Sempre alvo dos olhares gulosos de muitas
mulheres tanto na piscina como nos passeios de barco, entre os
coquetéis coloridos do happy-hour, entre
as mesas de jantar, ao luar, com
tochas e velas. Cinthia o conhecera num Hotel de Brasília onde era
funcionário da recepção à noite e onde entretinha os hóspedes
para os esportes durante o dia. Tinha sido, como ela sempre dizia:
“amor a primeira vista” e já estavam casados há pelo menos seis
anos.
Marta
sabe das limitações intelectuais de Marcos e do esnobismo que às
vezes emerge, mal disfarçado, das reações de Cinthia. Seria isso?
Estaria se agravando essa diferença? Ou seria simplesmente o ciúme
doentio dela que continua não se dando conta que ele a ama mais, e
melhor, do que ela a ele...
Já
em casa resolve não pensar mais no assunto. Eles sabem de sua vinda
sempre às sextas- feiras à noite: seguramente amanhã se veriam.
Vai direto ao banheiro, uma chuveirada rápida e um roupãozinho de
fustão, pronta para deitar e dormir daí a pouco. Vê-se no espelho,
pequena e magra de seios grandes, cabelo afro feito no salão da
Vanda, pele bronzeada com os olhos azuis da mãe holandesa. “Você
tem um pé na cozinha, Marta, juro por Deus” dizia sempre André
com carinho e fúria ao possuí-la.
André.
Depois do acidente de carro que o havia matado, esta casa é hoje um
refúgio para Marta: vem nos fins de semana, depois do consultório
de psicologia onde atende em Fortaleza, mas é aqui que descansa e
aproveita as manhãs para trabalhar na tese de doutorado. Aqui está
seu computador para os rascunhos da pesquisa e sempre traz seu
note-book onde transfere os textos definitivos.
Fecha
de novo todas as portas-janela da casa, vai à cozinha, toma um copo
de leite, enfia uma maçã no bolso do roupão e vai ao quarto. Liga
o ventilador de teto e deita na cama sem abri-la. A colcha de algodão
listrado é fresca e lisa. Junta os dois travesseiros e pega o livro
que deixou desde a semana anterior na mesinha de cabeceira. Quer
reler alguns trechos da biografia que Pierre Daix escreveu sobre
Picasso, pois percebera que nela o autor parecia atribuir ao pintor
atitudes peculiares no seu trato com as mulheres - e com os pinceis –
sugerindo a presença de uma síndrome de bipolaridade. Se achasse
referências plausíveis dessa faceta de Picasso, poderiam ser úteis
à sua tese.
Mordendo
de vez em quando a maçã, concentra-se na leitura com tal
intensidade que mal ouve a voz que a chama, bem atrás da
porta-veneziana do seu quarto. Um bater leve na madeira e desta vez
reconhece a voz do Marcos.
“Marta, por favor...”
Pula
da cama deixando o livro aberto, páginas contra a colcha, e vai
abrir.
Marcos,
ombro apoiado a um pilar da varanda, mochila pendurada na mão, rosto
devastado de pranto.
“Marta,
por favor...”
Ela
escancara a porta, pega a mochila jogando-a num canto e conduz Marcos
pelo braço até a cama.
“Sente-se,
pelo amor de Deus, Marcos, o que foi...”
“Agora
acabou mesmo, Marta, vou embora de vez”. Um soluço. “Se você
puder emprestar o seu carro, vou para Fortaleza e depois, de avião a
Brasília.” Olhos baixos, lágrimas escorrendo. ”Recomeçar tudo.
Do zero”.
Marta
senta-se ao lado dele, pega sua mão nas suas.
“Calma Marcos, vamos falar, vamos raciocinar, quem sabe...”
