O
ESPELHO
Na escuridão
do quarto, lençóis embaralhados sobre o colchão, desordem por toda
parte. Sentado na beira da cama, cotovelos nos joelhos, mãos na
testa, observa seus pés no chão. Não sabe há quantas horas está
assim, olhando o nada. Um suor frio o sacode; ele sabe que se tirasse
as mãos do rosto, elas estariam tremendo, como ontem, quando havia
deixado cair no chão da cozinha seu último copo de cristal: água
e estilhaços em volta de seus pés nus. Conseguira sair da
armadilha sem se cortar, ir calçar um chinelo e voltar para uma
xícara de café, sem requentá-lo, o mesmo que havia tomado no dia
anterior, guardado num bule desde … não lembrava mais quando.
Agora um
toque do telefone o empurra até ele, mas não atende. Ele sabe quem
é. Ontem Júlia havia tocado a campainha, batido na porta com as
duas mãos, implorado. “Sou eu, abra por favor, quero falar com
você!” Ele havia ligado o rádio para que ela soubesse que ele
estava sim, mas não queria vê-la. E agora, seguramente era ela, de
novo, insistindo em querer atirar-lhe um salva-vida. Logo ela, que
ainda o amava, apesar de tudo.
Ele sabe que
pode salvar-se sozinho. É só decidir. Um gesto raivoso e as
cortinas correm revelando o sol já alto. Na luminosidade improvisa,
as cores das telas e das gravuras inundam o quarto como a enquadrar
com mais vigor o desleixo ao redor; todas as cores agora jazem no
chão, planas, descoloridas, amorfas.
A
súbita mudez do telefone o agride como uma bofetada.
Não precisa
da ajuda de ninguém, é a ele que cabe a decisão de uma atitude
definitiva. Os três dias trancado naquela casa que fora seu prazer
e orgulho, deveriam dar-lhe a resposta do seu futuro. Qual futuro?
O espelho do
banheiro revela-lhe um rosto que não reconhece: macilento, barba por
fazer, olhos inchados, cabelos empastados de suor. É assim que se
transforma a imagem de alguém que está se destruindo? Ou estas são
as marcas do esforço para tomar uma decisão? Ou para reconstruir
seu próprio respeito, ou para combater - e vencer - o fácil
caminho do abandono...
Num frenesi
que desconhece há tempos, atira-se aos jeans largados na poltrona,
às muitas camisas suadas penduradas no encosto das cadeiras, na
procura de um pedacinho de papel amarelo onde anotara um endereço.
Nada.
Vai até a
cozinha; mãos trêmulas, uma mordida na maçã em cima da mesa, um
gole de leite direto do tetrapac
e lá está de volta a ânsia de vômito que o ataca sempre que se
obriga a comer alguma coisa. De volta ao banheiro, lá está sua
imagem, assustadoramente pior do que há poucos minutos. Num impulso:
o chuveiro. A água fria sacode-lhe a musculatura, o sabonete escorre
rápido pelo corpo, pelos cabelos; gilete e barba ali mesmo. Rapidez
é preciso, antes que sua decisão se esconda atrás dos
arrependimentos, dos perdões que não pediu, das aceitações que
rejeitou.
Onde teria
largado aquele papel amarelo... Mal enrolado na toalha, procura a
carteira, olha para suas roupas. Quanta sujeira pode-se acumular para
apagar a qualidade das coisas. Jeans, camisas, aqueles mocassim...
É tudo meu? Desse jeito?
Veste o
melhor que encontra, entre as roupas espalhadas por aí. Agora quase
apresentável, senta na poltrona para calçar o sapato e lá está o
bilhete amarelo, bem debaixo de uma das garrafas vazias largadas no
chão ao seu lado. Alisa-o com cuidado: não é longe, pode ir a pé.
De novo o
suor frio, as mãos trêmulas.
Ao abrir o
armário para pegar um cinto, vê-se novamente no espelho: sim, agora
pode-se acreditar nas intenções de um homem com a aparência
decente como a que, em poucos minutos, conseguira com tão pouco.
Antes de sair, ainda passa pela cozinha, mais um gole, mais uma
mordida: outra vez a ânsia de vômito leva-o à beira da pia. Mais
uma mordida, mais um gole, e sente-se mais seguro.
O suor parece
voltar mas o tremor das mãos agarra com segurança o endereço mal
escrito no papel amarelo. Vai caminhando pela rua, com rapidez,
quase com fúria. No número que procura, uma porta modesta o leva a
um salão grande mal iluminado. Umas dez pessoas sentadas em
semicírculo em volta de uma mesa, outra dezena de cadeiras vazias
espalhadas pelos cantos. Tem alguém falando timidamente, sem olhar a
plateia, cabisbaixo.
Ele puxa uma
cadeira qualquer, senta e aguarda sua vez. Duas, três pessoas se
revezam. Depois, o silêncio.
É agora.
Ao levantar,
passa as palmas das mãos na calça para secar-lhes o suor, ajeita o
colarinho da camisa e lá está ele, em pé, atrás da mesa, palmas
esparramadas sobre o tampo.
Um ligeiro
pigarro e sua voz sai clara, surpreendentemente tranquila.
“Meu nome é
Augusto. Sou alcoólatra. Não bebo há setenta e duas horas”.
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