Marta
reduz a marcha ao entrar no terreno de sua casa de praia. “Preciso
mandar cimentar o caminho até a aroeira: você tinha razão, meu
amor, o barulho das rodas sobre a areia arrepia. Quem sabe o pessoal
da pousada da Cinthia pode indicar alguém que faça esse tipo de
serviço por aqui.”
Estranho,
toda vez que chega, descobre-se a conversar com André, como fosse
ele a estar na direção, como se ele ainda estivesse vivo.
Estaciona
o carro debaixo da árvore e, já na cozinha, larga as compras na
mesa e começa a abrir, uma por uma, as portas-janela que, de todos
os cômodos, levam à varanda que abraça a casa inteira. Olha o
relógio. Já são quase dez e meia da noite: a essa hora Cinthia e
Marcos devem ter deixado os últimos afazeres da pousada na mão dos
garçons e estariam indo para o bangalô. Conhece seus horários.
Troca os mocassins por havaianas e, assim como está, bermuda e
camiseta, resolve ir. Tira da sacola de compras um pote de geleia e
sai pela praia: não tem mais do que cinquenta, sessenta metros até
a casa deles. Lua cheia.
Imagina
a alegria de Cinthia quando receberá a geleia de mirtilos que
aprendera a amar de paixão quando, após formar-se em administração
de empresa - por sinal junto com André - havia feito um estágio em
Hotelaria na Suíça. Na volta ao Brasil, construiu uma pousada nos
terrenos que o pai, rico e influente político da região, lhe dera
de presente de casamento.
Marta
está quase chegando e, como faz sempre ao aproximar-se, prepara-se
para anunciar-se gritando seu nome quando, repentinamente, estanca;
quase à porta do bangalô, ouve berros: as vozes dos dois em
violenta discussão. Não entende as palavras mas a sobreposição
das vozes, a falta de intervalos entre elas, tudo pinta uma briga
feia.
Fica
imóvel um instante e depois, quase na ponta dos pés, recua e
começa, devagar, o caminho de volta. Pote na mão, preocupada com a
situação, tenta mais uma vez decifrar aquele casal aparentemente
tão harmonioso.
Os
dois juntos, amor e sexo puro. Ela, esbelta, rosto lindíssimo, corre
de manhã cedo na praia uma hora todos os dias, faça sol ou chuva.
Ele também, alto e sarado, circula entres os hóspedes da pousada
com seu sorriso acolhedor. Sempre alvo dos olhares gulosos de muitas
mulheres tanto na piscina como nos passeios de barco, entre os
coquetéis coloridos do happy-hour, entre
as mesas de jantar, ao luar, com
tochas e velas. Cinthia o conhecera num Hotel de Brasília onde era
funcionário da recepção à noite e onde entretinha os hóspedes
para os esportes durante o dia. Tinha sido, como ela sempre dizia:
“amor a primeira vista” e já estavam casados há pelo menos seis
anos.
Marta
sabe das limitações intelectuais de Marcos e do esnobismo que às
vezes emerge, mal disfarçado, das reações de Cinthia. Seria isso?
Estaria se agravando essa diferença? Ou seria simplesmente o ciúme
doentio dela que continua não se dando conta que ele a ama mais, e
melhor, do que ela a ele...
Já
em casa resolve não pensar mais no assunto. Eles sabem de sua vinda
sempre às sextas- feiras à noite: seguramente amanhã se veriam.
Vai direto ao banheiro, uma chuveirada rápida e um roupãozinho de
fustão, pronta para deitar e dormir daí a pouco. Vê-se no espelho,
pequena e magra de seios grandes, cabelo afro feito no salão da
Vanda, pele bronzeada com os olhos azuis da mãe holandesa. “Você
tem um pé na cozinha, Marta, juro por Deus” dizia sempre André
com carinho e fúria ao possuí-la.
André.
Depois do acidente de carro que o havia matado, esta casa é hoje um
refúgio para Marta: vem nos fins de semana, depois do consultório
de psicologia onde atende em Fortaleza, mas é aqui que descansa e
aproveita as manhãs para trabalhar na tese de doutorado. Aqui está
seu computador para os rascunhos da pesquisa e sempre traz seu
note-book onde transfere os textos definitivos.
Fecha
de novo todas as portas-janela da casa, vai à cozinha, toma um copo
de leite, enfia uma maçã no bolso do roupão e vai ao quarto. Liga
o ventilador de teto e deita na cama sem abri-la. A colcha de algodão
listrado é fresca e lisa. Junta os dois travesseiros e pega o livro
que deixou desde a semana anterior na mesinha de cabeceira. Quer
reler alguns trechos da biografia que Pierre Daix escreveu sobre
Picasso, pois percebera que nela o autor parecia atribuir ao pintor
atitudes peculiares no seu trato com as mulheres - e com os pinceis –
sugerindo a presença de uma síndrome de bipolaridade. Se achasse
referências plausíveis dessa faceta de Picasso, poderiam ser úteis
à sua tese.