De
repente o rosto de Marcos enterrado no seu ombro. Soluços
convulsivos, um tremor irrefreável, um rosnar de palavras
desconexas, ininteligíveis. Marta sente seu pescoço molhado das
lágrimas dele. Num gesto impulsivo, pousa as duas mãos na nuca do
homem, dedilhando entre seus cabelos, num ritmo tranquilo de afago.
Um
silêncio pesado desce naquele quarto que junto à brisa, improvisa o cheiro da maresia e Marta sente que a qualquer momento ele
estará vomitando um relato desenfreado de uma briga feia. O que terá acontecido entre ele e Cinthia? seguramente o ciúme de sempre. Os braços dele continuam
apertando os ombros de Marta, como um náufrago a um destroço
qualquer, com força, como buscando não só apoio, mas salvação.
Ela sente-se ainda mais aprisionada, envolvida, subjugada: as mãos
do homem vêm empurrando-a para o meio da cama, sente seu peso em
cima do corpo, o cinto do roupão arrancado.
“Marcos,
que é isso, Marcos...”
O
corpo dele continua a tremer, rosto tenso, olhos fechados. Ela sente
que o pulsar da penetração está criando nela uma braçada de
suspiros tão
ofegantes quanto a sua própria respiração. As costas do livro na
cama machucam-lhe a coluna, o resto da maçã comprime-lhe um seio,
mas ela está entrando num ritmo incompreensível, indesejável,
repulsivo e ao mesmo tempo algo está acontecendo nela: aquele calor,
aquele suor, tudo aquilo a está levando para um orgasmo impensável
mas vivo.
Real.
Ao
abrir os olhos, lá está aquele rosto sofrido, numa concentração
brutal e infinita em busca do gozo final. Ao sair de dentro dela, ele
vira de costas, olhos ainda fechados, as feições tensas. Um quase
suspiro.
“Desculpe, Marta, desculpe..”
Marta
encolhe-se para o lado oposto. Afasta-se do suor e do esperma que
umedece a colcha, fica por uns minutos olhando aquele corpo nu. Como
deixei que isso acontecesse...
Aquele
orgasmo tão inesperado, surpreendente, aquela sensação de que
agora, afinal, ela ainda estava viva, havia voltado a ser viva, a
deixa perturbada. Alguma vez teria olhado para ele com cobiça?
Alguma vez teria notado olhares de Marcos sobre seu corpo? Marta
sabe: o orgasmo havia sido dela, sim, mas o dele dedicado, procurado
e jorrado para Cinthia... Meu Deus, o marido da melhor amiga do
André desde o colegial; minha melhor amiga...Um corpo esculpido
adormeceu na minha cama, e não é o André.
Olha
a porta-janela ainda escancarada. A luz forte da lua pinta um
requadro no chão.
Arrancando
de vez o roupão, cata os restos da maçã e vai ao banheiro
lavar-se. Enrola uma toalha no corpo e vai sentar-se no almofadão no
outro canto do quarto, lá perto da mochila do Marcos. Cotovelos
apoiados nos joelhos, olha a tela da jangada na parede: uma pintura
comprada numa comuníssima feira de artesanato. A explosão de
pinceladas vibrantes de um primitivo talentoso, levava cor e surpresa
às paredes caiadas. “Cafoníssima” havia dito André ao vê-la
mas, depois de colocada, assim, sem moldura, admitira que trazia ao
ambiente um quê de espirituoso e acolhedor. Afinal a deles era só
uma casa rústica, que acabou sendo chamada Jangada.
Na
penumbra, descalça no piso áspero, sente uma sensação de saudade.
Ela e André, pés nus e espírito alegre, haviam arranhado com um
restelo o cimento ainda úmido, jorrando naqueles riscos, e em suas
próprias pegadas, pequenos rios de tinta diluída nos tons
irregulares de verdes e azuis, como para trazer o mar para dentro de
casa.
De
novo André em seus pensamentos. Após quase dois anos do acidente,
Marta ainda o vê em todo canto da casa, cada pequeno detalhe o traz
de volta.
