sábado, 7 de dezembro de 2013

A BRIGA

Marta reduz a marcha ao entrar no terreno de sua casa de praia. “Preciso mandar cimentar o caminho até a aroeira: você tinha razão, meu amor, o barulho das rodas sobre a areia arrepia. Quem sabe o pessoal da pousada da Cinthia pode indicar alguém que faça esse tipo de serviço por aqui.”
Estranho, toda vez que chega, descobre-se a conversar com André, como fosse ele a estar na direção, como se ele ainda estivesse vivo.
Estaciona o carro debaixo da árvore e, já na cozinha, larga as compras na mesa e começa a abrir, uma por uma, as portas-janela que, de todos os cômodos, levam à varanda que abraça a casa inteira. Olha o relógio. Já são quase dez e meia da noite: a essa hora Cinthia e Marcos devem ter deixado os últimos afazeres da pousada na mão dos garçons e estariam indo para o bangalô. Conhece seus horários. Troca os mocassins por havaianas e, assim como está, bermuda e camiseta, resolve ir. Tira da sacola de compras um pote de geleia e sai pela praia: não tem mais do que cinquenta, sessenta metros até a casa deles. Lua cheia.
Imagina a alegria de Cinthia quando receberá a geleia de mirtilos que aprendera a amar de paixão quando, após formar-se em administração de empresa - por sinal junto com André - havia feito um estágio em Hotelaria na Suíça. Na volta ao Brasil, construiu uma pousada nos terrenos que o pai, rico e influente político da região, lhe dera de presente de casamento.
Marta está quase chegando e, como faz sempre ao aproximar-se, prepara-se para anunciar-se gritando seu nome quando, repentinamente, estanca; quase à porta do bangalô, ouve berros: as vozes dos dois em violenta discussão. Não entende as palavras mas a sobreposição das vozes, a falta de intervalos entre elas, tudo pinta uma briga feia.
Fica imóvel um instante e depois, quase na ponta dos pés, recua e começa, devagar, o caminho de volta. Pote na mão, preocupada com a situação, tenta mais uma vez decifrar aquele casal aparentemente tão harmonioso.
Os dois juntos, amor e sexo puro. Ela, esbelta, rosto lindíssimo, corre de manhã cedo na praia uma hora todos os dias, faça sol ou chuva. Ele também, alto e sarado, circula entres os hóspedes da pousada com seu sorriso acolhedor. Sempre alvo dos olhares gulosos de muitas mulheres tanto na piscina como nos passeios de barco, entre os coquetéis coloridos do happy-hour, entre as mesas de jantar, ao luar, com tochas e velas. Cinthia o conhecera num Hotel de Brasília onde era funcionário da recepção à noite e onde entretinha os hóspedes para os esportes durante o dia. Tinha sido, como ela sempre dizia: “amor a primeira vista” e já estavam casados há pelo menos seis anos.
Marta sabe das limitações intelectuais de Marcos e do esnobismo que às vezes emerge, mal disfarçado, das reações de Cinthia. Seria isso? Estaria se agravando essa diferença? Ou seria simplesmente o ciúme doentio dela que continua não se dando conta que ele a ama mais, e melhor, do que ela a ele...
Já em casa resolve não pensar mais no assunto. Eles sabem de sua vinda sempre às sextas- feiras à noite: seguramente amanhã se veriam. Vai direto ao banheiro, uma chuveirada rápida e um roupãozinho de fustão, pronta para deitar e dormir daí a pouco. Vê-se no espelho, pequena e magra de seios grandes, cabelo afro feito no salão da Vanda, pele bronzeada com os olhos azuis da mãe holandesa. “Você tem um pé na cozinha, Marta, juro por Deus” dizia sempre André com carinho e fúria ao possuí-la.
André. Depois do acidente de carro que o havia matado, esta casa é hoje um refúgio para Marta: vem nos fins de semana, depois do consultório de psicologia onde atende em Fortaleza, mas é aqui que descansa e aproveita as manhãs para trabalhar na tese de doutorado. Aqui está seu computador para os rascunhos da pesquisa e sempre traz seu note-book onde transfere os textos definitivos.