Mordendo
de vez em quando a maçã, concentra-se na leitura com tal
intensidade que mal ouve a voz que a chama, bem atrás da
porta-veneziana do seu quarto. Um bater leve na madeira e desta vez
reconhece a voz do Marcos.
“Marta, por favor...”
Pula
da cama deixando o livro aberto, páginas contra a colcha, e vai
abrir.
Marcos,
ombro apoiado a um pilar da varanda, mochila pendurada na mão, rosto
devastado de pranto.
“Marta,
por favor...”
Ela
escancara a porta, pega a mochila jogando-a num canto e conduz Marcos
pelo braço até a cama.
“Sente-se,
pelo amor de Deus, Marcos, o que foi...”
“Agora
acabou mesmo, Marta, vou embora de vez”. Um soluço. “Se você
puder emprestar o seu carro, vou para Fortaleza e depois, de avião a
Brasília.” Olhos baixos, lágrimas escorrendo. ”Recomeçar tudo.
Do zero”.
Marta
senta-se ao lado dele, pega sua mão nas suas.
“Calma Marcos, vamos falar, vamos raciocinar, quem sabe...”
De
repente o rosto de Marcos enterrado no seu ombro. Soluços
convulsivos, um tremor irrefreável, um rosnar de palavras
desconexas, ininteligíveis. Marta sente seu pescoço molhado das
lágrimas dele. Num gesto impulsivo, pousa as duas mãos na nuca do
homem, dedilhando entre seus cabelos, num ritmo tranquilo de afago.
Um
silêncio pesado desce naquele quarto que junto à brisa, improvisa o cheiro da maresia e Marta sente que a qualquer momento ele
estará vomitando um relato desenfreado de uma briga feia. O que terá acontecido entre ele e Cinthia? seguramente o ciúme de sempre. Os braços dele continuam
apertando os ombros de Marta, como um náufrago a um destroço
qualquer, com força, como buscando não só apoio, mas salvação.
Ela sente-se ainda mais aprisionada, envolvida, subjugada: as mãos
do homem vêm empurrando-a para o meio da cama, sente seu peso em
cima do corpo, o cinto do roupão arrancado.
“Marcos,
que é isso, Marcos...”
O
corpo dele continua a tremer, rosto tenso, olhos fechados. Ela sente
que o pulsar da penetração está criando nela uma braçada de
suspiros tão
ofegantes quanto a sua própria respiração. As costas do livro na
cama machucam-lhe a coluna, o resto da maçã comprime-lhe um seio,
mas ela está entrando num ritmo incompreensível, indesejável,
repulsivo e ao mesmo tempo algo está acontecendo nela: aquele calor,
aquele suor, tudo aquilo a está levando para um orgasmo impensável
mas vivo.
Real.
Ao
abrir os olhos, lá está aquele rosto sofrido, numa concentração
brutal e infinita em busca do gozo final. Ao sair de dentro dela, ele
vira de costas, olhos ainda fechados, as feições tensas. Um quase
suspiro.
“Desculpe, Marta, desculpe..”
Marta
encolhe-se para o lado oposto. Afasta-se do suor e do esperma que
umedece a colcha, fica por uns minutos olhando aquele corpo nu. Como
deixei que isso acontecesse...
Aquele
orgasmo tão inesperado, surpreendente, aquela sensação de que
agora, afinal, ela ainda estava viva, havia voltado a ser viva, a
deixa perturbada. Alguma vez teria olhado para ele com cobiça?
Alguma vez teria notado olhares de Marcos sobre seu corpo? Marta
sabe: o orgasmo havia sido dela, sim, mas o dele dedicado, procurado
e jorrado para Cinthia... Meu Deus, o marido da melhor amiga do
André desde o colegial; minha melhor amiga...Um corpo esculpido
adormeceu na minha cama, e não é o André.
Olha
a porta-janela ainda escancarada. A luz forte da lua pinta um
requadro no chão.