...Não
posso continuar assim, depois de todo esse tempo. Nada pode trazê-lo
de volta. Tenho que mudar minha vida. Aqui, justamente aqui, na
Jangada. Ela deve crescer comigo, recomeçar comigo. Tenho que voltar
a viver meus desejos, reabrir um lugar ao meu redor, dividir outra
vez o meu espaço com alguém... Quem sabe um dia eu possa convidar o
Cardoso, aquele cirurgião plástico que refez o nariz da Madalena,
feio mas charmoso, recém divorciado, com consultório no mesmo
prédio que o meu. Tem sentido de humor, nos cruzamos há anos no
elevador, trocamos ideias e projetos sempre sem tempo para ir além;
e de vez em quando pergunta quase sarcástico, como vai sua
jangada... Quem sabe?
Há
quanto tempo estava aí olhando aquele horizonte que mar e céu
disputam, lá longe, além da varanda. A luminosidade da manhã já
está alterando o pedaço do chão onde antes havia o luar.
Aproxima-se da cama.
Chama.
Ele pula sentado, agarra uma ponta da colcha para cobrir-se.
“Marta,
desculpe Marta, eu...”
“Não
foi nada Marcos. Nem você nem eu quisemos nada disso.” Uma pausa
sem conforto.“Nunca mais vamos falar nisso.”
Um
silêncio constrangido, Marcos encobrindo o rosto com as mãos.
“Acho
que está na hora de você ir... as chaves do carro estão no
porta-luvas junto aos documentos”.
Marta
não escuta sua própria voz dando instruções de como e onde deixar
o carro em Fortaleza. Só sabe que ela está tentando livrar-se da
situação o quanto antes. Precisa estar sozinha, precisa xingar-se,
questionar-se, perdoar-se. Absolver-se.
Só
percebe a inutilidade de seu último conselho:
“Quem
sabe um dia vocês possam se reencontrar, recomeçar...”
É
nesse momento que a silhueta de Cinthia se desenha no chão do
quarto.
Um
silêncio de surpresas. Um choque. O arranhar de um hálito aspirado
para dentro da garganta. A imobilidade geral, agredida pelo timbre
sibilante, quase um chicote:
“Então
é isto! Então é isto...”
Marcos
cata suas roupas pelo chão, vestindo-se num relâmpago. Marta
caminha até a amiga.
“Não
me toque! Você era minha amiga, eu vendi a vocês este terreno para
ter vocês junto de nós para sempre...” Agora é quase um soluço.
Marta
vira as costas caminhando para a sala. Cinthia a segue, volta a
levantar o tom, tremor de raiva, perto do berro.
Marta
ouve, com alívio, o barulho das rodas sobre a areia.
Agora
os gritos das duas: respingos de cobranças, respostas contidas,
insultos arremessados, recriminações lançadas em idas e voltas,
sem pontuação, sem pausas.
Marta
enfia os dedos nos seus cabelos, apertando as palmas nos ouvidos,
como para apagar vozes, palavras, significados. Todos seus sentidos
mergulham fundo nas entranhas recém despertadas, suas dúvidas
clamando por tranquilidade, suas inquietações por afago, por
silêncios. Quando terminará esse inferno...
“Agora
chega, Cinthia: você não quer ouvir...”
Avança
na direção da amiga para que ela seja obrigada a recuar até a
porta da sala, abre-a e desta vez é ela a levantar a voz.
“Saia”.
Empurra
Cinthia para além das venezianas da varanda e as tranca. Devagar
volta até o quarto, arranca a toalha do corpo.
O
arzinho da quase manhã encrespa sua pele nua numa sensação nova. E
boa. Fecha a porta-janela e vai ao banheiro.
Senta
no chão do chuveiro e abre a água.