Fecha de novo todas as portas-janela da casa, vai à cozinha, toma um copo de leite, enfia uma maçã no bolso do roupão e vai ao quarto. Liga o ventilador de teto e deita na cama sem abri-la. A colcha de algodão listrado é fresca e lisa. Junta os dois travesseiros e pega o livro que deixou desde a semana anterior na mesinha de cabeceira. Quer reler alguns trechos da biografia que Pierre Daix escreveu sobre Picasso, pois percebera que nela o autor parecia atribuir ao pintor atitudes peculiares no seu trato com as mulheres - e com os pinceis – sugerindo a presença de uma síndrome de bipolaridade. Se achasse referências plausíveis dessa faceta de Picasso, poderiam ser úteis à sua tese.
Mordendo de vez em quando a maçã, concentra-se na leitura com tal intensidade que mal ouve a voz que a chama, bem atrás da porta-veneziana do seu quarto. Um bater leve na madeira e desta vez reconhece a voz do Marcos.
“Marta, por favor...”
Pula da cama deixando o livro aberto, páginas contra a colcha, e vai abrir.
Marcos, ombro apoiado a um pilar da varanda, mochila pendurada na mão, rosto devastado de pranto.
“Marta, por favor...”
Ela escancara a porta, pega a mochila jogando-a num canto e conduz Marcos pelo braço até a cama.
“Sente-se, pelo amor de Deus, Marcos, o que foi...”
“Agora acabou mesmo, Marta, vou embora de vez”. Um soluço. “Se você puder emprestar o seu carro, vou para Fortaleza e depois, de avião a Brasília.” Olhos baixos, lágrimas escorrendo. ”Recomeçar tudo. Do zero”.
Marta senta-se ao lado dele, pega sua mão nas suas.
“Calma Marcos, vamos falar, vamos raciocinar, quem sabe...”
De repente o rosto de Marcos enterrado no seu ombro. Soluços convulsivos, um tremor irrefreável, um rosnar de palavras desconexas, ininteligíveis. Marta sente seu pescoço molhado das lágrimas dele. Num gesto impulsivo, pousa as duas mãos na nuca do homem, dedilhando entre seus cabelos, num ritmo tranquilo de afago.
Um silêncio pesado desce naquele quarto que junto à brisa, improvisa  o cheiro da maresia e Marta sente que a qualquer momento ele estará vomitando um relato desenfreado de uma briga feia. O que terá acontecido entre ele e Cinthia? seguramente o ciúme de sempre. Os braços dele continuam apertando os ombros de Marta, como um náufrago a um destroço qualquer, com força, como buscando não só apoio, mas salvação. Ela sente-se ainda mais aprisionada, envolvida, subjugada: as mãos do homem vêm empurrando-a para o meio da cama, sente seu peso em cima do corpo, o cinto do roupão arrancado.
“Marcos, que é isso, Marcos...”
O corpo dele continua a tremer, rosto tenso, olhos fechados. Ela sente que o pulsar da penetração está criando nela uma braçada de suspiros tão ofegantes quanto a sua própria respiração. As costas do livro na cama machucam-lhe a coluna, o resto da maçã comprime-lhe um seio, mas ela está entrando num ritmo incompreensível, indesejável, repulsivo e ao mesmo tempo algo está acontecendo nela: aquele calor, aquele suor, tudo aquilo a está levando para um orgasmo impensável mas vivo.
Real.
Ao abrir os olhos, lá está aquele rosto sofrido, numa concentração brutal e infinita em busca do gozo final. Ao sair de dentro dela, ele vira de costas, olhos ainda fechados, as feições tensas. Um quase suspiro.
“Desculpe, Marta, desculpe..”
Marta encolhe-se para o lado oposto. Afasta-se do suor e do esperma que umedece a colcha, fica por uns minutos olhando aquele corpo nu. Como deixei que isso acontecesse...
Aquele orgasmo tão inesperado, surpreendente, aquela sensação de que agora, afinal, ela ainda estava viva, havia voltado a ser viva, a deixa perturbada. Alguma vez teria olhado para ele com cobiça? Alguma vez teria notado olhares de Marcos sobre seu corpo? Marta sabe: o orgasmo havia sido dela, sim, mas o dele dedicado, procurado e jorrado para Cinthia... Meu Deus, o marido da melhor amiga do André desde o colegial; minha melhor amiga...Um corpo esculpido adormeceu na minha cama, e não é o André.
Olha a porta-janela ainda escancarada. A luz forte da lua pinta um requadro no chão.
