sábado, 7 de dezembro de 2013

IDENTIDADE



Ao entrar na galeria, Fábio não se espantou. Só Max para fazer algo assim, surpreendente, inovador. Além das obras inusitadas, ali estavam a atrevida cenografia da exposição, tipica de sua criatividade exacerbada, e o seu ego em perpétua ascensão.
Deparou-se com um labirinto de paredes baixas – pouco mais de um metro de altura –que obrigava todos a seguirem um percurso pré-estabelecido. Do pé direito altíssimo, do teto todo espelhado, pendiam, por cabos de aço, diversos bonecos deitados de bruços, como se estivessem boiando numa piscina, olhando para o fundo, e acompanhando as cabeças dos visitantes. Todos seguiam devagar o roteiro, olhando para cima, abismados com a novidade.
Fábio identificou, entre os bonecos, um jovem de fraque rasgado; uma mulher de biquíni entornando o bronzeador sobre as pessoas numa gota comprida, congelada em resina, que terminava a poucos centímetros do chão; um meninote segurando tão precariamente uma bola de futebol que ela poderia despencar a qualquer momento sobre a cabeça dos convidados.
Outro boneco, de forma especial, chamou a atenção de Fábio: parecia um homem triste, rosto deformado, uma corcunda bem refletida no espelho do teto. Quase inconscientemente Fábio ficou observando se, entre as pessoas do labirinto, ele pudesse identificar alguma moça que fosse uma Esmeralda em potencial: não havia.
Foi aí que ele, de repente, também sentiu-se observado: se o corcunda poderia estar lá à procura da Esmeralda, será que algum daqueles bonecos teria algo em comum comigo? E por quê? O que um boneco poderia ver em mim, lá de cima? Um pedaço de nariz saltando por entre as lentes dos óculos de tartaruga; dois curtos caminhos de linho marrom saindo de cada lado de uma calvície incipiente; ou talvez a ponta de um mocassim surrado? Que tipo de identidade o boneco lhe atribuiria com aqueles poucos indícios?
Sentiu uma necessidade urgente de sair do labirinto. Pediu licença, abriu caminho e finalmente viu-se empurrado ao ar livre: no fundo da galeria - casa antiga soberbamente reformada por arquiteto de renome - um grande jardim agora coberto por uma tenda branca onde circulavam os garçons com bandejas concorridas: mini-canapés, petit-fours, whisky, prosecos, sucos exóticos, águas coloridas.
E lá estava ele, Max Fidelis, o festejado artista, no meio da badalação de sempre. Viu Fábio, levantou enfaticamente os dois braços:
“Aqui, Fábio, aqui! Gente, este é o meu amigo Fábio Brotas!”
Apertou-o ao peito, segurou sua nuca com as duas mãos, olhou seu rosto tão de perto, quase nariz a nariz, e apertou-o novamente em seus braços:
“Fábio Brotas, meu melhor amigo”.
Sorrisos, apertos de mãos, conversas elogiosas à última produção do artista.
Fábio olhava para Max. Se conheciam desde crianças: escola juntos, serviço militar também. Depois, Fábio para arquitetura, Max para belas artes. Encontravam-se agora duas vezes por ano: maio e novembro, no aniversário de cada um. E nas vernissages.
Esperou um pouco, depois deu um jeito de sair sem ser notado. Resolveu voltar para casa como havia chegado: a pé. Seis ou sete quadras não matam ninguém. O ar fresco da noite, mil pensamentos na cabeça.
Uma pergunta estranha passeava dentro dele, como se somente agora tivesse notado que algo estava seriamente errado na frase tão comum que todo mundo usa. “Este é o meu amigo fulano!! Meu melhor amigo!!”.
Como se atribui a alguém um sentimento que só esse alguém sabe se é verdadeiro ou não? Assumir que fomos promovidos a uma categoria nem sempre merecida, privilegiados por uma preferência arbitrária, nossa sinceridade colocada em xeque, nossa consciência arranhada por realidades frequentemente escondidas, escusas, camufladas... Eu sou o melhor amigo daquele homem? Posso ter compartilhado muitos momentos importantes, mas só isto me faz seu amigo? Seu melhor amigo...?
Seus passos ecoam numa cadência ruidosa na avenida vazia.
Ao chegar em casa, uma ducha rápida, um roupão atoalhado e assim descalço, atravessou a sala, abriu a porta-janela para o terraço e sentou-se com uma generosa dose de whisky para relaxar. Seu olhar fixo no escuro. Um vento empurrou uma das portas de vidro: instintivamente a brecou com o pé para ela não bater.
De repente, viu-se refletido nela.
Eu sou mesmo amigo de Max? Sou eu o seu melhor amigo? Será que ele nunca soube que cobicei sua primeira mulher e só desisti dela no último momento quando estava quase para conseguí-la? Nunca percebeu a aversão que tenho pela fatuidade da fama de que ele se nutre, usando a multi-milionária conta bancária de sua família para produzir obras invendáveis que sempre viram presentes para amigos e museus?
Eu sou o melhor amigo dele?
Sei tudo dele: nos nossos raros encontros eu nunca preciso perguntar nada, ele não para de falar de si mesmo. Mas o que ele sabe de mim? Nem mesmo nos encontros de aniversário ele tenta saber como vivo, o que eu penso, quem são meus amigos, minhas mulheres, meu sucesso ou meu fracasso profissional. E ele, então, é o meu melhor amigo? Quando foi que deixamos de ser amigos? Como é que ele me vê agora? Nossa amizade é somente uma grande ausência, um distanciamento progressivo, um contínuo adeus sem palavras.
Os bonecos daquele teto espelhado pareceram ter mais interesse em mim do que o próprio Max.
Agora aí está Fábio, mastigando o resto de gelo do copo vazio, rosto ainda refletido na porta-janela do seu terraço, imagem quase engolida pela escuridão da noite. Em voz alta, apreensivo, como num soluço: “Quem é você?”.
Uma mariposa esbarra em paredes e vidros, à procura de luz. Prontamente, num instinto selvagem, Fábio a recolhe com seu copo e o inverte no braço da poltrona, aprisionando o inseto. No movimento brusco o cabelo ainda molhado se descompõe, soltando gotas que escorrem pela face.
Como lágrimas.


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