O
ESPELHO
Na escuridão
do quarto, lençóis embaralhados sobre o colchão, desordem por toda
parte. Sentado na beira da cama, cotovelos nos joelhos, mãos na
testa, observa seus pés no chão. Não sabe há quantas horas está
assim, olhando o nada. Um suor frio o sacode; ele sabe que se tirasse
as mãos do rosto, elas estariam tremendo, como ontem, quando havia
deixado cair no chão da cozinha seu último copo de cristal: água
e estilhaços em volta de seus pés nus. Conseguira sair da
armadilha sem se cortar, ir calçar um chinelo e voltar para uma
xícara de café, sem requentá-lo, o mesmo que havia tomado no dia
anterior, guardado num bule desde … não lembrava mais quando.
Agora um
toque do telefone o empurra até ele, mas não atende. Ele sabe quem
é. Ontem Júlia havia tocado a campainha, batido na porta com as
duas mãos, implorado. “Sou eu, abra por favor, quero falar com
você!” Ele havia ligado o rádio para que ela soubesse que ele
estava sim, mas não queria vê-la. E agora, seguramente era ela, de
novo, insistindo em querer atirar-lhe um salva-vida. Logo ela, que
ainda o amava, apesar de tudo.
Ele sabe que
pode salvar-se sozinho. É só decidir. Um gesto raivoso e as
cortinas correm revelando o sol já alto. Na luminosidade improvisa,
as cores das telas e das gravuras inundam o quarto como a enquadrar
com mais vigor o desleixo ao redor; todas as cores agora jazem no
chão, planas, descoloridas, amorfas.
A
súbita mudez do telefone o agride como uma bofetada.
Não precisa
da ajuda de ninguém, é a ele que cabe a decisão de uma atitude
definitiva. Os três dias trancado naquela casa que fora seu prazer
e orgulho, deveriam dar-lhe a resposta do seu futuro. Qual futuro?
O espelho do
banheiro revela-lhe um rosto que não reconhece: macilento, barba por
fazer, olhos inchados, cabelos empastados de suor. É assim que se
transforma a imagem de alguém que está se destruindo? Ou estas são
as marcas do esforço para tomar uma decisão? Ou para reconstruir
seu próprio respeito, ou para combater - e vencer - o fácil
caminho do abandono...
Num frenesi
que desconhece há tempos, atira-se aos jeans largados na poltrona,
às muitas camisas suadas penduradas no encosto das cadeiras, na
procura de um pedacinho de papel amarelo onde anotara um endereço.
Nada.
Vai até a
cozinha; mãos trêmulas, uma mordida na maçã em cima da mesa, um
gole de leite direto do tetrapac
e lá está de volta a ânsia de vômito que o ataca sempre que se
obriga a comer alguma coisa. De volta ao banheiro, lá está sua
imagem, assustadoramente pior do que há poucos minutos. Num impulso:
o chuveiro. A água fria sacode-lhe a musculatura, o sabonete escorre
rápido pelo corpo, pelos cabelos; gilete e barba ali mesmo. Rapidez
é preciso, antes que sua decisão se esconda atrás dos
arrependimentos, dos perdões que não pediu, das aceitações que
rejeitou.
Onde teria
largado aquele papel amarelo... Mal enrolado na toalha, procura a
carteira, olha para suas roupas. Quanta sujeira pode-se acumular para
apagar a qualidade das coisas. Jeans, camisas, aqueles mocassim...
É tudo meu? Desse jeito?
Veste o
melhor que encontra, entre as roupas espalhadas por aí. Agora quase
apresentável, senta na poltrona para calçar o sapato e lá está o
bilhete amarelo, bem debaixo de uma das garrafas vazias largadas no
chão ao seu lado. Alisa-o com cuidado: não é longe, pode ir a pé.
De novo o
suor frio, as mãos trêmulas.
Ao abrir o
armário para pegar um cinto, vê-se novamente no espelho: sim, agora
pode-se acreditar nas intenções de um homem com a aparência
decente como a que, em poucos minutos, conseguira com tão pouco.