Arrancando
de vez o roupão, cata os restos da maçã e vai ao banheiro
lavar-se. Enrola uma toalha no corpo e vai sentar-se no almofadão no
outro canto do quarto, lá perto da mochila do Marcos. Cotovelos
apoiados nos joelhos, olha a tela da jangada na parede: uma pintura
comprada numa comuníssima feira de artesanato. A explosão de
pinceladas vibrantes de um primitivo talentoso, levava cor e surpresa
às paredes caiadas. “Cafoníssima” havia dito André ao vê-la
mas, depois de colocada, assim, sem moldura, admitira que trazia ao
ambiente um quê de espirituoso e acolhedor. Afinal a deles era só
uma casa rústica, que acabou sendo chamada Jangada.
Na
penumbra, descalça no piso áspero, sente uma sensação de saudade.
Ela e André, pés nus e espírito alegre, haviam arranhado com um
restelo o cimento ainda úmido, jorrando naqueles riscos, e em suas
próprias pegadas, pequenos rios de tinta diluída nos tons
irregulares de verdes e azuis, como para trazer o mar para dentro de
casa.
De
novo André em seus pensamentos. Após quase dois anos do acidente,
Marta ainda o vê em todo canto da casa, cada pequeno detalhe o traz
de volta.
...Não
posso continuar assim, depois de todo esse tempo. Nada pode trazê-lo
de volta. Tenho que mudar minha vida. Aqui, justamente aqui, na
Jangada. Ela deve crescer comigo, recomeçar comigo. Tenho que voltar
a viver meus desejos, reabrir um lugar ao meu redor, dividir outra
vez o meu espaço com alguém... Quem sabe um dia eu possa convidar o
Cardoso, aquele cirurgião plástico que refez o nariz da Madalena,
feio mas charmoso, recém divorciado, com consultório no mesmo
prédio que o meu. Tem sentido de humor, nos cruzamos há anos no
elevador, trocamos ideias e projetos sempre sem tempo para ir além;
e de vez em quando pergunta quase sarcástico, como vai sua
jangada... Quem sabe?
Há
quanto tempo estava aí olhando aquele horizonte que mar e céu
disputam, lá longe, além da varanda. A luminosidade da manhã já
está alterando o pedaço do chão onde antes havia o luar.
Aproxima-se da cama.
Chama.
Ele pula sentado, agarra uma ponta da colcha para cobrir-se.
“Marta,
desculpe Marta, eu...”
“Não
foi nada Marcos. Nem você nem eu quisemos nada disso.” Uma pausa
sem conforto.“Nunca mais vamos falar nisso.”
Um
silêncio constrangido, Marcos encobrindo o rosto com as mãos.
“Acho
que está na hora de você ir... as chaves do carro estão no
porta-luvas junto aos documentos”.
Marta
não escuta sua própria voz dando instruções de como e onde deixar
o carro em Fortaleza. Só sabe que ela está tentando livrar-se da
situação o quanto antes. Precisa estar sozinha, precisa xingar-se,
questionar-se, perdoar-se. Absolver-se.
Só
percebe a inutilidade de seu último conselho:
“Quem
sabe um dia vocês possam se reencontrar, recomeçar...”
É
nesse momento que a silhueta de Cinthia se desenha no chão do
quarto.
Um
silêncio de surpresas. Um choque. O arranhar de um hálito aspirado
para dentro da garganta. A imobilidade geral, agredida pelo timbre
sibilante, quase um chicote:
“Então
é isto! Então é isto...”
Marcos
cata suas roupas pelo chão, vestindo-se num relâmpago. Marta
caminha até a amiga.
“Não
me toque! Você era minha amiga, eu vendi a vocês este terreno para
ter vocês junto de nós para sempre...” Agora é quase um soluço.
Marta
vira as costas caminhando para a sala. Cinthia a segue, volta a
levantar o tom, tremor de raiva, perto do berro.
Marta
ouve, com alívio, o barulho das rodas sobre a areia.
Agora
os gritos das duas: respingos de cobranças, respostas contidas,
insultos arremessados, recriminações lançadas em idas e voltas,
sem pontuação, sem pausas.
Marta
enfia os dedos nos seus cabelos, apertando as palmas nos ouvidos,
como para apagar vozes, palavras, significados. Todos seus sentidos
mergulham fundo nas entranhas recém despertadas, suas dúvidas
clamando por tranquilidade, suas inquietações por afago, por
silêncios. Quando terminará esse inferno...
“Agora
chega, Cinthia: você não quer ouvir...”
Avança
na direção da amiga para que ela seja obrigada a recuar até a
porta da sala, abre-a e desta vez é ela a levantar a voz.
“Saia”.
Empurra
Cinthia para além das venezianas da varanda e as tranca. Devagar
volta até o quarto, arranca a toalha do corpo.
O
arzinho da quase manhã encrespa sua pele nua numa sensação nova. E
boa. Fecha a porta-janela e vai ao banheiro.
Senta
no chão do chuveiro e abre a água.
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