Ao entrar na galeria, Fábio não se espantou.
Só Max para fazer algo assim, surpreendente, inovador. Além das
obras inusitadas, ali estavam a atrevida cenografia da exposição,
tipica de sua criatividade exacerbada, e o seu ego em perpétua
ascensão.
Deparou-se com um labirinto de paredes baixas –
pouco mais de um metro de altura –que obrigava todos a seguirem um
percurso pré-estabelecido. Do pé direito altíssimo, do teto todo
espelhado, pendiam, por cabos de aço, diversos bonecos deitados de
bruços, como se estivessem boiando numa piscina, olhando para o
fundo, e acompanhando as cabeças dos visitantes. Todos seguiam
devagar o roteiro, olhando para cima, abismados com a novidade.
Fábio identificou, entre os bonecos, um jovem
de fraque rasgado; uma mulher de biquíni entornando o bronzeador
sobre as pessoas numa gota comprida, congelada em resina, que
terminava a poucos centímetros do chão; um meninote segurando tão
precariamente uma bola de futebol que ela poderia despencar a
qualquer momento sobre a cabeça dos convidados.
Outro boneco, de forma especial, chamou a
atenção de Fábio: parecia um homem triste, rosto deformado, uma
corcunda bem refletida no espelho do teto. Quase inconscientemente
Fábio ficou observando se, entre as pessoas do labirinto, ele
pudesse identificar alguma moça que fosse uma Esmeralda em
potencial: não havia.
Foi aí que ele, de repente, também sentiu-se
observado: se o corcunda poderia estar lá à procura da Esmeralda,
será que algum daqueles bonecos teria algo em comum comigo? E por
quê? O que um boneco poderia ver em mim, lá de cima? Um pedaço de
nariz saltando por entre as lentes dos óculos de tartaruga; dois
curtos caminhos de linho marrom saindo de cada lado de uma calvície
incipiente; ou talvez a ponta de um mocassim
surrado? Que tipo de identidade o boneco lhe atribuiria com aqueles
poucos indícios?
Sentiu uma necessidade urgente de sair do
labirinto. Pediu licença, abriu caminho e finalmente viu-se
empurrado ao ar livre: no fundo da galeria - casa antiga soberbamente
reformada por arquiteto de renome - um grande jardim agora coberto
por uma tenda branca onde circulavam os garçons com bandejas
concorridas: mini-canapés, petit-fours,
whisky, prosecos,
sucos exóticos, águas coloridas.
E lá estava ele, Max Fidelis, o festejado
artista, no meio da badalação de sempre. Viu Fábio, levantou
enfaticamente os dois braços:
“Aqui, Fábio, aqui! Gente, este é o meu
amigo Fábio Brotas!”
Apertou-o ao peito, segurou sua nuca com as
duas mãos, olhou seu rosto tão de perto, quase nariz a nariz, e
apertou-o novamente em seus braços:
“Fábio Brotas, meu melhor amigo”.
Sorrisos, apertos de mãos, conversas elogiosas
à última produção do artista.
Fábio olhava para Max. Se conheciam desde
crianças: escola juntos, serviço militar também. Depois, Fábio
para arquitetura, Max para belas artes. Encontravam-se agora duas
vezes por ano: maio e novembro, no aniversário de cada um. E nas
vernissages.
Esperou
um pouco, depois deu um jeito de sair sem ser notado. Resolveu voltar
para casa como havia chegado: a pé. Seis ou sete quadras não matam
ninguém. O ar fresco da noite, mil pensamentos na cabeça.
Uma
pergunta estranha passeava dentro dele, como se somente agora tivesse
notado que algo estava seriamente errado na frase tão comum que todo
mundo usa. “Este é o meu amigo fulano!! Meu melhor amigo!!”.
Como
se atribui a alguém um sentimento que só esse alguém sabe se é
verdadeiro ou não? Assumir que fomos promovidos a uma categoria nem
sempre merecida, privilegiados por uma preferência arbitrária,
nossa sinceridade colocada em xeque, nossa consciência arranhada por
realidades frequentemente escondidas, escusas, camufladas... Eu sou o
melhor amigo daquele homem? Posso ter compartilhado muitos momentos
importantes, mas só isto me faz seu amigo? Seu melhor amigo...?
Seus
passos ecoam numa cadência ruidosa na avenida vazia.
Ao
chegar em casa, uma ducha rápida, um roupão atoalhado e assim
descalço, atravessou a sala, abriu a porta-janela para o terraço e
sentou-se com uma generosa dose de whisky
para relaxar. Seu olhar fixo no
escuro. Um vento empurrou uma das portas de vidro: instintivamente a
brecou com o pé para ela não bater.
De
repente, viu-se refletido nela.
Eu
sou mesmo amigo de Max? Sou eu o seu melhor amigo? Será que ele
nunca soube que cobicei sua primeira mulher e só desisti dela no
último momento quando estava quase para conseguí-la? Nunca percebeu
a aversão que tenho pela fatuidade da fama de que ele se nutre,
usando a multi-milionária conta bancária de sua família para
produzir obras invendáveis que sempre viram presentes para amigos e
museus?
Eu
sou o melhor amigo dele?
Sei
tudo dele: nos nossos raros encontros eu nunca preciso perguntar
nada, ele não para de falar de si mesmo. Mas o que ele sabe de mim?
Nem mesmo nos encontros de aniversário ele tenta saber como vivo, o
que eu penso, quem são meus amigos, minhas mulheres, meu sucesso ou
meu fracasso profissional. E ele, então, é o meu melhor amigo?
Quando foi que deixamos de ser amigos? Como é que ele me vê agora?
Nossa amizade é somente uma grande ausência, um distanciamento
progressivo, um contínuo adeus sem palavras.
Os
bonecos daquele teto espelhado pareceram ter mais interesse em mim do
que o próprio Max.
Agora
aí está Fábio, mastigando o resto de gelo do copo vazio, rosto
ainda refletido na porta-janela do seu terraço, imagem quase
engolida pela escuridão da noite. Em voz alta, apreensivo, como num
soluço: “Quem é você?”.
Uma
mariposa esbarra em paredes e vidros, à procura de luz. Prontamente,
num instinto selvagem, Fábio a recolhe com seu copo e o inverte no
braço da poltrona, aprisionando o inseto. No movimento brusco o
cabelo ainda molhado se descompõe, soltando gotas que escorrem pela
face.
Como
lágrimas.
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