Antes de sair, ainda passa pela cozinha, mais um gole, mais uma
mordida: outra vez a ânsia de vômito leva-o à beira da pia. Mais
uma mordida, mais um gole, e sente-se mais seguro.
O suor parece
voltar mas o tremor das mãos agarra com segurança o endereço mal
escrito no papel amarelo. Vai caminhando pela rua, com rapidez,
quase com fúria. No número que procura, uma porta modesta o leva a
um salão grande mal iluminado. Umas dez pessoas sentadas em
semicírculo em volta de uma mesa, outra dezena de cadeiras vazias
espalhadas pelos cantos. Tem alguém falando timidamente, sem olhar a
plateia, cabisbaixo.
Ele puxa uma
cadeira qualquer, senta e aguarda sua vez. Duas, três pessoas se
revezam. Depois, o silêncio.
É agora.
Ao levantar,
passa as palmas das mãos na calça para secar-lhes o suor, ajeita o
colarinho da camisa e lá está ele, em pé, atrás da mesa, palmas
esparramadas sobre o tampo.
Um ligeiro
pigarro e sua voz sai clara, surpreendentemente tranquila.
“Meu nome é
Augusto. Sou alcoólatra. Não bebo há setenta e duas horas”.
IDENTIDADE
Ao entrar na galeria, Fábio não se espantou.
Só Max para fazer algo assim, surpreendente, inovador. Além das
obras inusitadas, ali estavam a atrevida cenografia da exposição,
tipica de sua criatividade exacerbada, e o seu ego em perpétua
ascensão.
Deparou-se com um labirinto de paredes baixas –
pouco mais de um metro de altura –que obrigava todos a seguirem um
percurso pré-estabelecido. Do pé direito altíssimo, do teto todo
espelhado, pendiam, por cabos de aço, diversos bonecos deitados de
bruços, como se estivessem boiando numa piscina, olhando para o
fundo, e acompanhando as cabeças dos visitantes. Todos seguiam
devagar o roteiro, olhando para cima, abismados com a novidade.
Fábio identificou, entre os bonecos, um jovem
de fraque rasgado; uma mulher de biquíni entornando o bronzeador
sobre as pessoas numa gota comprida, congelada em resina, que
terminava a poucos centímetros do chão; um meninote segurando tão
precariamente uma bola de futebol que ela poderia despencar a
qualquer momento sobre a cabeça dos convidados.
Outro boneco, de forma especial, chamou a
atenção de Fábio: parecia um homem triste, rosto deformado, uma
corcunda bem refletida no espelho do teto. Quase inconscientemente
Fábio ficou observando se, entre as pessoas do labirinto, ele
pudesse identificar alguma moça que fosse uma Esmeralda em
potencial: não havia.
Foi aí que ele, de repente, também sentiu-se
observado: se o corcunda poderia estar lá à procura da Esmeralda,
será que algum daqueles bonecos teria algo em comum comigo? E por
quê? O que um boneco poderia ver em mim, lá de cima? Um pedaço de
nariz saltando por entre as lentes dos óculos de tartaruga; dois
curtos caminhos de linho marrom saindo de cada lado de uma calvície
incipiente; ou talvez a ponta de um mocassim
surrado? Que tipo de identidade o boneco lhe atribuiria com aqueles
poucos indícios?
Sentiu uma necessidade urgente de sair do
labirinto. Pediu licença, abriu caminho e finalmente viu-se
empurrado ao ar livre: no fundo da galeria - casa antiga soberbamente
reformada por arquiteto de renome - um grande jardim agora coberto
por uma tenda branca onde circulavam os garçons com bandejas
concorridas: mini-canapés, petit-fours,
whisky, prosecos,
sucos exóticos, águas coloridas.
E lá estava ele, Max Fidelis, o festejado
artista, no meio da badalação de sempre. Viu Fábio, levantou
enfaticamente os dois braços:
“Aqui, Fábio, aqui! Gente, este é o meu
amigo Fábio Brotas!”