Arrancando de vez o roupão, cata os restos da maçã e vai ao banheiro lavar-se. Enrola uma toalha no corpo e vai sentar-se no almofadão no outro canto do quarto, lá perto da mochila do Marcos. Cotovelos apoiados nos joelhos, olha a tela da jangada na parede: uma pintura comprada numa comuníssima feira de artesanato. A explosão de pinceladas vibrantes de um primitivo talentoso, levava cor e surpresa às paredes caiadas. “Cafoníssima” havia dito André ao vê-la mas, depois de colocada, assim, sem moldura, admitira que trazia ao ambiente um quê de espirituoso e acolhedor. Afinal a deles era só uma casa rústica, que acabou sendo chamada Jangada.
Na penumbra, descalça no piso áspero, sente uma sensação de saudade. Ela e André, pés nus e espírito alegre, haviam arranhado com um restelo o cimento ainda úmido, jorrando naqueles riscos, e em suas próprias pegadas, pequenos rios de tinta diluída nos tons irregulares de verdes e azuis, como para trazer o mar para dentro de casa.
De novo André em seus pensamentos. Após quase dois anos do acidente, Marta ainda o vê em todo canto da casa, cada pequeno detalhe o traz de volta.
...Não posso continuar assim, depois de todo esse tempo. Nada pode trazê-lo de volta. Tenho que mudar minha vida. Aqui, justamente aqui, na Jangada. Ela deve crescer comigo, recomeçar comigo. Tenho que voltar a viver meus desejos, reabrir um lugar ao meu redor, dividir outra vez o meu espaço com alguém... Quem sabe um dia eu possa convidar o Cardoso, aquele cirurgião plástico que refez o nariz da Madalena, feio mas charmoso, recém divorciado, com consultório no mesmo prédio que o meu. Tem sentido de humor, nos cruzamos há anos no elevador, trocamos ideias e projetos sempre sem tempo para ir além; e de vez em quando pergunta quase sarcástico, como vai sua jangada... Quem sabe?
Há quanto tempo estava aí olhando aquele horizonte que mar e céu disputam, lá longe, além da varanda. A luminosidade da manhã já está alterando o pedaço do chão onde antes havia o luar. Aproxima-se da cama.
Chama. Ele pula sentado, agarra uma ponta da colcha para cobrir-se.
“Marta, desculpe Marta, eu...”
“Não foi nada Marcos. Nem você nem eu quisemos nada disso.” Uma pausa sem conforto.“Nunca mais vamos falar nisso.”
Um silêncio constrangido, Marcos encobrindo o rosto com as mãos.
“Acho que está na hora de você ir... as chaves do carro estão no porta-luvas junto aos documentos”.
Marta não escuta sua própria voz dando instruções de como e onde deixar o carro em Fortaleza. Só sabe que ela está tentando livrar-se da situação o quanto antes. Precisa estar sozinha, precisa xingar-se, questionar-se, perdoar-se. Absolver-se.
Só percebe a inutilidade de seu último conselho:
“Quem sabe um dia vocês possam se reencontrar, recomeçar...”
É nesse momento que a silhueta de Cinthia se desenha no chão do quarto.
Um silêncio de surpresas. Um choque. O arranhar de um hálito aspirado para dentro da garganta. A imobilidade geral, agredida pelo timbre sibilante, quase um chicote:
“Então é isto! Então é isto...”
Marcos cata suas roupas pelo chão, vestindo-se num relâmpago. Marta caminha até a amiga.
“Não me toque! Você era minha amiga, eu vendi a vocês este terreno para ter vocês junto de nós para sempre...” Agora é quase um soluço.
Marta vira as costas caminhando para a sala. Cinthia a segue, volta a levantar o tom, tremor de raiva, perto do berro.
Marta ouve, com alívio, o barulho das rodas sobre a areia.
Agora os gritos das duas: respingos de cobranças, respostas contidas, insultos arremessados, recriminações lançadas em idas e voltas, sem pontuação, sem pausas.
Marta enfia os dedos nos seus cabelos, apertando as palmas nos ouvidos, como para apagar vozes, palavras, significados. Todos seus sentidos mergulham fundo nas entranhas recém despertadas, suas dúvidas clamando por tranquilidade, suas inquietações por afago, por silêncios. Quando terminará esse inferno...
“Agora chega, Cinthia: você não quer ouvir...”
Avança na direção da amiga para que ela seja obrigada a recuar até a porta da sala, abre-a e desta vez é ela a levantar a voz.
“Saia”.
Empurra Cinthia para além das venezianas da varanda e as tranca. Devagar volta até o quarto, arranca a toalha do corpo.
O arzinho da quase manhã encrespa sua pele nua numa sensação nova. E boa. Fecha a porta-janela e vai ao banheiro.
Senta no chão do chuveiro e abre a água.


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