Apertou-o ao peito, segurou sua nuca com as
duas mãos, olhou seu rosto tão de perto, quase nariz a nariz, e
apertou-o novamente em seus braços:
“Fábio Brotas, meu melhor amigo”.
Sorrisos, apertos de mãos, conversas elogiosas
à última produção do artista.
Fábio olhava para Max. Se conheciam desde
crianças: escola juntos, serviço militar também. Depois, Fábio
para arquitetura, Max para belas artes. Encontravam-se agora duas
vezes por ano: maio e novembro, no aniversário de cada um. E nas
vernissages.
Esperou
um pouco, depois deu um jeito de sair sem ser notado. Resolveu voltar
para casa como havia chegado: a pé. Seis ou sete quadras não matam
ninguém. O ar fresco da noite, mil pensamentos na cabeça.
Uma
pergunta estranha passeava dentro dele, como se somente agora tivesse
notado que algo estava seriamente errado na frase tão comum que todo
mundo usa. “Este é o meu amigo fulano!! Meu melhor amigo!!”.
Como
se atribui a alguém um sentimento que só esse alguém sabe se é
verdadeiro ou não? Assumir que fomos promovidos a uma categoria nem
sempre merecida, privilegiados por uma preferência arbitrária,
nossa sinceridade colocada em xeque, nossa consciência arranhada por
realidades frequentemente escondidas, escusas, camufladas... Eu sou o
melhor amigo daquele homem? Posso ter compartilhado muitos momentos
importantes, mas só isto me faz seu amigo? Seu melhor amigo...?
Seus
passos ecoam numa cadência ruidosa na avenida vazia.
Ao
chegar em casa, uma ducha rápida, um roupão atoalhado e assim
descalço, atravessou a sala, abriu a porta-janela para o terraço e
sentou-se com uma generosa dose de whisky
para relaxar. Seu olhar fixo no
escuro. Um vento empurrou uma das portas de vidro: instintivamente a
brecou com o pé para ela não bater.
De
repente, viu-se refletido nela.
Eu
sou mesmo amigo de Max? Sou eu o seu melhor amigo? Será que ele
nunca soube que cobicei sua primeira mulher e só desisti dela no
último momento quando estava quase para conseguí-la? Nunca percebeu
a aversão que tenho pela fatuidade da fama de que ele se nutre,
usando a multi-milionária conta bancária de sua família para
produzir obras invendáveis que sempre viram presentes para amigos e
museus?
Eu
sou o melhor amigo dele?
Sei
tudo dele: nos nossos raros encontros eu nunca preciso perguntar
nada, ele não para de falar de si mesmo. Mas o que ele sabe de mim?
Nem mesmo nos encontros de aniversário ele tenta saber como vivo, o
que eu penso, quem são meus amigos, minhas mulheres, meu sucesso ou
meu fracasso profissional. E ele, então, é o meu melhor amigo?
Quando foi que deixamos de ser amigos? Como é que ele me vê agora?
Nossa amizade é somente uma grande ausência, um distanciamento
progressivo, um contínuo adeus sem palavras.
Os
bonecos daquele teto espelhado pareceram ter mais interesse em mim do
que o próprio Max.
Agora
aí está Fábio, mastigando o resto de gelo do copo vazio, rosto
ainda refletido na porta-janela do seu terraço, imagem quase
engolida pela escuridão da noite. Em voz alta, apreensivo, como num
soluço: “Quem é você?”.
Uma
mariposa esbarra em paredes e vidros, à procura de luz. Prontamente,
num instinto selvagem, Fábio a recolhe com seu copo e o inverte no
braço da poltrona, aprisionando o inseto. No movimento brusco o
cabelo ainda molhado se descompõe, soltando gotas que escorrem pela
face.
Como
lágrimas.
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